O Curioso Caso de Daniel Boone escrita por Lola Cricket, Heitor Lobo


Capítulo 30
Here I Go Again


Notas iniciais do capítulo

Então, chegamos, booners. O último capítulo de O Curioso Caso de Daniel Boone antes do episódio especial de formatura (escrito pela Lola) e do epílogo. Reservarei parte das minhas palavras, já que ainda teremos mais um encontro. Mas vocês sabem: eu amo vocês e o apoio que têm me dado desde o começo da história. Uns se foram, outros entraram, mas eu e a Cricket somos gratos por todos que passaram por aqui e deixaram sua marca. Sem vocês, grande parte do nosso ânimo para escrever não se faria presente hoje ;)

Já perceberam o paralelo entre o nome desse capítulo e o nome do primeiro? Here We Go Again. Here I Go Again. No começo o Daniel precisou se adaptar ao fato de que o universo não parava de conspirá-lo para cima de Shawn Hans. E agora? Como serão as coisas? Descubra nesse episódio quase-que-final de OCDB.

Boa leitura!



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“Eu não sei para onde estou indo, mas sei com certeza onde estive: esperando as promessas nas canções de ontem. E eu mudei minha mente. Não vou perder mais tempo. Embora eu continue procurando uma resposta, pareço não encontrar o que procuro. Sou apenas mais um coração que precisa de resgate, esperando pela doce caridade do amor. E eu vou segurar a onda pelo resto dos meus dias, pois eu sei como é caminhar na solitária rua dos sonhos. Aqui vou eu de novo por minha conta, descendo a única rua que conheci.”

— Whitesnake, “Here I Go Again”

Washington, D.C.

26 de Julho de 2016

102 dias depois da facada que não me matou

Cá estou eu, mais de três meses após me livrar da morte — com a ajuda de Deus, que realmente me ama, olha que legal — indo para a escola pela primeira vez depois de tanto tempo. Eu até poderia explicar como não escolhi logo reprovar por ter perdido um trimestre inteiro de aulas, porém vou resumir em algumas frases que aparentemente não têm sentido separadas, mas juntas fazem a diferença. Basicamente: Edward, Peter e Raven vieram me visitar no hospital todos os dias úteis da semana e me explicaram o máximo de conteúdo das matérias que puderam. A diretora veio aplicar as provas no meu quarto. Fui liberado da educação física — MAIS UMA PROVA DE QUE DEUS EXISTE! Lucian Furler e Luke Flanagan vieram aplicar as recuperações trimestrais, já que felizmente (ou para o meu azar), eu só tirei notas abaixo da média em biologia e química. Tudo isso enquanto eu me apresentava nos fins de semana para sessões com a psicóloga e com a fisioterapeuta.

Sou claramente o garoto de 16 anos mais firme e forte que você respeita.

— Prontinho, está entregue — meu pai freia o carro bem na entrada do colégio.

Noto seu olhar perdido se encontrar com o meu após longos segundos encarando seus próprios pés. Eu não falei nada nos últimos meses para não complicar as coisas, mas sei o quanto está sendo difícil para ele retomar uma relação de pai e filho comigo depois de eu ter assumido minha homossexualidade e de ter contado tudo o que fazia de mim um filho não perfeito. Entretanto, só o fato de ele tentar todos os dias me faz querer colaborar ainda mais com sua batalha interna.

— Sabe, pai… a gente podia sair um dia desses. Fazer o que a gente fazia quando a mamãe não estava por perto, lembra?

— Mas esse tipo de coisa a gente fazia em casa — ele franze o cenho para mim, e eu dou risada.

— Tem razão — escondo meu rosto entre as mãos pelo mico, voltando à posição anterior após alguns poucos segundos — eu só estou tentando facilitar as coisas pra gente, pai. Não são as mesmas desde o meu aniversário. E eu quero o senhor no meu mundo. Você é o meu pai, não posso simplesmente chutá-lo só porque temos crenças diferentes. Acho que podemos fazer isso, não é?

