O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 12
Capítulo 12




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Apertaram-se como podiam no pequeno automóvel de quatro portas. Selma ao volante com Diolindo ao seu lado, e Franco esparramado no banco traseiro sobrando pouco espaço para Desirée que vinha sentada logo atrás do seu homem, que por sua vez não deixava de olhar de esguelha, certificando-se de que o ex-padre não estava tomando nenhuma liberdade com a sua mulher.

 

— Não se preocupe Lindinho, enquanto eu tiver uma dessas cheinha no meu colo nada me desperta mais tesão – Bradava o velho com a garrafa pousada no meio das pernas.

— Eu não confio em você nem nadando numa piscina de pinga – Devolveu secamente.

Como o velho se calou, Selma imaginou que ele pudesse estar desenhando tal cenário na sua cabeça.

 

Saíram rapidamente da comunidade e pegaram a via expressa que levava ao centro da cidade. Como de praxe, o tráfego começava a se arrastar devido a proximidade da abertura dos bancos e da volta a vida normal depois de alguns dias de anestesia para quem não sabia o que era viver longe de uma crise, fosse política ou econômica. Como os pobres já tinham se acostumado ao cheiro do esgoto, qualquer odor que fosse menos pior já era perfume. Para Diolindo o fim do carnaval poderia ser o início de sua nova vida. Se Dona Dirce estivesse viva estariam rezando para festejar o início da quaresma. Mas ela não estava nem um pouco viva, ele pensou olhando para a caixa com as cinzas dos pais pousada no seu colo. Ainda não sabia porque tinha trazido aquilo consigo, mas era como se ele se sentisse mais seguro com o símbolo da presença dos dois ali junto ao seu corpo.

 

— Você vai conseguir fazer o que precisa ser feito sem mim? Quer que eu fique no carro com eles? – Indagou a mulata sem tirar os olhos do trânsito.

— Não tenho certeza. Queria apenas pegar as coisas do cofre e decidi deixar essa caixa lá – Disse apontando pros pais em pó – Mas não sei como as coisas funcionam. Eu sempre acho que vão me fazer perguntas que eu não sei responder, me colocar contra a parede e me impedir de fazer o que eu preciso.

— Então eu entro contigo. Vou pôr o carro no estacionamento do banco que é mais seguro e Franco há que se comportar.

— Pensei em colocá-lo no porta malas – Sugeriu Diolindo vendo o homem no banco de trás dar um pulo.

— Não meu bom homem eu imploro. Excetuando-se as vaginas adolescentes eu tenho medo de lugares apertados – Disse em tom de deboche rindo-se em seguida para desgosto de Selma que balançava a cabeça para os lados.

 

Diolindo estava conseguindo manter o autocontrole, mas seria um teste difícil deixar o velho desamarrado com Desirée ao seu lado dando sopa. Ele passou a mão para trás e alcançou a dela, e foram assim até o carro chegar ao seu destino enquanto Franco seguia silencioso como uma tumba.

 

— Você trouxe a chave? – Selma questinou-o abrindo a porta do carro

— Está comigo junto com a senha da conta. Devo ter algum saldo aí. Se puder vou sacá-lo todo. Não tenho muita intimidade com aquelas máquinas de cuspir dinheiro. O seguro de vida de mamãe ainda leva mais uns dias pra depositarem, eu trouxe o atestado de óbito – disse desenrolando um papel todo amassado no bolso que a mulata pegou e deu uma aparência melhor.

Selma tinha consciência da transfiguração do homem que saia da sua zona de conforto e entrava numa selva desconhecida. Diolindo parecia fragilizado, com medo, como se aquela gente que circulava por ali não fosse da mesma raça que a dele. Quiçá de fato não fosse, pensou com dor no coração.

