O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 4
Capítulo 4




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/673114/chapter/4

Desirée o olhava de soslaio como se quisesse lhe dizer algo. Estava em dúvida sobre agradecer pelas roupas ou pedir que ele não fosse fazer o que achava que devia. Diolindo não queria dizer a verdade a ela, mas no íntimo ela sabia que sua aflição tinha a ver com os dois. Quando chegou em casa ainda coçando a cabeça de preocupação depois da conversa com Franco, tudo o que ele queria era poder ficar um pouco ao seu lado e vestí-la com os presentes. Deixou-a trajando um pijaminha confortável e ao mesmo tempo sexy. Quase não conseguia conter sua ereção e a vontade de possuí-la, mas quando lembrava do que tinha que ser feito hoje à noite seu membro murchava com uma bexiga de festa. E passaram o resto da tarde abraçados na cama, tendo ereções fugidias.

Diolindo despertara assustado já com a escuridão da noite. Olhou para Desirée ao seu lado e percebeu que estavam abraçados de conchinha. Não lembrava de tê-la colocado naquela posição, era fortuito, mas era bom demais. Saiu lentamente da cama para não despertá-la, vestiu-se e pegou a pá. Respirou fundo e saiu batendo a porta com cuidado. Aquela hora todos estavam atrás de seus blocos de carnaval e nenhum deles passava no seu roteiro, portanto não havia com o que se preocupar. Fez o mesmo caminho da noite anterior e logo estava dando a volta no muro e jogando a pá, que ao invés de fazer um barulho seco de queda no chão, o que ele ouviu foi um baque surdo mais agudo, e em seguida algo caindo no solo. Lhe pareceu ter ouvido um ganido no meio desse processo. Assustado, ergueu-se sorrateiramente no muro e com apenas a cabeça por cima viu que se tratava de um cão. Deus do céu! Acertara o bicho!

Olhou para os lados para ver se via alguma alma encarnada, mas nada. Então criou coragem e pulou para o lado de dentro. Aproximou-se da criatura que golpeara e acocorou-se para checar seus sinais vitais. Não encontrou nada. O cachorro tava morto. Não ia deixar o pobre animal ali pra ser comido pelos urubus e ratos. Como ele já sabia, esse direito eram dos vermes. Agarrou pelas patas traseiras do infeliz e saiu arrastando até onde queria ir. Pousou-o no chão ao lado da cova, tirou as flores murchas e a cruz de cima mais uma vez e cavou. Quando ouviu o baque da pá na madeira procedeu da mesma forma que da vez anterior. O momento mais difícil era encarar o rosto destroçado do cadáver e o fedor que piorara. A pele do rosto do que restara de Dona Dirce fora de um amarelo icterício para um verde catarro e o gás sulfídrico que subia era o pior cheiro que um ser humano podia aspirar pelas narinas. Tivera o cuidado de cobrir o rosto com um pano de prato que trouxera e vestir as mãos com um par de luvas de borracha. Agora os olhos estava abertos, opacos, aquosos e sendo bebidos pelas bactérias, a boca havia expandido pelo inchaço da língua e pela expansão dos gases pelo corpo, e o rigor mortis havia endurecido as articulações. Isso ficou provado quando tentou abrir-lhe mais a boca. Teria que usar a ponta da pá para o feito. Ficou de pé tentando evitar olhar diretamente para o corpo, encaixou a pá no meio da dentadura e fez força. Nada. Sabendo que nada mais poderia ferí-la, decidiu usar toda a força que lhe restava e um barulho de osso quebrado subiu-lhe aos tímpanos. Separara a mandíbula que ficou pendurada apenas pela prótese. Estendeu a mão e mais uma vez pedindo perdão a sua Mãe e a Deus pela segunda profanação consecutiva daquele túmulo, conseguiu extrair o que queria. Com a dentadura em suas mãos saiu da cova e olhou pro cachorro. Sua Mãe gostava de bichos e vivia se queixando que não tinha mais condições de criar um desde Guri morrera, um vira-lata de pequeno porte que fora atropelado pelo caminhão de lixo ainda novo.