— Eu realmente não te mereço como filho. Como você consegue aguentar tanta coisa com um sorriso no rosto?

— Olha, pai, eu até poderia ter um ataque de melosidade e dizer que é porque tenho a ajuda do senhor, do tio Andy e dos meus amigos — pego a mochila que está em meus pés — mas a verdade verdadeira é que… eu na verdade não aguento tanta coisa com um sorriso no rosto. Eu ponho o sorriso no rosto justamente para aguentar esse tanto de coisas. Não é o mal que impulsiona o bem. É o bem quem põe o mal em seu devido lugar. Deve ser meio complicado para o senhor entender, mas aos poucos vamos nos ajudando nisso. Pode ser?

Aaron acena que sim com a cabeça, sorrindo de lado sem mostrar os dentes. Sua mão esquerda bagunça meus cabelos antes de dar um tapinha em meu ombro, dando a deixa para eu voltar aos problemas de segunda a sexta-feira.

 

.::.

 

Enquanto caminho pelos corredores do colégio, tento manter meu campo de visão focado apenas no que vem à minha frente. Mas é um pouco difícil quando as conversas animadas das pessoas paradas em seus armários dão lugar a burburinhos cujo assunto você sabe muito bem qual é: você. Não sei se todas essas pessoas ouviram as duas versões da história da facada — aquela que muito provavelmente o Shawn contou para todo mundo apenas com o intuito de manter sua inocência e sua popularidade — ou aquela difundida pelo meu tio, pela diretora e pelos meus amigos, e que no final das contas é a mais fiel ao que realmente aconteceu.

— Dan? — Ouço uma voz feminina me chamar enquanto abro a porta do meu armário para colocar de volta os livros que estavam no hospital comigo. Viro a cabeça apenas para constatar que é a Boa Sorte, Charlie quem acaba de referir-se ao meu nome.

— Oi, Charlotte — abro um sorriso meio tímido enquanto me pergunto o que ela quer comigo, ali encostada ao meu armário vizinho, com seu vestido vermelho que vai até os joelhos e que não lembra em nada a fase de vadia que ela teve na era Shawn Graham Hans.

— Aposto como você deve estar se perguntando o que quero com você agora, não é?

— Não vou mentir, estou mesmo — solto um riso fraco acompanhado do seu.

— Relaxe, eu só… vim te agradecer por ter me mostrado a verdade naquela noite.

Esboço minha melhor cara de “ai, jura?”, cruzando os braços na altura do meu tórax. As pessoas geralmente acreditam que estou interessado no que elas querem dizer quando faço esse movimento sexy (mentira, que sexy que nada, é só um esqueleto de 42 quilogramas mexendo os braços). Então por que não tentar essa mesma tática com a Charlotte?

— Quero dizer… depois de eu ter terminado com o Shawn, eu fiz minhas pesquisas. Até parei para conversar com seus amigos sobre o tanto de mal que ele te causou, e eu não fazia ideia do que tinha acontecido. Sinto muito por tudo o que ele te fez, Daniel. Você não merecia nada daquilo e ele te proporcionou seus piores dias sem dó nem piedade.

— Como você tem… tanta certeza de que eu não merecia?

— Eu tenho um bom pressentimento sobre as pessoas — sua mão esquerda agora se concentra na alça única de sua mochila, segurando-a para não cair — e tive isso sobre você. Nunca te vi fazer mal algum para a humanidade. Você não é como os caras que eu conheço e isso é bom, porque o que você mais precisa fazer a partir de agora é… basicamente ser você mesmo. As pessoas agora sabem quem você é e não vão pegar leve na hora de fazer chacota contigo.

— Eu poderia construir um castelo com todas as pedras que atiram em mim desde o começo disso tudo — digo, referenciando a letra da música da Taylor Swift.

QUE HINOOOOOO.gif.

— E todo dia é como uma batalha, mas toda noite com a gente é como um sonho.

— Conhece “New Romantics”?

— O single mais injustiçado da era “1989”? Mas é claro!

