O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 24
Capítulo 24




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Fora uma noite muito dura, especialmente para Sérgio, que nunca sequer havia pisado os pés numa delegacia, e dormira na carceragem junto a bêbados mambembes e ladrões de sabonete. Seu sobrenome pomposo e quatrocentão fora desonrado para sempre. Estaria gravado em âmbar nos anais da sociedade. Era o caçula de seis irmãos e dera o azar de nascer atemporão quando sua mãe achava que não poderia ter mais filhos e, o seu pai, à essa altura, já estava na bancarrota. Enquanto os seus irmãos mais velhos aproveitaram a boa vida por anos, ele se contentara com as migalhas que lhe restaram durante a sua adolescência. Um séquito de narizes torcidos foi o que conseguiu testemunhar no seio da própria família quando foi obrigado a sair da escola internacional e se transferir para um educandário de classe média. Haviam lhe acostumado com o melhor por pouco tempo e lhe tiraram o doce da boca justamente quando começava a saboreá-lo.

 

— Vocês estão bem? – Perguntou Geraldo, o primo de Sérgio, advogado que lhes pagara a fiança e conseguira um habeas corpus como num passe de mágica.

— Na medida do possível – Respondeu Clarice, com a maquiagem borrada e os olhos injetados frutos de uma noite que imaginava que nunca mais acabaria.

— Eu levo vocês até o carro e de lá vocês seguem pro hospital pra ver a criança. Depois conversamos sobre como vai se desenrolar o processo. Sérgio, não se preocupe em me reembolsar a fiança. Vamos, que daqui há uma hora tenho uma reunião.

 

Sérgio abraçou o primo. Teve vontade de chorar, mas ali não era lugar nem hora para isso. Seguiram no carro de Geraldo até o estacionamento do hipódromo. Apertaram-se as mãos e trocaram palavras de conforto ao se despedir.

 

O casal sentou no capô do veículo com os vidros estilhaçados sem dizer palavra, como um par moribundo desobrigado a pensar num futuro. Num gesto mecânico, Sérgio apalpou os bolsos e viu o que sobrara do dinheiro emprestado mais cedo pra apostar. Era ainda um saldo considerável. Olhou para a construção imponente pelo lado de fora, onde ricos sedentos por diversão fugiam dos problemas do dia a dia apostando em animais de fina estirpe, alguns dos quais propriedade deles mesmos. Olhou o rosto da mulher que amava e, num fiapo de voz, apenas lhe pediu.

— Retoque a maquiagem, vamos entrar aí.

 

E sem qualquer resquício de crítica no seu semblante, deram-se as mãos e entraram no tempo de apostas para ver no que dava mais uma vez, sem qualquer lembrança da criança abandonada na UTI de um hospital público.

 

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Ele preencheu o cheque caução com a atenção de alguém que dispensa cuidado a um ente querido. Entregou na recepção e pediu um quarto particular enquanto aguardava notícias vindas da sala de cirurgia. Quando se preparava para folhear a mesma revista pela terceira vez, uma enfermeira chega apressada.

 

— O senhor não quer assistir ao parto? Não é o pai? – Venha – Lhe ordenou puxando-o pelo braço sem deixá-lo explicar nada. Um segundo depois, desistiu de explicações e seguiu o caminho traçado pela moça de branco até a sala onde Florinda ganharia o seu bebê com todo conforto e, acompanhado pela melhor equipe de obstetras disponível por ali.

 

Perdera tempo demais trabalhando e não vira as suas filhas cresceram, o que julgava um pecado diante de Deus. Mas jurava que se aquela fosse uma nova chance, ele se redimiria. Sabia que não poderia mais ser pai por meios naturais, já que suas poucas ereções eram muito raras, e mesmo assim a custa de estimulações visuais, vídeos estes que escondia no cofre do bar para que não soubessem o quanto ainda gostaria de ser viril. Ainda tinha o apetite e nunca desistira de se sentir homem outra vez, mas as oportunidades não lhe pareciam adequadas.