 

Entraram no banco e tiraram uma senha pra falar com o gerente de contas. O homem lamentou o falecimento de sua mãe e os encaminhou a um guarda da agência que os acompanharia até o cofre numerado contratado. Carregando a caixa de cinzas como a um bebê, ele era seguido por Selma que abreviara os problemas que ele teria se tivesse ido sozinho. O guarda os deixou a sós num corredor com chão de mármore e pé direito alto não sem antes indicar a direção do cofre que buscavam. Ele introduziu a pequena chave e extraiu a caixa de metal quase sem peso, abriu e tirou um envelope pardo. Era tudo o que havia de conteúdo. Depositou a caixa de cinzas, fez o sinal da cruz e tornou a fechar o último local de repouso dos seus pais. Ali estariam seguros para sempre. Enquanto uns iriam ao cemitério no dia de finados, ele viria na véspera ao banco. Era quase a mesma coisa, exceto por não poder acender uma vela.

 

— Pronto? – Perguntou a mulata com toda a paciência.

— Sim. Não sei se parece engraçado pra você, mas eu saquei o dinheiro e depositei os meus pais.

— Parece sim, mas é humor negro. Às vezes ocorre de rirmos de coisas que não deveríamos. Depois uns choram, outros se penitenciam e outros continuam a sorrir – Explicou sorrindo em seguida para mostrar que não era crime achar graça da morbidez da situação.

— Vamos embora que Franco tá lá só com Desirée – Apressou-se pensando as piores coisas possíveis depois que testemunhara o velho em cima de sua mulher.

 

No carro as coisas iam bem enquanto ambos estavam ausentes.

— Não tenho mesmo com quem desabafar então vai tu mesmo né? – Vociferou Franco enquanto tomava outra dose – Eu não disse ao seu noivo, que o pai dele era um veado de griffe. Sabe daqueles que fingem a bonequice, moram num armário côr de rosa pra sempre? Pois é, por isso que sua sogra me pediu pra dar cabo no infeliz, antes que ela passasse vergonha quando descobrissem. E já tava por um fio. Eu menti pra ele dizendo que era porque iamos ficar juntos e blá blá blá toda aquela babaquice de novelinha de quinta. Mentira, eu menti pra não abalar ainda mais aquela cabecinha frágil que tá a ponto de surtar. Era um casamento de fachada. Ele botava dinheiro em casa e ela criava o filho e ponto final. Nunca transaram na vida. Sabe o que isso significa loirinha? Desconfio seriamente que aquele homem de cinquenta anos seja o meu filho. Fruto de uma única trepada. Isso é que é tiro certo né? Rárárárá! Epa, bico calado ok? Rárárárá! – Gargalhava pondo o dedo indicador na boca.

 

— Quem contou a piada? – Perguntou Diolindo enquanto entrava no carro vendo o padre banhado de suor e rindo quase sem fôlego.

— Essa sua noiva é uma humorista classuda. Imaginem vocês que eu sugeri que talvez pudéssemos assaltar o banco enquanto vocês distraiam o gerente. Ela me disse que fantasiados de padre e noiva era melhor assaltar cofres de igrejas de bairros abastados enquanto vocês assinavam o livro de testemunhas!

Com a falta de graça ou de compreensão da piada, Diolindo e Selma entraram no carro e logo sairam do banco.

— Tô com fome! – Afirmou a mulata praticamente definindo que comeriam algo antes de retornar a comunidade.

— Eu tô com sede! – Gritou o padre no pé do seu ouvido sacudindo a garrafa vazia.

— Tudo bem, mas Desirée precisa se alimentar também. Ela quase não come – Disse Diolindo com um semblante de tristeza e falta de curiosidade de saber o que tinha no envelope que passava nervosamente de uma mão para outra.

— Pedimos uma pizza e comemos no carro, que tal?

— Excelente idéia moça-prestativa-que-me-ajudou-em-tudo, e da calça de cordura.

— Como você sabe o nome do tecido?

— Minha mãe era uma costureira marrenta, e era eu quem comprava os tecidos quando lhe dava na telha aceitar alguma encomenda.