— Meu Deus, acho que o Shawn teria terminado com você bem antes se soubesse que seu gosto musical é igual ao meu — damos uma gargalhada alta ali mesmo.

— Viu? Acho que meu bom pressentimento sobre as pessoas funcionou mais uma vez!

— É, talvez você esteja um tanto quanto certa sobre o que disse — fecho meu armário e volto a passear pelo corredor com a garota no meu encalço — eu não quero me importar com a opinião dos outros. Eu não preciso. Já passei tempo demais me mudando para agradar a um Hans de merda.

— Nós dois já passamos tempo demais fazendo isso — ela completa meu comentário — bom, agora vou cuidar de refazer minha vida social. As mesmas pessoas cruéis que já começaram a te julgar por sua sexualidade agora vão se afastar de mim só porque eu não quero mais ser a vadia do Shawn.

— Charlie… posso te chamar de Charlie, né? — Ela concorda com a cabeça — Bom, eu tenho dois amigos, Peter e Raven. E a mesa do intervalo tem quatro cadeiras, logo, sempre sobra uma. Então, se quiser sentar com a gente mais tarde…

— Sério? Sem ressentimentos pelo o que eu fiz antes?

— Dá pra notar que você mudou tanto quanto eu nesse meio tempo desde aquela noite. E nós podemos criar uma amizade bem interessante se permitirmos isso.

— Eu definitivamente te acho bem mais legal agora do que antes!

— Calma, não se precipite. Você ainda não viu meu lado curioso e estranho — meu comentário a faz rir novamente — então nos vemos no intervalo?

— Na verdade, nos vemos agora. Seu primeiro horário é de química, certo?

— Exatamente. Com o estranho professor Luke.

— Não conta pra ninguém — Charlie drasticamente reduz o volume de sua voz e chega mais perto do meu ouvido — mas ele é marido da minha irmã mais velha.

— Mentira! — Arregalo os olhos. Estou chocado em Lúcia, Estela, Átila, Denise e companhia! — Eu vou usar essa informação contra ele na hora das provas. Enfim, vou encontrar meus amigos por aí. Até mais.

— Foi um prazer te conhecer de verdade, Dan — ela me lança uma piscadela e se encaminha à sala de aula antes de mim.

Na verdade, eu nem preciso andar muitos metros à procura de meus dois amigos loucos do juízo.

— Daniel Arthur Boone! — Duas vozes histéricas preenchem o ambiente e sinto meu corpo tombando para a frente com o impacto sofrido.

Não é preciso ser uma delegada Amelie Carter da vida para saber que Peter e Raven pularam nas minhas costas como se eu não tivesse uma cicatriz horrenda bem ali.

— Vocês perderam o juízo? Não posso sofrer impactos! — Grito de volta, chamando a atenção (mais ainda) das outras pessoas.

Ambos rapidamente largaram das minhas costas e passaram a andar lado a lado comigo. Os braços envoltos no meu pescoço disputando o espaço como se eu fosse um objeto a ser conquistado; mas tudo bem, eles são meus amigos e só estão animados até demais por eu estar de volta ao inferno. Tudo bem, eles me viram quase todos os dias enquanto eu me recuperava no hospital. Mas não é a mesma coisa de me ver bem e andando tranquilamente pela escola depois de quase ser morto pelo meio-irmão do cara que você julgava amar, então por isso os entendo.

— Desculpa, a gente precisa se acostumar com isso — Peter argumenta, quase tropeçando nos próprios pés enquanto tenta seguir o ritmo da minha caminhada.

— Esse colégio de merda não tem sido o mesmo sem o seu brilho, Danico — Raven apoia sua cabeça no meu ombro, mesmo sabendo que eu detesto carinho alheio.

Ou detestava. Depois desse choque, eu acho que preciso rever meus conceitos.

— Eu sei que não, meus amores, eu sei que não — reviro os olhos com meu próprio narcisismo — já que não perdi as aulas, suponho que não tenha perdido mais nada de interessante, né?

— Tirando as pessoas que vinham nos perguntar se você era mesmo gay e se as teorias da conspiração de que você passava o rodo em dois caras ao mesmo tempo era verdade...

