Target erased escrita por Lice Lutz


Capítulo 1
There`s a cross-hair locked on my heart.


Notas iniciais do capítulo

Espero que todos tenham uma ótima leitura!



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A PRIMEIRA COISA QUE PENSEI FOI: ELES TINHAM RAZÃO. ERA TUDO UM AVISO.

Explico.

O que motivou a pensar: o drone gigante que se aproximava. Gigante, impenetrável, cobrindo tudo com sombras onde antes havia luz. Redondo, em forma de disco, era riscado por fios de luz de leds contínuos e refletia um azul escuro metalizado - uma pena para mim, que sempre amei a cor do céu azul de verão.

Quem tinha razão? Bem, um certo grupo conspiracionista britânico, que compôs um álbum inteiro revelando a história de um mundo dominado e atacado por drones. Agora tudo fazia sentido. De algum modo, eles sabiam e avisaram.

Então me preparei. Quem nunca traçou rotas de fuga em lugar habitual, apenas em caso de começar um apocalipse zumbi? Bem, esse era um dos meus passatempos favoritos e carregar barrinhas de cereais, pacotinhos de biscoito salgado e uma garrafa da água, um hábito já há muito consumado.

Corri até a minha mochila, a joguei rapidamente por sobre os ombros e então parei, pensando, agora que era pra valer, qual seria a melhor rota de fuga. Acabei me decidindo pela mais improvável de todas, que, justamente por ser a menos lógica e esperada, acabou por se revelar a mais sábia: corri em direção à janela da sala de aula.

Toda a travessia por sobre um mar de carteiras estudantis e estudantes universitários desesperados se transmudou em um sonho. Eu tinha plena ciência do caos ao meu redor, podia sentir o medo e o desespero de todos como um poderoso combustível alimentando os meus próprios sentimentos, mas, naquele momento, eu agia por puro instinto, ainda que tudo parecesse se mover em câmera lenta.

Eu sabia que havia gritos. Mais do que ouvi-los, podia sentir as ondas sonoras provocando arrepios horrorosos em minha pele. Também sabia que havia corpos caídos – alguns totalmente inertes, mortos, outros em espasmos de convulsão, sangrando. Sabia disso, porque eles haviam sido meus colegas de classe por pelo menos três anos e agora se tornaram meros obstáculos à minha fuga desesperada. Eu queria gritar, mas não sabia onde encontrar minha voz.

Saltei as cadeiras, pisei em alguns corpos e finalmente cheguei até a janela. Sem pensar, arremessei meu punho contra o vidro e depois estava passando pelo buraco aberto. Havia um vão de mais ou menos setenta centímetros entre a espécie de persiana externa e a parede. A distância entre a janela e o chão foi por mim conscientemente ignorada. Numa lentidão agoniante, apoiei as costas na parede e os pés nos degraus de persiana e comecei minha descida. Quando meus pés, num pulo desequilibrado, tocaram o chão, senti meu tornozelo direito virando. Não parei para prestar atenção nisso. Corri.

Somente depois de pular as catracas da saída mais próxima é que me atrevi a olhar para trás.

Teressa estava atrás de mim. O cabelo emaranhado; as mechas castanho escuras mesclando-se à maioria dos fios louro-branco. As mãos tremendo, os olhos despedaçados e as calças jeans sujas de vermelho até os joelhos.

Paradas, partindo em dois o mar desesperado de estudantes em fuga, nos olhamos por três segundos. Ela chorava e eu tentava não ver o meu reflexo em seus olhos.

Corremos. Por quadras, ruas, avenidas, vidas. Só existia o refúgio do horizonte desconhecido a minha frente. Eu não olhava para cima e não via o céu transformado em azul metalizado. Ao meu redor tudo era branco e as imagens cinza e no cheiro só havia oxigênio. A cada segundo o som de alguma coisa atingindo algum lugar parecia se multiplicar em cem, mas eu me recusava a decifrar o que seria – um projétil encontrando um osso? um coração atingindo o silêncio? um corpo encontrando o chão? – mas tudo em que eu me concentrava era nos passos de Teressa ecoando os meus.

