Ondas de uma vida roubada escrita por Maresia


Capítulo 100
A cruzada do passado




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A verde e calma floresta vagueava silenciosa pelas areias vazias e paradas do tempo, as enormes e tímidas árvores esvoaçavam através da brisa húmida da nostalgia, os seus ramos esguios e inseguros tocavam o alto e observador céu, beijando-o com a delicadeza subtil da frescura, o rio, pensativo e ondulante, adormecido percorria os olhos caprichosos e molhados de uma mulher cujos passos decididos faziam a vegetação gemer de dor, enquanto o seu cabelo flamejante pegava fogo ao verde puro e angelical da natureza.

— Eu sabia que te encontraria aqui, meu velho amigo. - Murmurou a voz cruel e baixa de Natacha, olhando com atenção um homem que sozinho pescava a sorte lúgubre da vida.

— Como tens passado minha cara Natacha? - Perguntou a voz rouca e distante de Bruce Banner, mantendo os seus ausentes olhos fixos nas águas serenas do rio. - A avaliar pela tua presença neste sítio, acredito que a tua vida passou por momentos bastante atribulados, ou então foste enviada para me matares, qual das duas hipóteses está certa, diz-me lá?

— Posso sentar-me? - Inquiriu a Viúva em tom sumido, apontando para um tronco partido ao lado do pescador.

— Bem, já percebi que não me vens assassinar. - Disse Bruce de forma irónica, vendo que a sua velha cana lhe trouxera o almoço, ou assim esperava. - O que se passa afinal? Porque me procuras?

— Preciso de tranquilizar a minha consciência, o meu coração, a minha alma, acho que é isso. - Respondeu a russa em tom amargo e pensativo, partindo distraída alguns ramos que brincavam na margem verdejante do rio.

— Acho que vieste ao sítio errado, eu não sou padre, nem nada que se pareça. - Indagou Banner em tom cínico e baixo, vendo a sua refeição imergir das águas palpitantes. - Na boca de muitos e na mente de outros tantos não passo de um mostro.

— Assim é a realidade, porém até no interior dos monstros mais sanguinários existe algo de bom, algo de confiável, algo pelo qual vale a pena lutar. - Proferiu a ruiva de forma sábia e verdadeira, apoiando o seu queixo aguçado na palma da sua mão. - Muitas vezes dei por mim a julgar as minhas atitudes, os meus pensamentos e até mesmo a minha própria existência, reflectia sobre o meu constante balançar entre as trevas e a luz.

— Queres contar de uma vez por todas o que se passou. - Insistiu o solitário pescador em tom curioso, fitando o rosto angustiado e atraente da russa reflectido nas águas claras do dia.

— Eu fiz o que fiz para a proteger, fiz tudo o que estava ao meu alcance para evitar que ela caísse nas garras do sofrimento, fiz de tudo para impedir que a magoa se alojasse no seu coração, porém nada mais sinto do que arrependimento e vergonha, nada mais do que isso. - Desabafou Natacha em voz triste e desesperada, atirando uma pedra contra a superfície polida das águas. - Se o arrependimento matasse eu certamente já teria abandonado o mundo dos mortais.

— Mas de quem é que tu estás a falar afinal? - Questionou Bruce ligeiramente irritado, assustando alguns pássaros que desfrutavam da calmaria florestal.

— Quando soube do relacionamento dela com o Clint Barton fiquei apreensiva, revoltada e até mesmo furiosa, no início deduzi que era ciúmes, porém rapidamente compreendi que era somente preocupação, o Gavião não é homem para estar com apenas uma mulher, eu sei do que falo, e ela é tão jovem para sofrer as facadas do coração. - Explicou a ruiva em tom cansado, cobrindo o rosto com as mãos, vendo no interior do seu coração destruído o rosto derrotado e desesperado da Sereia. - Fazendo jus ao meu charme e a minha sensualidade tentei por várias vezes seduzir o Clint, provoquei-a, tentei por muitas vezes inferiorizá-la, humilhá-la. - Natacha parou durante uma leve e dolorosa fracção de segundo, precisava de controlar aqueles meteoros incandescentes que abraçavam o seu coração, precisava de encontrar a rendição em algum lugar daquela floresta. - Ao longo do tempo a relação dos dois começou finalmente a fraquejar, estavam cada vez mais distantes, muito mérito dos acontecimentos que atravessaram a vida daquela miúda, mas ainda não era o suficiente, ainda restava uma pequena réstia de paixão que se podia acender a qualquer momento, uma maldita chama que deitaria os meus planos por terra. Finalmente na noite passada a sorte sorriu-me e tudo se desfez em milhares de gotas de orvalho, já nada existe entre os dois, mas acredito que os meios que utilizei não justificam o fim que pretendia alcançar, nunca tinha visto tanto sofrimento, tanta desilusão, tanta raiva dançando nos olhos de ninguém.

— Bolas Natacha foste longe de mais, tu não és ninguém para traçar o futuro de qualquer pessoa. - Declarou Banner em voz indignada, olhando directamente nos olhos daquela mulher, uma mulher capaz do melhor e do pior. - Se vieste aqui para procurares palmadinhas nas costas, podes voltar pelo caminho que vieste, estás a perder o teu precioso tempo.