— Zaslavski, eu falei pra você não falar disso!

— Espera aí — paro de andar e eles se situam à minha frente. Minha expressão facial não é das melhores — que história é essa? Que teorias?

— Talvez o jornalzinho irrelevante da escola tenha ficado conhecido por querer falar algumas mentiras sobre você. Mentiras essas que não conseguimos impedir — minha melhor amiga (somos mais que amigos, somos best friends) começa a explicar a treta — e disseram que você era o mais gay do colégio todo, que você pegava o Shawn há meses às escondidas e que toda a tensão sexual que tinham publicamente era pra desviar as atenções de atitudes suspeitas que vocês supostamente fizeram esse tempo todo. Também falaram que você começou a trair o Shawn com o Klaus há alguns dias e que por isso foram juntos à festa — ai, não. Meteram o Klaus. Fodeu — e tem a teoria mais mirabolante de todas.

— Posso falar essa? Eu acho tão legal — a cara psicótica de Peter me assusta por alguns segundos. Aí eu lembro que é apenas Peter sendo Peter — então… falaram que vocês três estavam juntos e que às vezes praticavam um ménage. Bizarro, mas nada contra, você sabe, né?

— Eu acho que esses jornalistas passaram dos limites. Não sabem diferenciar briga de sexo e não procuraram saber que o Klaus me beijou só pra me levar àquela festa. Idiotas — digo, como se fosse a coisa mais natural do mundo, e ainda banco minha melhor cara de cínico.

Peter e Raven se entreolham, depois olham pra mim, depois se encaram, e voltam a me olhar como se eu fosse um terrorista prestes a ser fuzilado. Até porque é isso o que dá a entender com o que eles mentalmente querem fazer comigo depois de jogar a informação.

— E você fala assim na maior naturalidade?

— E vocês querem que eu ache que o mundo vai acabar só por causa de um beijo?

— Danico, Danico, você acha que a gente não te conhece? — Raven cruza os braços na altura da barriga, e quando eu tento passar pelo meio deles, é ela quem interrompe meus planos — Klaus ficou louco do juízo naquela noite, querido. Ele e o Shawn saíram na porrada porque ele achou que havia sido seu antigo crush o grande esfaqueador do ano — ah, se ele soubesse a verdade… — seu amiguinho Furler levou pontos na testa logo no seu primeiro dia de coma. Eu até o chamei para te visitar quando você havia acordado, mas ele não queria que você visse as cicatrizes da briga.

— O professor Furler não me disse isso quando foi me dar aula de seres invertebrados no hospital.

— Claro, ele queria proteger os sentimentos do menino — ah, se ela soubesse a verdade… — é o pai do garoto e obviamente quer que ele não sofra tanto. Você é burro assim ou foi ao Brasil pra fazer Pronatec?

“Eu não sou burro, é só que o Lucian não falou dessa parte quando conversamos sobre o menino”, penso em dizer a ela. Mas não posso. Ele pediu segredo absoluto quanto ao que havíamos falado sobre o Klaus e eu tenho estado totalmente de acordo com isso. Não é bom que o garoto saiba que recebeu um empurrãozinho extra do próprio pai comigo. E eu quero fazer as coisas do jeito certo. Começamos rápido demais, numa velocidade muito alta para um começo de história. Eu quero tudo em ordem, quero algo bom depois daquele furacão chamado Shawn Hans ter passado na minha vida e feito mil pedaços de meu pobre e inocente coração. Sei que o jovem Furler atende a todos os requisitos, mas eu não posso fazer isso. Não agora. Ele é bom demais para eu estraçalhar sua vida da forma que sempre faço involuntariamente.

— Vamos mudar de assunto? Podemos falar sobre algo mais interessante. Tipo — finjo pensar em algo quando na verdade já tenho as palavras na ponta da língua, enquanto voltamos a rumar para a sala de aula — a Charlotte vai sentar com a gente no intervalo hoje.