Corremos, até chegarmos num campo, onde tudo era verde. Antes que pudesse finalmente desabar, ouvi Teressa gritando:

– Hayley!

A garota e sua amiga Maya imediatamente viraram a cabeça em nossa direção, mas quem primeiro me alcançou foi Taylor. Ele me abraçou, forte. Há mais de três meses que não nos falávamos e ele me abraçou como se quisesse me segurar por pelo menos três vidas.

Você está bem, você está, você está bem...

Eu estava. E com um horror crescente fui percebendo que não tinha a menor ideia se a minha irmã assim também estava.

***

Casa.

Eu costumava morar na cidade conhecida como a cidade do aeroporto. Mais especificamente, a minha casa ficava localizada bem em meio às três principais rodovias do estado. Tinha, portanto, quatro vezes mais chances de ser apenas mais um alvo destruído bem no meio do campo de batalha.

Era, por isso, um milagre que só metade dela estivesse destruída.

Eu choro todas as vezes em que lembro de quando encontrei minha irmã escondida no fundo do porão da nossa casa. Choro, chorei e chorarei muito mais ao encontra-la do que ao vê-la morrer.

Apertei meus olhos fechados com força e acordei gritando.

Ela, continuou dormindo. Taylor imediatamente se levantou e veio silenciosamente até mim. E me abraçou.

***

Era dia. Claro. Com sol. Naquela colina daquela pequena cidade desconhecida, a tensa neblina que cobria as cidades dominadas ainda não chegou ali ou já há muito foi embora. Desistimos de investigar depois que a última expedição resultou numa descoberta nauseante.

Aquilo nem mesmo era uma guerra. O inimigo não pretendia ganhar, mas ver. Experimentar. E não havia ninguém na batalha. Nossos exércitos estavam incumbidos apenas de levar os corpos inertes para os lugares certos.

Naquele momento, balancei a cabeça, me recusando a pensar no assunto. Dei as costas para janela e caminhei até o jardim. Sempre preferi o inverno ao verão, mas era um alívio sentir o calor terno do sol sobre pele.

Encontrei minha irmã sentada em cima da toalha de mesa de jantar já muitas vezes remendada. Ela olhava para a pequena cidade em formato de flor que se estendia abaixo de nós. Sem dizer uma palavra apenas me sentei ao lado dela. Ela se virou para mim, o vento fazendo seu cabelo cobrir metade do seu rosto e disse:

– Hey, tem uma coisa presa no seu cabelo.

Sua mão direita afastou alguns fios do meu cabelo e o polegar e o indicador fininhos e magros envolveram como uma pinça a coisa presa no meu cabelo. Eu ia gritar NÃO!, mas ao invés disso a chutei para o mais longe de mim possível e depois explodi.

Esperei para me tornar irmã sol, ser finalmente parte do céu azul infinito de verão, mas o calor nunca veio. Meu corpo foi arremessado muitos metros para trás; eu queria comemorar o alívio de que a minha irmã não seria atingida, ficaria bem, a salvo da bomba que me tornei, mas era impossível. Eu existia, eu via tudo aquilo, e, no entanto, não era nada. Ninguém.

Uma rede dum azul brilhante e magnético envolvia meu corpo e comprimia meu coração. Eu devia estar aos pedaços, ocupando lugar nenhum, mas só me transformei em silêncio. Depois disso, me deixei levar pela escuridão.

***

Todas as noites, acordo ouvindo o meu próprio grito desesperado por ar.

Não sei dizer se foi o meu coração que primeiro voltou a bater ou se foram primeiro os meus pulmões que gritaram por ar. Esse foi o meu primeiro pensamento antes de abrir os olhos.

Depois, foram outros olhos que encontrei. Os da minha irmã.

Os cabelos dela estavam arrepiados por uma estática palpável. Sua voz, porém, era mais cinza que concreto, mais baixa que a luz naquele momento.

– Você morreu por três dias. – ela me diz assim, sem rodeios.

Me viro lentamente para encarar Taylor, sentado a três metros de distância, abraçando seus próprios joelhos.

– Então por que não me enterraram? – pergunto, sem ter muita certeza de estar respirando.

– Eu não conseguiria fazer isso. – ele me responde baixinho, sem me olhar nos olhos.

