O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 32
Capítulo 32




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/673114/chapter/32

Com os bigodes batendo mais que asas de urubu pra alcançar a carniça, Almeida preferiu pegar o pau de arara noturno que percorria a estradinha que ligava o arraial à estrada principal, por onde o ônibus seguia até a capital, que era por onde o véio Zuza garantiu que eles tinham ido. A não ser que ele tenha se enganado, poderiam estar em qualquer canto dos parcos quilômetros daquela via precária. Despediu- se de Santinha e pediu que ela agradecesse a sua filha pela hospitalidade. Subiu no caminhão e sentou num espaço exíguo do banco de pau duro já plenamente ocupado pela gente que voltava pra roça depois de comprar os secos e molhados da semana. A despeito de duas galinhas passarem a viagem toda bicando a bainha da sua calça, ele se concentrava na canção que tocava num gravador cassete de um dos passageiros.

 

Pai

Pode ser que daqui algum tempo

Haja tempo pra gente ser mais

Muito mais que dois grandes amigos

Pai e filho talvez

 

Pai

Pode ser que daí você sinta

Qualquer coisa entre esses 20 ou 30

Longos anos em busca de paz

 

Pai

Pode crer eu tô bem, eu vou indo

Tô tentando vivendo e pedindo

Com loucura pra você renascer

 

Pai

Eu não faço questão de ser tudo

Só não quero e não vou ficar mudo

Pra falar de amor pra você

 

Pai

Senta aqui que o jantar tá mesa

Fala um pouco tua voz tá tão presa

Nos ensina esse jogo da vida

Onde vida só paga pra ver

 

Só conseguia pensar em Clarice, Selma, Babi e Joãozinho. E chorar discretamente com o bigode epilético servindo de limpador. Não tinha pecado muito na vida e achava que não merecia o fardo imputado a ele. O que será que tinha feito de errado a não ser trabalhar demais? Amara sua esposa e nunca lhe traíra, ao menos nos termos clássicos. Claro que no início do casamento quando ainda era um gajo atraente roubara alguns beijos de uma meia dúzia de sirigaitas, mas nada além disso. Considerava arroubos de uma juventude bem vivida na comunidade, onde a educação que recebera dos seus pais prevalecera sobre as tentações do lugar. Lembrou quando vira pela primeira vez um frasco de lança perfume nas mãos de um colega de escola. Ele lhe entregara o vidro achando que saberia usar o líquido entorpecente. Fora alvo de chacotas quando cobrira o corpo com aquilo achando tratar-se de uma perfume que atraía garotas. Passou o dia com os mangangões da sua sala lhe cheirando as mangas da camisa por ter desperdiçado o líquido que consumiriam durante um show à noite.

 

Olhava a lua com uma fadiga lhe chegando na mente, quando teve certeza de avistar o vulto do capataz do seu falecido genro andando num acampamento parcamente iluminado na beira da estrada. Esfregou os olhos e apurou a vista achando que tinha se enganado, mas conhecia muito bem aquela silhueta troncuda que andava como o corcunda de notre dame. Levantou-se e bateu na cabine do caminhão pedindo pra descer. Caso estivesse enganado não saberia onde passar o resto da noite. Quem sabe não lhe dessem guarida até a alvorada.

 

###

 

— Larga de ser preguiçoso hômi e me ajuda a levar isso até aquele buraco ali – Reclamava Godô da pouca ação de Romeu, que só fingia estar carregando a ponta mais pesada da enorme cruz construída para pregar o padre nela.

— Godô, o que cê vai fazer com o padre. É um homem que recebeu as ordens sagradas. Num merece sangrar nisso aí não – Protestava bufando teatralmente achando que quem estava pagando os pecados antecipados era ele mesmo.

— De sagrado ali só as ropa. O resto é comida de urubu. Quando o dia amanhecer ele já vai ter partido pros quintos dos inferno.

— E os outros?

— Depois que pregar o padre aqui a gente dá um jeito neles. Num esquece do acordo. Ocê só vai matar a mulata. O magrelo sumiu e a minha Gemima também. O polícia também deixo cocê, mas o casal é meu – Ordenou já enfiando a ponta da cruz no buraco e começando a por terra para preenchê-lo.

 

Romeu achando que matar polícia trazia prestígio, ficou satisfeito, e mais ainda sabendo que a delícia da irmã da patroinha ia ser toda sua. De repente ficou feliz por não ter ligado para Dona Clarice, aquilo ali tava muito mais divertido e ainda por cima tinha recebido a metade do dinheiro adiantado, que tava guardado embaixo da moringa de água em casa. Que sua mulher não descobrisse aquela pequena fortuna até ele voltar e picar a mula dali pra sempre.

 

Com a cruz em posição de uso, Godô foi buscar Franco e pediu ao comparsa que buscasse a caixa de ferramentas e os pregos.