— O QUÊ? Você ainda tem o distúrbio da trouxice, por acaso? — A ruiva-quase-loira é a primeira a surtar negativamente — Aquela garota é uma vadia completa. Perfeito exemplo de menina malvada. Ex-namorada de Shawn Graham Hans e só terminou com ele porque você esfregou na cara da sociedade o babaca que ele é. Ela foi a única a ficar contra ele, além de você e do próprio Kian.

— Raven, você começou achando ruim e terminou contradizendo seu próprio argumento, já notou? — Peter se manifesta, recebendo um dedo do meio da garota como resposta — De qualquer maneira, se é você quem está nos dizendo isso, Boone… então eu acho que vai ser bem legal. Você tem esse poder de trazer as pessoas para qualquer que seja o seu lado da força. É só cuidar pra Boa Sorte, Charlie não trair nossa confiança.

— Ela está disposta a mudar. Até porque foi ela quem me procurou antes da aula para conversar. Tá que tudo pode acontecer, mas precisamos dar um voto de confiança para a garota. Ela deve ter passado pelo inferno ao lado daquele babaca.

— Pelo menos ela ficou contra ele, já que o resto da escola continua acreditando que ele é o fodão do prédio — o Zaslavski argumenta, abrindo a porta da sala e dando espaço para nós dois entrarmos.

— Essas pessoas têm azeitona no lugar da cabeça. Isso elas têm.

 

.::.

 

No fim das contas, o intervalo não foi um desastre, como Raven Fields previra. Charlotte optou por não falar do garoto que todos nós odiamos em comum, o que fez a conversa fluir bem mais. Descobrimos os gostos pessoais da garota — cujo sobrenome é Evans! GENTE, ELA TEM UM SOBRENOME — e nos últimos minutos do “recreio” eu acabei vazando sobre o Luke Flanagan ser marido da irmã dela. Peter e Raven fizeram o favor de anotar nos cadernos essa informação, mas logo em seguida, rimos com os altos micos pagos pela linda garota sentada ao nosso lado em suas interações com o professor no âmbito familiar.

Diferente dos outros dias, onde meu maior prazer é sentar com meus amigos e jogar conversa fora enquanto espero o veículo que me levará para casa, hoje optei por esperar sozinho no pátio da escola. De qualquer maneira, serei avisado quando for a hora de ir embora, então não me preocupo com o mundo enquanto retiro meu caderno da bolsa, o abro na matéria de matemática e tento resolver algumas funções do 2º grau que a professora aplicou na aula de hoje. Enquanto formulo um raciocínio para o primeiro exercício, começo a pensar nas minhas constatações pós-retorno à escola.

As pessoas olham para mim como se eu fosse um extraterrestre, ou como se eu fosse o próprio Jesus ressuscitado — e isso é ruim, porque ninguém mais pode acordar de um coma nos dias modernos se não quiser ser tratado de forma estranha pelo mundo quando voltar para a rotina de sempre. Ouço alguns cochichos sempre que guardo minhas coisas no armário, mas não dou importância e nem acho que preciso disso. As opiniões de quem não me conhece são justamente as que menos me importam.

Não vi Klaus hoje, nem mesmo junto ao bando de Shawn Hans na hora do intervalo; também optei por não procurá-lo, já que o intuito é não forçar nada e deixar claro que eu estou insatisfeito com a forma com a qual as coisas começaram. Também não vi o próprio Hans e nem seu meio-irmão — isso ainda é chocante — Kian. Provavelmente estão em apuros com a polícia, já que um dos dois abriu o bico e o Gray foi preso por tentativa de homicídio contra a minha pessoa. Achei justo, já que ele fez isso apenas porque não concordava com um possível relacionamento entre Shawn e eu; entretanto, tive pena dele por ter crescido pensando que eu era o cara mau desse filme. Alguém poderia mostrá-lo que não é bem assim que o mundo gira, mas OK. Ninguém quer.

— Me disseram que eu poderia te encontrar aqui agora.

Aquela voz inconfundível. Só pode ser o porreado do cacete. O destruidor do meu já fodido coração.