— Eu sei que sua mãe costurava, porque ouvia minha mãe dizer que Dona Dirce sempre era muito ocupada e nunca conseguia lhe fazer umas roupas.

— Ela costurava muito pra fora – Disse o ex-padre na esperança de fazer alguém rir, mas ao invés disso levou uma cachação no nariz que o fez apagar.

 

Selma viu o quanto seu homem era intempestuoso quando algo lhe tirava do prumo, mas ao mesmo tempo sabia que ele tinha razões concretas pra sair do sério.

— Desculpe por isso, eu não consegui me segurar – Disse olhando seguidamente para Selma e Desirée, que tinha sua cabeça sintética olhando para o velho como se a ralhar do infeliz pelo que ele lhe revelara há pouco quando estavam a sós.

 

Selma desceu sozinha do veículo e comprou duas pizzas grandes. Voltou ao estacionamento do restaurante e encontrou Franco mijando no pneu do seu carro como um cão bêbado.

— Não me diga que nunca viu uma dessas baby? – Ronronou sacudindo o membro e tentando pô-lo de volta na ceroula.

Alguns carros que entravam no local buzinavam com jovens ao volante gritando em tom de brincadeira.

— Aí Padre, o carnaval acabou ontem!

— Mas a farra continua seus fedelhos de merda! – Retrucava o velho apontando o dedo médio a quem passava.

 

Diolindo, sentado no banco do carona em estado de paralisia, não via nada do que ocorria ao seu redor depois de abrir o envelope que sua mãe lhe deixara e ler o seu conteúdo. Selma foi em seu socorro enquanto o ex- padre batia ruidosamente a porta traseira do carro após entrar no veículo.

 

— O que houve? – Perguntou com preocupação ajoelhada no chão ao lado da porta do carona aberta.

— Essas eram as informações que eu precisaria pro meu futuro? O que tá escrito aqui acaba completamente com a perspectiva de um futuro. Porque ela não me disse tudo isso em vida? Com certeza por falta de coragem de me enfrentar, de assistir o meu rosto desfigurando ao vivo na sua frente. Medo. Mas medo maior agora tenho eu sobre o que fazer com essas informações.

— Use-as ao seu bel prazer, como lhe convier, não acha?

— Acho que esse lixo que tenho aqui não recicla.

— Quer me contar?

— Quero.

— A sós?

— Não. Esse verme aí atrás faz parte disso aqui – Disse sacudindo o envelope. – Aqui a minha mãe me revela que esse traste aí atrás é meu verdadeiro pai. – Revelou olhando pra trás e encontrando um ser degenerado , arreganhando os dentes podres e sem um pingo de vergonha na cara.

— Eu não falei loirinha? – Disse o velho cutucando com o cotovelo a barriga de Deisirée.

— Essa coisa aí infeccionou o útero da minha mãe com um dos seus espermatozóides cancerosos e fez aquela barriga inchar com um arremedo de embrião dentro. Esse talzinho se desenvolveu e deve ter lhe provocado náuseas de nojo pela doença que devia ser visível em poucos meses pelo inchaço do ventre. Eu não nasci, eu fui regurgitado no mundo, fruto da imundície de duas pessoas. Dois seres doentes.

 

Selma puxou a cabeça dele pro seu peito e acarinhou-a como a um filho. Mas não era esse sentimento que nutria por ele. Ela o amava sem qualquer sombra de dúvida e não deixaria ele cair por nada. Olhou pra cara do salafrário no banco de trás, que lambia lascivamente a boca da garrafa. Aquilo era um rejeito da natureza que Deus um dia acolhera em Sua casa e não suportando mais o expulsara sem chance de redenção. Se nem Ele aguentara o comportamento deletério do sujeito, porque um mortal o faria?

 

Naquele instante, a mulata da calça de cordura côr de abacate e olhos cor de mel, decidiu transportar aquela família estranha para a casa da sua irmã. Ligou o carro e saiu do estacionamento, jogando as pizzas intocadas pra fora do carro sem que ninguém protestasse.


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