 

— Ora, ora, ora se não é o rascunho mal feito de Lampião dando o ar da sua graça – Ralhava Franco vendo o homem se aproximar.

— Cala boca velho. Aliás, abra a boca e me diga onde tá minha Gemima? – Perguntou sacudindo o revólver nas fuças do homem.

— Provavelmente caçando tatu para me apetecer as tripas.

— Já vi que ocê não vai colaborar, intão vamo adiantar o seu passamento.

— Calma criatura agourenta! Eu também estou preocupado com ela – Retrucou com o semblante carregado – Você não fez nada com ela não é?

— Ainda não. Mas isso é da minha conta.

— Então se você vê-la por aí, lhe dê um recado. Diga que o meu pau está com saudades. Ah, ah, ah! E batendo continência como um soldado doido pra usar o canhão!

— Ande, levante a sua bunda gorda daí, tenho uma surpresa procê – Mandou, encostando a arma na cabeça do velho, que levantou com dificuldade e pôs-se a caminhar para os fundos resmungando.

 

###

 

Ainda atordoada, ela se levantou com as pernas bambas e olhou pro lado. Um fruto de bom tamanho se partira com o baque na sua cabeça. Ainda bem que era uma jaca mole, caso contrário estaria pedindo a bênção a São Pedro àquela altura. Ouvindo o choro de Babi apressou o passo. Passara algumas horas desacordada e a escuridão já cobria a casa.

 

Nunca tivera uma casa antes que pudesse chamar de sua. O mais próximo disso fora um quartinho que alugara numa pensão quando contava com dezoito anos e decorara como queria. Pôsteres de Ronnie Von e Jerry Adriani e fotos de Rosemary. Como ela gostaria de ser Rosemary! Até lhe imitava nas roupas quando ganhava um trocado a mais ajudando os filhos das suas amigas com os trabalhos da escola. Aquele quarto fora o primeiro espaço que podia fazer o que lhe desse na telha desde que saíra da casa da sua mãe, uma alcoólatra inveterada que levava os amantes para o seu lar e, ali mesmo, no sofá, praticava seus atos libidinosos, enquanto ela assistia impassiva a televisão. Quando um daqueles homens ameaçou tocá-la de forma mais agressiva, já o esperava com a fivela do cinto enrolada em uma das mãos. Depois de vazar-lhe um olho, sua mãe a culpou, dizendo que estava tentando roubar o seu homem, e a colocou no olho da rua apenas com as poucas roupas que tinha.

 

Desde então passara a trabalhar como garçonete, balconista, cozinheira e tudo mais que lhe parecesse trabalho honesto. Recebera várias propostas para vender o seu corpo, e recusara todas sem arrependimento. Mesmo naqueles dias, depois de parir, e já no início dos quarenta anos, ainda era uma silhueta de respeito.

 

Olhou-se no grande espelho do quarto e se despiu lentamente apreciando suas novas curvas. Nua, ajeitou Babi em um dos peitos carregados de leite e a amamentou se perguntando quando o seu homem iria chegar, e como seria fazer sexo com um sexagenário. Teria que se preparar para lidar com aquilo. Não poderia ser tão ruim se deitar com um homem tão bom, ou seja, o prazer viria antes do prazer propriamente dito.

 

###

 

Diolindo se desvencilhou das mãos de Gemima que já apertava os seus bagos outra vez, e viu a cruz ser erguida e fincada no chão pelos dois bandidos. Agora já adivinhava o que eles tinham em mente. Algo precisava ser feito. Gemima o olhava com cara de preocupação e tesão, tendo este último se arrefecido quando ele falou sério.

— Quero que você fique aqui de olho em tudo e não me vá fazer nenhuma loucura. Espere até que eu volte. Vou tentar impedir que alguém morra – Falou sério, limpando o resto da baba do ataque que sofrera, e que ainda lhe cobria os cantos da boca.

— Claro, eu fico aqui, mas não demore, ou eu vou enlouquecer sem poder fazer nada pra ajudar.

— Você já vai estar ajudando – Disse já se esgueirando na escuridão em direção ao acampamento, dando uma volta por trás das barracas vazias mais afastadas, vendo o seu pai ser levado para ser crucificado, mas notando também a passagem de um caminhão que parecia estar diminuindo a velocidade. Aproximou-se da margem da estrada, esticou o pescoço, tentando enxergar na escuridão e teve certeza que viu uma pessoa descer dele. Essa pessoa agora caminhava na direção dele. Voltou para esconder-se em uma moita alta e ficou ali na espreita de quem poderia ser a criatura que tanto poderia ser a sua sorte grande, como a corda que iria lhe enforcar. Olhou para trás quando ouviu os urros do seu pai, no momento em que o primeiro prego lhe varou os nervos de uma das mãos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O CAMALEÃO SIDERADO" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.