Me odeio por não ter podido segurá-lo nem durante meia vida.

***

Acordo no dia seguinte e encontro um drone do tamanho de uma bola de basquete flutuando bem diante dos meus olhos. Pisco duas vezes para ele e então a nossa pequena casa de madeira é invadida por um exército de homens trajando uniformes pretos e insígnias da Terra.

Há uma mira bem cima do meu coração. Sorrio para o primeiro homem que a apontou e então pergunto:

– Desistiram de nos matar por controle remoto?

A resposta vem na forma de uma explosão. A cabeça do Taylor agora é uma mancha vermelha que suja a parede de mogno e seu corpo um monte ajoelhado pedindo a deus nenhum por misericórdia. À minha direita, minha irmã desmaia.

Voltamos a usar soldados e armas nas guerras, eu penso.

Estava enganada. Eram os dois uma coisa só. Como você, por exemplo.

***

Estou em uma cela.

Há grades na minha frente. Um grande portão de barras que vai do chão até o teto, cada barra espaçada na precisa distancia de um pescoço torcido. Ao redor, tudo é branco. Como nas paredes que se estendem em um corredor infinito e no uniforme dos carcereiros que por ali passeiam. Atrás das grades, também. Tenho quatro metros de branco atrás de mim, um e meio entre meus lados. Há um colchão cinza encostado na parede esquerda e um buraco no chão na quina direita, para as necessidades básicas da vida.

Estou nua. Com a cabeça raspada. Há uma tatuagem no meu antebraço direito. 296-RS.

Eu fico ali sentada, olhando. Devia estar me tornando a pureza do branco, mas quando fecho os olhos, tudo o que vejo é vermelho.

***

Me levam para uma sala de interrogatório igualzinha à dos filmes e séries de tv. Tudo ali também é branco. As três paredes, a luz, as duas cadeiras e o espelho transparentes.

Não me algemaram. Aparentemente, não sou perigosa. Permaneço sentada, aguardando pacientemente meu interrogador chegar.

Quando ele entra, está vestido com um elegante terno e gravata pretos e camisa branca. Tem o tipo de rosto e beleza perfeitamente austeros. Não se abala nem por um instante com a minha nudez. Ao contrário do que esperava, não sinto vontade de roubar seu paletó para mim.

Sem emitir qualquer ruído ou expressão facial de alerta, de repente ele está falando:

– Tem alguma pergunta que gostaria de fazer?

Então meu plano vai por água abaixo. Não consigo manter minha expressão neutra e impenetrável. Ergo minhas sobrancelhas. Como assim sou que pergunto? Engulo pesadamente minhas perguntas. Estou a vinte e uma entregas de comida sem emitir um único ruído, então sequer tenho certeza de que ainda me lembro do que fazer com minhas cordas vocais.

O interrogador aguarda cento e vinte segundos antes de se manifestar novamente:

– Muito bem. Gostaria de saber o que significa a tatuagem?

Permaneço imóvel, tentando ver através dos seus óculos escuros, engolindo, engolindo, engolindo...

Mais cento e vinte segundos depois, ele responde:

– Os números significam a posição exata das iniciais do seu nome no alfabeto. As letras, são uma sigla para o crime que você cometeu. Resistência.

Não usei de violência ou grave ameaça para resistir ao cumprimento de um ato legal, penso. Isto não pode ser de forma alguma legal, penso. Ele está tentando me fazer confiar, concluo.

Outros cento e vinte segundos se passam. Ele olha um instante a mais em meus olhos, depois se vira para a parede à sua direita. Esta desliza lateralmente e por ela entra a minha irmã.

– Não quer saber por que ela está aqui?

Estou paralisada. Meu coração, meu coração, meu coração...

Os cento e vinte segundos não terminam:

– Me diga quem ela é.

Só posso estar desaparecendo em mim mesma. Por favor, por favor, por favor...

Num movimento só, ele se levanta, saca a arma e dispara.

Então minha irmã está morta.

Estou presa em uma espiral infinita de segundos em que grito grito grito grito dolorosamente, guturalmente. Alcanço o frio do espelho nas minhas costas; estou tentando me afastar daquela cena, mas ela não sairá dos meus olhos.