Arrastou o cachorro até o caixão e retirando um pouco dos caules das flores que a cubriam para abrir espaço, ajeitou o animal entre os seus braços e fechou a urna. Cobriu-a de terra esperando só voltar naquele lugar para deixar flores no dia de finados. Guardou os dentes postiços no bolso da calça e foi embora rapidamente, sem conseguir escutar o cachorro desmaiado voltar a vida e latir inultimente para que o tirassem daquele inferno escuro, apertado e cheio de podridão.

Antes de sair do cemitério recolheu um ramalhete de rosas ainda viçosas deixada em cima de uma cova nova e rumou para casa. No meio do caminho jogou as luvas e o pano que lhe cobria o rosto numa lata de lixo. Ouviu o som de uma marchinha vindo de bem longe, mas distinguindo a canção, sorriu e a acompanhou em voz baixa.

Mamãe eu quero, mamãe eu quero
Mamãe eu quero mamar
Dá a chupeta, dá a chupeta
Dá a chupeta pro bebe não chorar

Dorme filhinho do meu coração
Pega a mamadeira e vem entrá pro meu cordão...

Tentou evitar o Boteco do Almeida para não encontrar o ex-padre e logo estava em casa. Tinha se tornado hábito ir ver Desirée assim que entrasse em casa e, claro, correu pro quarto. Ficou sem fôlego quando não a viu. Mas antes que o coração lhe chegasse à boca, lembrou que ela estava no quarto da Mãe. Ainda era a força de um hábito mais antigo. Correr pro seu quarto quando pisasse em casa antes que a sua Mãe perguntasse brava porque ele tinha demorado tanto pra comprar o pão. Mesmo assim, o coração que já estava a meio caminho da caixa torácica, fez o caminho de volta pra cima quando a viu sentada na cama com as costas apoiadas na cabeceira.

— Que Diabos foi...! ?

 

Não havia qualquer lembrança de que ele a tinha posto naquela posição. Olhou para os seus olhos cada vez mais vivos e brilhantes e percebeu um sentimento indescritível. Aquilo era amor, saudade, paixão, vontade de estar juntos. Teve a impressão que a mãozinha delicada dela batia levemente no colchão chamando-o para perto.

 

— Espere meu amor, vou tomar um banho e volto.

 

E com o olhar de concordância dela ele devolveu o coração pro seu lugar. E o lugar dele era ao lado do dela, que cada vez mais ele tinha certeza que ela possuia. Sim ela detinha um lindo e enorme coração pulsante e cheio de sangue bombeando suas veias. Aquilo era vida. Caso contrário ele não estaria tão insanamente apaixonado. Só se apaixona quem está vivo e por gente viva. Desirée definitivamente era a mulher da sua vida. Não que tivesse tido muitas, mas aquela era especial. Ainda por cima com a anuência da sua Mãe. Amar era melhor do que ele havia imaginado. E foi banhar-se para a sua noite de núpcias.

 

Deixou a água cair-lhe no rosto, nas costas e não havia qualquer pressa em acelerar o ritual. O amor podia congelar o tempo, transformá-lo em seu servo. Por ter certeza do que estava para acontecer, não havia ansiedade já que tudo estava no roteiro de um grande escritor, o sumo sacerdote da sina alheia. Não havia ser corajoso no mundo que pudesse roubar esse momento sacro.

 

Nesse momento ele sente o chão embaixo do chuveiro se abrir. Não se abrir propriamente, mas ceder um pouco. Nas últimas semanas algumas rachaduras surgiram ao redor do ralo, mas nunca ouve preocupação por parte dele, além do que sua Mãe já debitilitada insistia que não era nada com que se preocupar e o proibiu de chamar um encanador ou coisa que o valha.