— O que você quer? — Pergunto, ainda encarando minhas anotações no caderno.

— Sei que você não quer conversar comigo sobre aquilo… então vamos falar do que você está tentando resolver aí — o fato de ele se sentar bem ao meu lado me faz encará-lo.

As memórias de todos os momentos que vivemos juntos passam em minha mente. Desde o dia em que ele pulou nas minhas costas, quando ainda estudávamos na outra escola, até o dia em que ele me deixou tocar em seu pinto. (Eu falo pinto sim porque cresci me referindo ao meu pinto como “pinto”, então não me critique!) Todas as vezes que ele disse me amar. Todas as vezes que ele me ignorou em público. Todas as vezes que ele me fez passar vergonha. Todas as malditas horas gastas tentando entender aquela cabecinha oca.

— São apenas equações — respondo friamente.

— E o que você pensa, metaforicamente falando, sobre funções matemáticas? Como você poderia relacioná-las com a sua vida?

— Pra que você quer saber?

— Eu soube que você é um escritor nato. Eu quero apenas saber se é verdade.

— E como explicar funções vai te provar isso?

— Apenas faça isso. Eu te desafio.

“Eu te desafio.” Você não devia ter dito isso, Shawn Graham Hans. Porque agora eu vou falar.

— Costumo pensar que sou como uma daquelas equações do 2º grau, sabe? — Escrevo na folha de caderno à minha frente a típica fórmula: ax²+bx+c — Você sabe o resultado disso aqui?

— É zero. Sempre é — responde, e eu deixo de encarar seu rosto para completar a equação, escrevendo um “=0” no final a fim de divagar naquela equação escrita no caderno.

— E é por isso que eu prefiro acreditar que sou como essa equação. Independente do número que eu ponha ali, sempre serei o zero no final. Aquele típico zero à esquerda de um número que não faz diferença alguma. Ou aquele zero depois da vírgula que também não muda nada na história. No final das contas, eu serei… zero. Serei um nada.

Sinto vontade de ir embora dali para não começar a chorar na frente de Shawn, então fecho meu caderno, guardo-o na minha bolsa, levanto da cadeira e faço menção de ir para a entrada do colégio, esperar meu pai e meu tio virem me buscar. Pois é, eu meio que pedi — meio nada, eu realmente pedi — para sair daquele transporte escolar, pedindo desculpas por isso, mas alegando que eu não podia voltar ao lugar onde todas aquelas memórias com meu antigo crush certamente seriam revividas na minha mente. E eu não posso deixá-lo invadir meus pensamentos de novo daquela forma. Então saí da van e agora meus dois parentes preferidos se revezarão para me buscar no colégio. Eu até acho melhor assim.

Porém, entretanto, todavia, quando ponho a mochila em minhas costas e dou meu primeiro passo para fora dali, sua voz interrompe meu caminho.

— Você sabe que… também sempre dá para encontrar as raízes da equação, certo?

Permaneço parado, encarando a saída do pátio. Não quero me virar porque sei que ele está certo, e não quero admitir isso. Porque se eu me render fácil assim, a derrocada vai ser fácil depois.

— Talvez seja só isso — ele continua — talvez você só precise encontrar as raízes da equação da sua vida e aí poderá respirar tranquilamente… certo?

Resolvo tacar o “dane-se” e me viro para encará-lo. Ele também está de pé, com as mãos nos bolsos — típico — e me encarando como se eu fosse o último resquício de esperança para o futuro da humanidade.

Ele pode até tentar ser um tipo masculino de Supergirl que sempre vê o melhor nas pessoas. Mas se ele é como a Supergirl, eu sou como aquela frase do filme Enrolados: cruel, egoísta e sombrio. Qualquer sinal de alegria que encontro, acabo destruindo. Mesmo que sem a intenção.

— Você também deve saber que existem as equações sem raiz.

— Isso somente se o delta resultar em um número menor que zero — sua mão direita encontra meu pulso esquerdo, e Deus sabe como — mas você mesmo não disse que a equação da sua vida era igual a zero?