 

Depois que sua Bibinha morrera, apareciam as urubus-fêmea de sempre para lhe cortejar de forma descarada, mesmo quando ainda vestia o seu luto. Ninguém que fosse digna, ou que lhe chamasse atenção. Mas o furacão Florinda lhe atropelara os sentidos sem piedade, e ele estava realmente gostando de ter tido todos os ossos fraturados por aquele acidente. Doce atropelo. E agora estava ali, com uma viatura de polícia subtraída, assistindo um parto de uma criança que ele gostaria de gritar que era sua, e pensando em vender os seus negócios pela primeira vez em mais de cinquenta anos. A vida não dava voltas, ela dançava flamenco na sua frente batendo as castanholas com força.

 

Babi nasceu em meio aos seus devaneios e quase se esqueceu de tirar uma polaróide para registrar o momento. A máquina fora um mimo do hospital, que fazia questão que todo bom cliente levasse a recordação das suas vidas guardada num álbum. Depois de se certificar que Florinda e a bebê estavam bem, ligou pra delegacia e pediu que dessem um recado ao detetive Fredson. Pronto, tudo estava esclarecido. Esperava não decepcionar às filhas na questão da festa surpresa, mas o que era aquilo comparado ao que o seu coração estava sentindo? Melhor separar as coisas e evitar lembranças de Bibinha. Seu mundo agora se expandia com Florinda e Babi, que cresceria junto com o seu neto João. Que coisa louca esse mundo e a cabeça das pessoas que nele habitam.

 

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Como aquelas duas deusas vieram parar numa pocilga perdida no meio do nada? – Pensava Godô, enquanto Romeu voltava do balcão com uma cerveja, e que também logo viu as mulheres sentadas numa mesa sozinhas. Uma era baixinha e morena, das coxas grossas e seios pequenos, com um cabelo curto estilo rabo de porco que lhe ornava bem as bochechas fartas, a outra era branca e mais comprida, com sardas que se espalhavam pelo rosto e bem mais magra que a amiga. Descobriram logo se tratar das novas frentistas do posto de gasolina do quilômetro vinte, que eram solteiras, que gostavam de beber pinga e não tinham um pinto pra criar.

 

— Gostei da baixinha – Afirmou Godô sem fazer questão de esconder que ainda lembrava de Gemima.

— Eu gostaria da outra mesmo que ela fosse o capeta perneta! – Romeu fez troça lembrando da mulher que tinha em casa.

E por ali resolveram se achegar de mansinho, fazendo questão vez ou outra de mostrar aos concorrentes que estavam armados e eram perigosos. Levantaram da mesa, levantaram as calças que lhes caiam e se dirigiram até a mesa das moças que mexiam com gasolina.

— Bas tarde! – Disse Romeu primeiro, tirando o seu chapéu de palha da cabeça.

— Olá, querem sentar? – Perguntou a magrona sem fazer qualquer cerimônia já puxando a cadeira pra ele sentar, e acompanhada no gesto pela amiga que ainda admirava os olhos do seu par como se eles estivessem reconhecendo alguém.

 

E por ali ficaram, cada um tentando se mostrar mais hábil, mais inteligente, superior, como alunos do primário impressionando a primeira namorada. Godô entornava uma cerveja inteira direto na boca da garrafa sem respirar, Romeu passava a ponta da sua peixeira por entre os dedos abertos da mão em cima da mesa cada vez mais rápido, Godô dispunha do arroto mais comprido da face da terra, Romeu disse que cuspiria fogo ali mesmo, e assim o fez. Encheu a boca de pinga, andou até o meio do bar sob os olhares febris dos frequentadores, acendeu um palito de fósforos em frente a boca e soltou o jato da bebida em direção a chama. O que se seguiu foi uma labareda que alcançou o teto de madeira do Cebola Podre, dando início a um incêndio incontrolável, sob as vistas do seu dono, um tal de Aparício, que mesmo com o seu patrimônio virando cinzas, finalmente tirou do bolso duas fichas de telefone e se dirigiu ao orelhão em frente com um estranho sorriso no rosto.

Começou a discar ainda em tempo de ver o MACK 1951 ganhar a estradinha de terra que ia pro arraial com quatro pessoas dentro.

 

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Mesmo mostrando o seu distintivo ninguém parava pra lhe dar notícias concretas. Uns diziam que o bebê estava sendo operado, outros diziam que estava na UTI e suas chances não eram boas, que era pra esperar um parecer do médico responsável. Ele não iria abandonar aquela criança como fizera o seu pai. Aquele sujeitinho metido a besta do Sérgio. Se fosse preciso derrubaria portas pra dar suporte aquela criatura indefesa, cujos pais estavam presos por abandoná-la, como ele fora pelo pai que nunca conhecera. Como que algo a lhe despertar do seu torpor, o seu bipe soa com estridência. Havia duas mensagens. A primeira do Almeida e outra de um tal Aparício. Como ambas eram genéricas demais, ligou para a central.

