Lágrima Escarlate escrita por Evo Gonzales


Capítulo 7
O cortejo




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***

Vinha à frente do cortejo quatro homens encapuçados segurando estandartes com tochas em labaredas. Duas filas os seguiam. Entre eles, mulheres de véus em diversas cores e homens com turbantes doloridos. As roupas, em tons fortes com predominância de laranja e vermelho, cobriam todo o corpo.

Alguns traziam incenso. Outros, lâmpadas de argilas com o fogo queimando em azeite. Algumas imagens de deuses estavam em um andor sustentado por quatro pessoas vestidas de branco.

As pessoas do cortejo entoavam um mantra compassado pelas batidas surdas de um gongo.

As roupas coloridas bailaram sutis à leve brisa daquela tarde. Destoava do colorido, apenas um lenço negro que cada um trazia amarrado ao pescoço.

A brisa deitava levemente as luzes das tochas e lâmpadas, sem que as chamas se dissolvessem, promovendo um espetáculo agradável aos olhos do rapaz.

Eles caminhavam lentos, com cada passo cadenciado pelas batidas do bongo. Quando ele soava, o grupo fazia seu movimento orquestrado.

Dylan, à sacara, ficou a olhar o cortejo. Notou que alguns dos transeuntes observavam a corte com louvor, reverenciando as imagens sobre o altar. Outros, porém, desviavam o olhar e tomavam outra direção.

Logo Alícia chegou à sacada observando o olhar curioso do menino.

— O que é esse desfile? - Perguntou curioso sem desviar o olhar do cortejo.

— Estamos no outono, é quando comemora o Diwali. Essa cortejo faz parte das comemorações. - Pousou seus braços sobre a sacada, ficando na mesma posição que o rapaz.

— Diwali? nunca ouvi falar. O que é? - Desviou o olhar da rua e o trouxe à Alícia por um instante.

— Bom, ele é também conhecido como festival das luzes. Você deve ter notado que a cidade está toda iluminada. - Apontou para casas próximas e aos edifícios ao longe, onde algumas luzes já brilhavam naquele princípio de anoitecer. - Há muitos balões também, você vai ver melhor à noite. Eles formam um belo espetáculo.

— É como o Festival de Glastonbury? - Despejou ironia.

— Não. - Ela riu. - Este tem cunho religioso, não artístico. Na verdade, ele simboliza a destruição das forças do mal. É assim: o Diwali mesmo será daqui a dois dias, na noite de lua nova, a mais escura do ano. Marca a transição entre a Lua Minguante com a Lua Crescente, simbolizando a passagem das trevas para a luz. É o primeiro dia do mês lunar Kartika, quando o sol entra em Escorpião.

Dylan não se ligava muito nessas mitologias, mas achou interessante observar o que estava acontecendo. Ao menos teria algo para fazer naquele país infernal e ensosso.

— E aquelas imagens, o que são? - Apontou para o andor carregado por homens de branco. - Aquelas carregadas por membros da Ku Klux Klan.

Alícia riu pela alusão que o sobrinho fez à ceita americana.

— São as imagens de Vishnu, Shiva e Brahma. Eles são as divindades mais populares por aqui.  Brahma é o criador do universo. Vishnu tem o poder que mantem o universo. Shiva tem o poder de destruir e transformar.

— Puxa, acreditar em um deus já acho muito, aqui eles acreditam em três.

— Na realidade nós... eles... acreditam em uma infinidade de deuses. Esses três são apenas os mais “famosos”. - Assinalou aspas com os dedos. - Esse grupo aí, por exemplo, são adoradores de Kali, a deusa da morte.

— E qual é a estátua dela? - Olhou tentando encontrar outra estátua.

— Ela não é representada por uma estátua pois acreditam que ela está viva. Que foi reencarnada.

Dylan silenciou por um tempo sem dar importância, observando os passos compassados do cortejo. Depois falou.

— Há quanto tempo você mora aqui, Alícia?

— Bem, já fazem quase dezesseis anos. Vim logo depois que me desentendi com sua mãe.

— E acredita nessas coisas? Nesses mitos?

— Bem, a religiosidade aqui é muito forte, como você vê. E mais que religiosidade, essas crenças carregam uma espécie de filosofia de vida, então, é difícil para alguém que more na Índia não estar, de alguma forma, ligada a essas crenças. Então, eu acabo por vivenciar algumas coisas...

Depois, Alícia sorriu e voltou-se ao rapaz.

— E você? Deve achar isso tudo um absurdo?!

— Bom, realmente para mim são mitos e nada mais. Essas pessoas podiam estar fazendo coisas mais úteis, divertindo e tals, e estão aí, carregando estátuas de barro e atrapalhando ainda mais este trânsito caótico.