 

Olhou pro chão debaixo dos seus pés e viu que talvez ele pudesse dar um jeito sem precisar gastar dinheiro. Iria comprar o material na quarta quando voltasse do banco. Mesmo que o chão abrisse inteiro sob os seus pés, ele não adiaria o momento mágico. Enxugou-se lentamente, encharcou o corpo de lavanda, depilou suas partes íntimas, fez barba e penteou os cabelos que já estavam rareando-lhe no cocoruto. Enrolou a toalha na cintura. Já no quarto ele a viu de bruços na cama, mas não se assustou. Nada a respeito da sua mulher o assustaria mais. Ela estava pedindo por ele também. Ajoelhou-se sobre ela um pouco abaixo dos glúteos e começou a fazer-lhe uma massagem meio desajeitada. Apertava com delicadeza os seus ombros, depois suas costas descendo até a cintura. No início ele a ouvia gemer baixinho, talvez por timidez. Depois ele percebeu que ela foi relaxando mais e a virou de frente para ele. Tirou a sua toalha e deitou-se por cima da sua amada. Deu-lhe um longo beijo na boca receptiva e delicada e logo foi explorando os recônditos mais selvagens daquele corpo. Tudo lhe era ao mesmo tempo familiar e novo, à medida que a sua língua provava os sabores exóticos daquela ode ao gôzo. Depois de passear pelos seios que mais pareciam montes gêmeos que compunham paisagens naturais de uma reserva ecológica, pelo umbigo que mais parecia uma pia batismal que enchera de saliva benta, finalmente chegara a floresta dos fios dourados, por onde queria perder-se para sempre emaranhado nos cipós de ouro. E gritando como Tarzã sucumbiu à vontade de penetrá-la em toda a sua glória. Como era de se esperar, gozaram juntos num êxtase que fariam átomos em plena fissão nuclear envergonharem-se da sua pouca energia. Dormiram inundados em suas secreções até o dia seguinte.

 

##

O domingo amanheceu com o canto de pássaros como há muito não se via. Mas pensando bem, talvez fosse por que todos estivessem em suas casas de ressaca pela farra momesca do dia anterior e, portanto, o silêncio das ruas os permitia contemplar a música das pequenas criaturas aladas. Ainda deitado, cheirou os cabelos da sua mulher, sentou-se e se espreguiçou até estalar as juntas dos cotovelos. Faria um café pra dois. Abriu a geladeira e viu que não havia muita coisa nela. Uma lata de quitute já aberta, tres ovos e uma cebola. Era o bastante para se transformar num manjar inesquecível. Ligou o rádio pra ver se daria sorte em encontrar uma música que pudesse falar do seu momento. Aquela era de um cantor novo, um cara chamado Agenor, mas ele já gostava, tinha o nome do seu pai.

 

Disparo contra o sol
Sou forte, sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas
Eu sou o cara
Cansado de correr
Na direção contrária
Sem pódio de chegada ou beijo de namorada
Eu sou mais um cara

Mas se você achar
Que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não pára

Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta...

Cantava enquanto preparava o banquete, e continuou mesmo quando a música terminou, Levando dois pratos para o quarto, percebeu que Desirée já estava sentadinha na cadeira da mesa de refeições na sala.

— Aqui meu amor, nosso desjejum. Não se faça de rogada, vá comendo que vou fazer um suquinho de laranja em dois minutos.

Fez o suco e retornou. Desirée não havia tocado no prato.

— Imagino que esteja sem fome, é isso? E também imagino que você não coma muito pra manter essas curvas perfeitas. Tudo bem, não se preocupe, eu entendo. Mas o suco você toma só um pouquinho?

 

Como ela também não tocou no suco, ele bebeu. Tirou a louça da mesa e foi lavar. Perguntou lá da cozinha se ela queria tomar um banho. Ele achava que os dois podiam banhar-se juntos, já que agora não havia mais pudor sobre pudor. Como quem cala consente, ele foi buscá-la. Como ela já estava despida foram para o banheiro sem demora. Ao abrir a porta deparou-se com uma cena escabrosa que lhe tirou a fala. Imediatamente teve a reação de tapar os olhos de sua mulher e a levar de volta pra cama afirmando que iria averiguar do que se tratava e depois lhe explicaria tudo, mesmo sabendo que talvez ele nunca tivesse qualquer explicação plausível para aquilo.

 

Depois de deixar a sua mulher confortável na cama, voltou rapidamente pro lugar onde se costuma praticar a higiene, a limpeza do corpo em todos os sentidos. Mas aquilo lá não lhe parecia um lugar adequado para.....para....desovar um cadáver!