 

A primeira informava as peripécias do Sr. Almeida na tentativa de prestar assistência a uma parturiente ali na recepção, informando que devolveria a viatura dali a uma ou duas horas. Ele riu sem poder imaginar a cena, relevando o fato de o carro oficial ter sido usado na empreitada. Logo conversariam e seguiriam para o sítio para continuar as investigações e seguir as pegadas dos suspeitos, que ele imaginava não estarem lá a sua espera. O que estava ocupando as suas prioridades era um bebê que não conhecia, mas que queria muito. Antes do seu sangue policial falar mais alto e começar a pedir repostas por ali, escutou a segunda mensagem.

 

FILHO, AQUI É O SEU PAI. EU ESTOU VIVO. PRECISAMOS CONVERSAR URGENTE. MEU ENDEREÇO É...

 

Tornou a ligar pra central de mensagens pra se certificar de que aquela fora enviada para o seu número. Com a confirmação, sentou num banco, fechou os olhos e baixou a cabeça. Um segundo depois, levantou-se com agilidade, andou a passos firmes até uma porta que dizia UTI Pediátrica escrito em letras garrafais vermelhas e chutou-lhe com violência para espanto das enfermeiras que deixaram suas pranchetas caírem. Segurou um médico pelo pescoço e perguntou. – A criança João Almeida Ringlich.

O homem apontou para um berço com respirador artificial que ficava num canto do ambiente frio e escuro. Ele se aproximou do ser frágil e jurou que ele não o iria abandonar nunca. Pediu desculpas ao médico que já chamava a segurança, porém ao ver o seu distintivo, recolocara o fone no gancho. Instruiu a recepção que qualquer alteração do quadro lhe comunicassem imediatamente, pois se tratava de uma emergência policial.

Satisfeito por defender o bebê recém posto no mundo, foi pro estacionamento esperar o Sr Almeida com a viatura, enquanto matutava sobre as ironias da vida. Aquele endereço era exatamente ao lado do sítio para onde estavam seguindo.

 

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Desistiram de ler os suplementos dos jornais com os prognósticos e pela primeira vez usavam a sua intuição, já que desconheciam os cavalos que iriam disputar os próximos páreos e os seus retrospectos. O tempo passara de ensolarado para nublado enquanto o entardecer trazia frio a região do hipódromo. Sentaram-se abraçados nas tribunas para acompanhar os oito páreo que tinham apostado todo o dinheiro que lhes restara, deixando o maior quinhão para o último. Toda a sua atenção estava voltada para quando fossem dadas as largadas e o desenrolar das corridas.

Escolheram um lugar mais próximo da pista a fim de terem uma visão privilegiada da chegada, e dispensaram qualquer tipo de bebida alcóolica que pudessem alterar as suas percepções do momento. Passaram a se falar com os olhos e foram como eles que Sérgio fez o convite a Clarice. Passado o sétimo páreo e a sétima derrota. Com as mãos entrelaçadas, tendo as unhas de Clarice lhe arrancando filetes de sangue da palma da sua mão, viram a largada do último páreo com a noite alta e sem estrelas, escondidas em algum lugar atrás das colunas de nuvens que teimavam em ofuscar as suas vidas. Desceram vagarosamente da tribuna em direção a pista para acompanhar a performance de JACKPOT, que vinha embolado no meio com poucas chances. Cruzaram os seus olhares mais uma vez e, num ato impensado, pularam a grade que os separava da pista quando os cavalos estavam no sprint final para alcançar a linha de chegada.

Com as montarias energizadas pelos seus jóqueis concentrados, não viram quando dois vultos entraram na pista de areia e se jogaram na frente do pelotão, que por não ter o que fazer, passava por cima, atropelando-os sem dó, quebrando-lhes pescoço, perfurando-lhes baços e fígados e desfigurando os seus rostos. Seus olhos destroçados não viram quando JACKPOT, numa arrancada espetacular por fora, cruzara o disco final em primeiro lugar por meia cabeça.


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