— Honestamente espero que o Steve Rogers tenha a coragem necessária para fazer o que tem de ser feito, espero que ele finalmente ganhe consciência de que ela é somente uma miúda, tem a vida inteira pela frente, sonhos, desejos, caprichos, vaidades, se continuar junto dos vingadores apenas encontrará a morte, dor e perda. - Confessou a russa de forma sincera e triste, lançando um olhar de esguelha ao tímido sol que espreitava através dos ramos silenciosos da vida.

— Quem é essa miúda Natacha, eu conheço-a? - Questionou Bruce em tom curioso e preocupado, receando a resposta escondida nos lábios da russa. - Diz-me! Vamos! Tenho o direito de saber!

— Sim tu conheces, é a Diana, a jovem que permitiu que neste momento estivesses aqui a desfrutar da tranquilidade e da serenidade da vida. - Desvendou a Viúva em tom baixo e deprimido, o seu olhar arrogante e gélido foi bruscamente ofuscado pela raiva dos olhos parados e distantes do seu grande e conturbado amigo.

— Como foste capaz? Como é que tiveste a coragem de destruir a vida de alguém tão digno, tão puro, tão justo? - Gritou Banner de forma colérica e atormentada, afugentando para milhas de distância os pássaros que faziam daquela calma floresta o seu mais desejado paraíso. - Em toda a minha existência somente me cruzei com um homem com o coração tão bondoso como o daquela miúda, não tinhas o direito de o poluir com a tua maldade.

— Sei do que falas, sei de quem falas e é por isso que me esforcei tanto para a proteger, se alguém descobrisse seria catastrófico, seria uma perda incalculável. - Disse a Viúva em tom audível e aflitivo, gesticulando agressivamente na direcção de Bruce como se os seus gestos transmitissem em silêncio as palavras que não lhe queriam fugir do coração.

— Então quer dizer que ela é...

— Sim, isso mesmo, agora compreendes o que fiz? - Interrompeu Natacha em tom amedrontado, receando que os pinheiros refugiassem algum curioso mal-intencionado.

— Mas se tu descobriste provavelmente mais alguém descobriu, então a miúda corre perigo de vida. - Constatou Bruce em voz alarmada, pousando apressado a sua cana no chão, fitando aterrorizado a atmosfera calma e ilusória, o passado viria ajustar as suas contas e nada poderia ser feito para o travar, somente poderiam esperar e no fim resgatar os sobreviventes dos seus escombros.

— Depois de tudo o que fiz, será tudo em vão. - Desabafou a russa em voz ofegante e arrastada, sentindo cada nervo do seu corpo queimar de arrependimento. - Cometi o maior erro da minha vida.

— Vamos embora, ainda temos tempo, talvez aqueles vermes ainda não tenham tido ocasião para lhe deitar a mão, vamos protegê-la, eu devo isso aquele homem.

Os dois heróis mergulharam rapidamente nas profundezas verdejantes e calmas da floresta, sentindo o telintar do passado brincar em cada grão transparente da brisa, absorvendo a arrepiante melodia da história dançar em cada balada do destino, cheirando o perfume atroz e subtil da despedida, o tempo não dará tréguas.

As nuvens negras e adormecidas e os anjos celestes do inferno acompanhavam com mestria e soberba a travessia maldosa do barco do destino. O mar rugia de dor e tormenta, atravessando o universo com a fúria azul e doce das ondas, virando o tempo de pernas para o ar, lutando bravamente contra as hostes do indubitável passado, combatendo o fogo impossível de extinguir da maldita história, sufocando os gritos de maldade da humanidade, no entanto esta batalha foi inglória, o oceano perdia terreno, perdia força, perdia a coragem à medida que a terra o afundava nas suas malignas trevas.

— Senhor aqui a tem. - Murmurou a voz distante de Jeremy, bailando entre o sorriso da luz e o abraço das trevas.

A porta de um grande e imponente edifício rugiu agressivamente quando aberta pela mão injusta do passado, as sombras invadiram os olhos já negros de Diana, o desespero gelou o seu coração já adormecido, a sua essência desvanecia-se num turbilhão manipulador, nunca mais seria a mesma.

— Tardaste, porém concretizaste a tua missão. - Rosnou uma voz fria e malévola vinda das trevas, fazendo os seus passos ecoarem como mil tambores de guerra numa imensidão escura e infinita. - Como é doce e reconfortante o sabor da vingança. - Sussurrou satisfeito, olhando triunfante os olhos pesados e adormecidos da Sereia, imóvel sobre os braços de Jeremy.

— O que vai fazer com ela? - Perguntou o jovem em voz trémula e insegura, trancafiando Diana numa jaula de vidro que o homem, oculto nas sombras, lhe indicava.

— A curiosidade é um dos maiores e mais perigosos defeitos da humanidade meu rapaz. - Afirmou o homem em tom frio e cortante, passando uma mão negra e maldosa pelos cabelos despenteados da Sereia. - A tua missão está cumprida, chegou ao fim, agora podes ir, deixa-me a sós com a nossa bela amiga.