 

A ossada apareceu depois que o piso embaixo do chuveiro cedeu, devido a infiltrações em uma sepultura malfeita. Alguém escondera aquela pessoa dentro da sua casa e pelo visto há muito tempo sob os seus olhos e os da sua Mãe? Como nunca desconfiara de nada? Há quanto tempo aquele corpo estava ali? Dilindo encaixava uma pergunta atrás da outra na sua mente sem fazer a mínima idéia de como chegar as respostas. E pior, não sabia o que fazer. Se chamasse a polícia iriam fazer um monte de perguntas e eles podiam não gostar da Desirée, do jeito caladão dela. Podiam levá-la como suspeita, e isso ele não permitiria de jeito nenhum. Será que o ex-padre sabia de alguma coisa? Sua Mãe havia dito algo semelhante em suas confissões e ele teria esquecido de lhe dizer? Não, ele não iria dar chance àquele bêbado. Mas o que faria com aquela ossada? Jogaria no lixo? Não faria isso sem antes saber de quem eram aqueles restos mortais. Não fazia idéia por onde começar, mas algo precisava ser feito. Não conseguiria mais tomar banho pisando em alguém.

 

Diolindo esvaziou dois grandes sacos de aninhagem que ele usava para guardar suas revistas velhas, que já tinha decidido jogar fora depois da chegada dela. Improvisou dois sacos plásticos como luvas para catar os ossos e ensacá-los. Removeu os cacos de piso e teve acesso ao esqueleto de um adulto ainda inteiro, dobrado em posição fetal num buraco pequeno demais para cabê-lo. Ao puxar o crânio ele se soltou, o que o assustou. Mas sabia que não conseguiria guardar o coitado todo montado. Passou para as costelas, a espinha e ossos da perna que eram maiores. Os pés deixou separado das mãos para não confundir as peças se um dia precisasse remontar aquele quebra-cabeças macabro. O fedor não era tão forte quanto o que sentira no cemitério na noite anterior, mas ainda havia um quê de coisa podre e velha. Um fedor de barata.

 

Levou os sacos para o pequeno quintal da casa e os acondicionou numa pequena cisterna plástica vazia que comprara com medo de faltar água da rua para fazer os chás que Dona Dirce gostava de beber antes de dormir. Fechou-a com a tampa de rosquear e era tudo o que podia fazer por enquanto. Sabia que se alguém encontrasse aquilo ali na sua casa ele seria preso e nunca saberia o que dizer ao delegado, pois sua versão seria motivo de piada para sempre nos anais da polícia.

 

— Seu delegado, eu estava tomando banho e de repente o chão cedeu e cai em cima de uma ossada.

— Filho, você já assistiu Poltergeist?

 

E seria levado em cana até narrar a versão do filme que eles queriam ouvir da minha boca.

 

Acalmou-se um pouco e avisou a mulher que iria sair para comprar mantimentos. Na verdade queria tomar um ar e andar um pouco pra pensar no que fazer. E comprar cimento se encontrasse algum material de construção aberto.

 

###

Entrou no Boteco do Almeida e logo viu Selma no balcão. Como já tinha se tornado instantâneo quando a via, percebeu que estava com uma calça de helanca bordô. Será que a moça sofria de má circulação nas pernas? Era tão apertada que a fazia andar como um autômato. Mas tinha que confessar que lhe caia bem. Com todo respeito é claro, já que não tinha olhos para mais ninguém.

 

— Diolindo! Que bom te ver bem – Ronronou a mulata com um semblante de quem realmente estava preocupada com ele.

— Sim, tudo bem. Queria uma cerveja.

— Desculpa, mas tenho que perguntar. Têm certeza?

— Toda.

 

Mas ele não tinha certeza alguma. A sua vida era uma montanha-russa das boas. Como todos os acontecimentos dos últimos dias, esquecera de escavar o dente da Mãe para resgatar o diamante, que deveria quitar as prestações de Desirée. Tinha uma chave que abria um cofre que tinha coisas que seriam do seu interesse. Tinha profanado a sepultura de sua Mãe por duas vezes por isso. Ah! Tinha dois sacos cheinho de ossos humanos dentro de uma cisterna no seu quintal.

 

E cá pra nós, coitado de Diolindo que não sabia do cachorro que ele enterrou vivo na cova de sua Mãe.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O CAMALEÃO SIDERADO" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.