— Disse — concordo, sem saber onde ele queria chegar.

— Tomemos o Δ como zero, assim como a própria equação — franzo as sobrancelhas. Fala logo do que merdas tu tá falando, garoto — a regra também diz que se o delta for igual a zero, ainda há uma raiz a ser encontrada.

Acho que temos um jovem gênio das metáforas segurando minha mão esquerda. Que porra é essa?

— O que significa que você ainda pode encontrar uma solução para essa equação. Tá, só tem uma solução no final das contas, mas é nela que você deve confiar.

Fito a imensidão de seus olhos verdes e vejo que, nesse momento raro da história da população mundial, Shawn Hans sabe o que está dizendo, não está zoando e de fato não está mentindo. Se eu mesmo disse que sou o zero da equação, e segundo as regras das funções há uma única resposta quando o delta é igual a zero, então há uma solução para mim. Pode ser chata por ser a única; pode não ser a melhor de todas; pode não ser a que eu pensava. Mas é ela que preciso escolher e seguir. E eu sei que o Graham à minha frente só me respondeu porque está crente e confiante de que ele é a solução.

Ele só se esqueceu de um pequeno detalhe.

— Tudo bem, tudo bem, eu posso até ter uma única solução para o meu problema — a serenidade no meu rosto parece surpreendê-lo — mas estamos falando da vida real, Shawn. Estamos vivendo em um planeta no qual habitam mais de sete bilhões de pessoas. Mas isso não significa que tem que ser você — consigo libertar meu pulso de seu aperto num movimento brusco — Shawn Graham Hans, não é porque você se chama Shawn Graham Hans que você é a minha solução. Não é porque eu te amei por dois anos inteiros que eu vou querer você agora. Não é porque você está aqui se entregando para mim de graça que eu vou me render aos seus encantos como sempre me rendi. E se você acha que eu esqueci o que você tem feito desde que começou a namorar aquela Charlotte, a qual felizmente tomou juízo e terminou com você depois de descobrir o filho de uma meretriz que você é... ah, meu querido, você está muito enganado. Não é para tanto. Eu vou descobrir sozinho a resposta da minha equação, e antes mesmo de sair procurando, já tenho certeza de que você não é a correta. Tchau.

Dito isso, apenas me viro novamente e volto a caminhar na direção da entrada da escola, como eu pretendia fazer desde que ele começara a me importunar de novo com aquele papo de “fomos feitos um pro outro, mesmo que não pareça”. E ele nem se deu ao luxo de tentar me parar novamente. Pra ser sincero, eu estou até feliz por ter dado um chute nas palavras do Hans. Espero que ninguém mais caia na lábia dele como eu caí feito um desinformado cai nas palavras de um presidente corrupto por dois anos.

— Eu já ia entrar para te procurar — Tio Andy surge no meu caminho, abraçando minha cabeça e já dando a volta para me empurrar direto ao carro — não viu minha mensagem?

— Estava ocupado resolvendo uns exercícios no caderno e não senti o celular vibrar.

Já no carro, retornando para casa — e com “casa”, eu quero dizer “o apartamento do meu tio” — estou ocupado demais me concentrando na música que toca no rádio, “Here I Go Again”, enquanto Andrew encara a estrada e meu pai foca na direção. A paisagem que se passa do lado de fora da janela contribui bastante para o clima de novos ares que penetra meus pensamentos.

É uma nova fase da minha vida que preciso experimentar com todas as minhas forças. Não é todo dia que é dada a mim uma segunda chance de fazer as coisas do melhor jeito possível, certo? Por isso hoje eu decido me agarrar às expectativas. Se vou me ferrar no final? Oras, eu já me acostumei a ser decepcionado. Se vão tentar quebrar meu coração? Claro que vão tentar. Sempre irão tentar. Mas se eles acham que vão conseguir — logo eu, que tive o coração quebrado pelo maior quebrador de corações já visto nesse país, LOGO EU — estão muito enganados.

Cada obstáculo agora será usado por mim como um trampolim para eu atingir patamares mais altos. Meu objetivo é ir ao infinito e além. Não importa o que aconteça.