Jeremy abandonou a divisão, sentindo um peso brutal e agonizante perfurar o seu peito. O seu sorriso falso e manipulado era agora substituído pela verdadeira e transparente mascara da tristeza, à medida que os seus olhos azuis cor do gelo baloiçavam entre o sonho e a realidade.

— Desde muito jovem que aprendi a servir incondicionalmente esta causa, servi-a com exemplar dedicação e empenho, sempre escondi o meu sorriso, a minha infância e o meu coração. - Reflectia o jovem de forma pesada e confusa, sentando-se do lado de fora do edifício, encostando a sua alma perdida a uma parede arenosa, cobrindo o rosto com o tecido rasgado da sua mente. - Nunca pestanejei, jamais vacilei, abracei a mentira e segurei na mão da falsidade, tornei-me um dos seus grandes amigos, mal ela sabia que eu talharia o seu destino e mesmo assim confiou em mim, confiou no rapaz amável e divertido que eu habilmente lhe mostrava. - Pensava angustiado, desfazendo um frágil grão de areia com a facilidade com que destruíra a vida de Diana, assim num único e irreflectido gesto. - Esta sensação é tenebrosa, cruel e fria, gela-me os ossos sempre que fecho os olhos e vejo o seu corpo inerte, imóvel naquela jaula, esperando a triste sorte que guiei até ela. Julguei que ela me era indiferente, somente mais uma missão, a única e derradeira missão da minha vida, mas esta preocupação, esta frustração, este sufoco consomem-me a alma e rasgam-me o coração, provavelmente a convivência com ela tornou-me mais justo, mais bondoso, mais humano, despertou no interior do meu ser sentimentos e emoções que pensava a muito sequestradas pelas trevas.

O misterioso homem moveu-se sorrateiramente nas trevas, apunhalando cruelmente com os seus passos a liberdade do sol madrugador, abafando com a sua respiração profunda e gélida o sorriso cintilante o futuro, adormecendo com o seu pérfido e venenoso coração a vontade imperativa do destino. Bruscamente abriu com frieza um cofre ferrugento, retirando do seu interior uma pequena caixa de cobre e fitou curioso e deliciado o seu malévolo conteúdo.

— Estas esferas vieram até mim através da mão do futuro, um homem poderoso como eu atrai sem dúvida objectos poderosos, como é que eu poderia ter a tremenda ousadia de ignorar um pedido, um capricho, um desejo dos céus. A humanidade, através dos tempos, sofreu mutações, mudanças, transformações perigosas e instáveis que a tornaram imperfeita e repugnante, aqueles que odeio tornaram-se lendas e eu apenas tombei pesado e injustamente no berço do esquecimento, porém desta vez tudo remará ao sabor dos ventos que eu habilmente conduzo. - Proferiu o Homem em tom teatral e audível, cruzando com passos lentos e desenhados a distância que o separava da jovem adormecida. - Estas esferas foram inteligentemente forjadas através de pequenas e raras partículas do desejado Cubo Cósmico que o Caveira possuía com o propósito de devolver à atribulada e perversa humanidade a sua bela e fresca tranquilidade, os sonhos reinarão acima de qualquer pétala de realidade, a maldade sucumbirá à brisa doce da felicidade e as mentiras atrozes e desesperantes perecerão às mãos da verdade transparente e pura, só assim a perfeição será finalmente alcançada, e o mundo reconhecerá o seu salvador e os heróis de agora apenas serão meras sombra do que alguma vez foram. - Disse cruelmente, lançando no ar uma gargalhada fria e cortante que pulverizou as águas azuis da vida com a tinta negra do sofrimento. - E perguntam-me vocês, curiosos incontroláveis e esfomeados, porque é que esta rapariga está aqui? E eu, como um ser amável e misericordioso, respondo com prazer e delicadeza, ela será o início da nova humanidade e o fim dos heróis mais poderosos da terra, ela será a vingança, o caos, o sofrimento e a luz negra da destruição. - Disse em voz sonhadora e falsamente doce. Abrindo lentamente a jaula que encarcerava a alma livre da adolescente, colocando as esferas junto ao rosto pálido de Diana. - Este brilho fosco será o brilho do novo mundo.

— Espere senhor, o que vai fazer com ela? - Gritou Jeremy aterrorizado, entrando apressado na divisão. - Não acha que o rapto não será suficiente para o fazer sofrer? Acha que é realmente necessário torná-la mais uma das suas armas?

— Tanta insolência e estupidez patentes numa pessoa só. - Cuspiu o Homem furioso, atirando o adolescente contra uma parede despida de compaixão. - As oportunidades são escassas como a vida. - Sussurrou perigosamente, pegando com frieza numa arma.

— Por favor senhor...

Porém as aflitivas palavras de Jeremy ecoaram num silêncio ribombante, a melodia agreste das sete balas materializava no universo o bater cruel e leve das asas da morte, enquanto o corpo inerte e vazio do rapaz arrastava a luz negra e adormecida pelo vasto mundo.


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