– Percebo que finalmente reencontrou sua voz. Amanhã continuamos esta conversa. – o interrogador determina e depois sai da sala, deixando eu e minha irmã morta a sós.

Só então percebo que minhas mãos estão sujas de sangue, segurando uma arma.

***

Nunca chorei pela morte da minha irmã.

***

Hoje o interrogador está vestindo um jaleco branco. Eu estou em uma espécie de quarto de hospital. Há monitores e fios por todos os lados. Eu estou completamente atada a eles, refletida neles. Monitorada. E, para a sorte deles, controlada.

– Não quer saber por que está aqui?

Não decidi nem ao menos viver e mesmo assim o faço em negação.

A espera de cento e vinte segundos ainda preenche as suas falas.

– Sabe o que realmente aconteceu naquela sala?

A realidade agora é uma ilusão. Um jogo em que o adversário já foi aniquilado, sem nem ao menos ter tido a oportunidade de resistir. E eu sou apenas um peão.

120.

Duas perguntas. Agora viria uma resposta. Esse era o padrão.

– No Dia Um, durante os ataques, lançamos um gás com propriedades que fariam com que os inaladores agissem movidos tão somente por adrenalina. Por puro instinto de sobrevivência. Eles agiriam, não sentiriam e sobreviveriam. Os efeitos deste gás em você foram espetaculares; olhe só o quão longe chegou. Precisaremos, em breve, fazer alguns estudos físico-experimentais em você para ter certeza de que as propriedades do gás influenciaram no fato de você ter sobrevivido ao choque. Você foi eletrocutada, neutralizada e ainda assim continuou resistindo. Na sala...

Só então meu coração trava uma batida. O interrogador sorri, satisfeito.

– Realmente te perturba descobrir o que de fato aconteceu naquela sala, não é?

Não são suas respostas que me perturbam, mas sim as suas perguntas.

Ele não diz, mas claramente percebe isso.

– Percebo que talvez você só não esteja suficientemente curiosa, porque não entende completamente o que estou falando. Você não quer entender quem somos e o que fazemos?

120.

– Não te assusta o que vamos fazer com você?

120.

– Mas teme muito o que possamos ter feito você fazer, não é?

120.

– Me conte: demorou muito tempo para conseguir limpar o sangue dela das suas mãos?

120.

– Será que você não consegue se sentir nem um pouco orgulhosa de si mesma por estar dando tudo o que tem para a construção de um novo mundo?

120.

– Você não gostaria de viver nesse mundo perfeito?

120.

– Você seria capaz de amar nesse novo mundo?

120.

– Não quer ver o céu azul de novo?

Não, eu não queria. Mas quando estão me arrastando de volta para a minha cela, dois pontos de azul de repente atravessam as grades e furam a brancura. Um par de olhos me encara.

O sorriso incrédulo dele rasga meu coração. Mesmo assim, eu morreria um milhão de vezes só para vê-lo sorrir novamente.

***

Há sete refeições não durmo.

Fico pensando. Pensando nos meus pensamentos, se estão observando meus pensamentos.

Estaria o nosso segredo a salvo esta noite?

***

Já passei em frente à cela dele 77 vezes.

***

Na octogésima nona vez, o guarda que estava me escoltando para e abre a cela dele. Eu congelo. Nossos quatro olhos se encontram. Vemos mais de mil vidas. Optamos por descobrir o que esta ainda nos reserva.

Na verdade, escolho não arriscar a vida dele. Ele também opta pela minha vida. Sorrio ao perceber isso.

E com isso, todas as outras novecentas e noventa e oito possibilidades são apagadas.

FIM


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Notas finais do capítulo

Olá.

Eu costumo, geralmente, ao final das minhas histórias contar da onde veio a inspiração para escreve-la ou tentar desvendar alguma coisa por trás das palavras que trago. Hoje vou fazer diferente. Apenas vou confirmar o que você acabou de ler. Sim, foi tudo muito vago, brutal, sem final. E eu espero, encarecidamente, que você possa me contar o que achou de tudo isso.

Presunçosamente, agradeço desde já pela sua atenção.

Mil beijos.