— Ligaram lá para casa quando o Andrew saiu para comprar o macarrão que faltava — meu pai falou enquanto dirigia.

— Quem era? — Pergunto, saindo de meus devaneios e por curiosidade.

— Um tal de Klaus Furler. Disse que queria falar com você, filho.

Hum… OK. Cantei vitória antes da hora.

— Comigo? — Logo levo minha cabeça lá para a frente, para ouvir mais.

— É. Disse que era importante.

Eu e Andy nos entreolhamos, já que ambos sabemos muito bem o efeito do nome Klaus nessa história. Não vou mentir, eu contei a ele sobre o que ocorreu antes de eu ir à festa — nem morto eu conto o que houve depois — e ele num instante se tornou o maior shipper de “Klaniel” que o mundo já viu.

— Eu conheço esse olhar — meu pai notou, quando parou em frente a um sinal vermelho — vocês conhecem esse Klaus?

Nós dois encaramos Aaron Robbins Boone com o melhor dos sorrisos amarelos — aqueles bem cínicos de quem não tem mesmo vergonha na cara de admitir que fez merda — e ele imediatamente adota uma expressão facial como quem diz “filhos da puta”.

— Acho melhor vocês irem falando para mim quem é essa pessoa, antes que a noite chegue.

— Por que “antes que a noite chegue”? — Minha voz vacila ao tentar demonstrar tranquilidade.

— Porque ele disse que só poderia conversar com o seu tio pessoalmente. E eu meio que o deixei ir lá no apê mais tarde…

— Fodeu, Danny — Tio Andy sussurra em meu ouvido, mesmo sabendo que o pai poderia ouvi-lo — apenas digo isso. Fodeu.

Estado de New York

Janeiro de 2028

12 anos após a facada que não me matou

— Eu realmente, realmente não estava esperando ganhar esse prêmio hoje, então não faço ideia do que dizer — ouço todo o público rir alto. Eu também riria, se não estivesse morrendo de vergonha enquanto seguro o Globo de Ouro de Melhor Canção Original em mãos — “I See Love” é a canção que mais traduz meus sentimentos enquanto eu estava a escrevendo. Tudo que está nela é resultado de alguma situação que eu vivi e quis transpassar isso para as palavras. Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras. Eu digo que mil palavras valem tanto quanto uma imagem — pauso um pouco para respirar e aplausos rápidos são ouvidos — ah, e quando eu estava subindo as escadas aqui, me disseram que minha vitória foi histórica. Aparentemente eu sou o compositor da primeira música de um seriado de TV que ganhou esse prêmio, então gostaria de abrir a Bíblia dos meus agradecimentos aqui. Posso?

Olho para o lado e encontro um Tom Holland se segurando para não rir histericamente. Quem diria que eu, o autor do bordão “Santo Tom Holland!”, conheceria o próprio e ele ainda me entregaria um prêmio desses? Só Deus explica, meus queridos. Só Deus.


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Notas finais do capítulo

WOOOOOOAH! Muita coisa para digerir, né? Podem reler o capítulo parte por parte. É isso mesmo o que vocês leram. Danny voltou pra escola, saiu do transporte escolar por questões de Shawn, reencontrou os amigos, virou coleguinha da BOA SORTE CHARLIE, deu um fora lindo que o Chão precisava receber desde o começo e ainda entrou em rolo com o Klaus. Gente, é muita coisa. Jesus, ajuda esse povo.
E O DANIEL GANHANDO UM GLOBO DE OURO DOZE ANOS DEPOIS? NÃO TEM NINGUÉM BEM AQUI! Mas, calma. Essa cena é mais um daqueles flashs do futuro. Ou seja, ela será explicada e terá sua versão estendida. Quando? Não posso dizer. Mas irá acontecer. Keep calm.
Já sabem, né? Deixem aquele comentário maroto pra fazer a gente feliz sabendo da sua opinião. E não percam os próximos capítulos dessa verdadeira saga romântica.



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