Alícia riu.

— Bem diferente de Marselha não é? Não sei se você se adaptaria aqui por muito tempo.

Ele se manteve calado enquanto observava.

Viu então, ao centro das duas fileiras, uma figura escoltada por quatro homens. Como aqueles que carregavam o andor, eles também vestiam túnica branca e capuz na cabeça. Sustentavam tochas e a cada passo, ao som do gongo, batiam com a extremidade inferior ao chão.

Dylan firmou a vista para discernir a figura que aqueles homens guarneciam.

Ainda que levemente coberto pela penumbra do entardecer, identificou um menino, talvez com a sua idade. Possuía cabelos negros e lisos à altura dos ombros. Semblante um tanto triste no rosto moreno, de pele macia e sedosa. O corpo com traços delicados e sutis, como desenhado por um deus perfeccionista.

Trazia um manto de ceda leve em vermelho carmim, que bailava à leve brisa daquele entardecer.

Dylan fixou os olhos naquele menino. Ficou sem nada dizer, apenas o observava atento.

Quando o rapaz escoltado estava à frente da sacada, voltou os olhos à Dylan e os olhares cruzaram por um instante. No menino cresceu um sorriso tão enigmático quanto o olhar.

Dylan sentiu algo estranho. Um bater mais forte do coração. Uma sensação esquisita, porém, agradável. Se viu preso naquele olhar, como se chegasse até os confins de sua alma, como se desvelasse seu espírito. Os poros arrepiaram e um calafrio lhe percorreu o corpo, causando um leve tremor.

O menino desviou o olhar e Dylan continuou a o observar atento. Depois de um tempo, falou ao infinito.

— Eu… eu vou lá embaixo para ver melhor… achei interessante. - Sua voz saiu um tanto rouca, turva pela emoção.

Já ia deixar a sacada quando foi contido pela tia.

— Não Dylan. - Segurando o menino pelos braços. - Esse grupo é perigoso. São tradicionais e radicais. Acreditam em crenças já há muito esquecidas pela religião hindu, mas que alguns grupos ainda vivenciam e defendem.

— Que crenças são essas? - Franziu o cenho buscando entender por que a tia o continha em ver de perto aquele cortejo.

— Alguns meninos desapareceram nos últimos tempos. Não há provas, mas há rumores de que tenham sido sacrificados à deusa Kali.

— E que tem esse grupo a ver com isso?

— Este grupo representam a linhagem dessa Deusa. Aquele menino que passou a pouco, eles acreditam que é a reencarnação de Kali, e não me agradou a forma de como olhou para ele. É bom você manter distância dele.

— Eu só queria ver mais de perto… não ele… o cortejo. - Balbuciou, talvez envergonhado pelo sentimento que tivera ao ver aquele garoto.

— Você é gay, Dylan? - Perguntou olhando fundo nos olhos do rapaz.

Ele se surpreendeu com a pergunta.

— Não… é claro que não. - Respondeu de vez, não deixando margens para dúvidas.

— Desculpe. Não precisa ficar nervoso. Só achei estranho a forma de como olhou para ele… e ele é muito belo, já o vi algumas vezes no mercado, tem traços de androgenia. - Soltou os braços de Dylan, ainda que mantivesse os olhares cruzados e tensos.

— E como se chama?

— Bellan. Mas só sei o nome, não o conheço bem.

Dylan desistiu de descer e voltou à sacada, observando o cortejo que agora distanciava um pouco mais. Pôde ainda ver o menino olhar por sobre os ombros em sua direção. A penumbra nevoava as expressões, mas podia jurar que o menino sorriu para ele.

Alícia, que bem notava o que estava se passando, se mostrava apreensiva.

— Não se envolva com ele, Dylan. Esse grupo o venera e o guarda trancado a sete chaves até o dia em que a deusa se manifestará. - Debruçou também na sacada, acompanhando o sobrinho em seu olhar distante e pensativo.

— E quando será?

— Daqui a dois dias, no dia do Diwali. Neste dia eles creditam que a deusa irá se manifestar nele e ele irá se tornar o líder do grupo.

— E para onde eles estão indo agora? Para algum templo? - Olhou o grupo se perder em uma curva da rua, por entre vacas, pessoas e carros.

— Estão indo em uma praça aqui perto onde há festejos e comemorações. Depois podemos ir lá, se você quiser. - Sorriu ao rapaz.

Dylan voltou seus olhos à Alícia e um sorriso tímido cresceu em seus lábios. Depois voltou seu olhar para o local onde o grupo havia desaparecido.

— Sim, eu quero. - Respondeu.

***


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