TODAS AS LUZES - Coletânea de Natal escrita por Serena Bin, Gessikk, Cardamomo, Miss Houston, Maya, Amauri Filho, Lady Gumi, Maxx, Sr Devaneio, Lucas Freitas, Analu, Nanathmk


Capítulo 5
Caminho das Lamparinas - Miss Houston


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura a Todos!



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Amanda desceu na rodoviária de São Pedro da Aldeia, região dos lagos do Rio de Janeiro, e olhou ao redor com nostalgia. Haviam se passado anos desde a última vez em que estivera ali, quando ainda era uma garotinha e conseguira apreciar as poucas coisas que o local oferecia – o parque de diversão, as praias, a humilde livraria. Tudo tinha mudado com a ampliação da tecnologia. Pegou a sua mala e deu um sorriso educado ao motorista do ônibus, suspirando em frustração em seguida.

Seu pai estava atrasado, como sempre.

Sentou-se em um dos bancos, posicionando a mala ao seu lado, e pegou o celular para mandar uma mensagem para a mãe, Márcia, que já havia chegado. Preferiu omitir que seu pai não estava no local na hora marcada, já que não queria gerar estresse entre ambos. Tinha se impressionado quando há dois dias sua mãe tinha aparecido em sua porta e exigido que passasse o natal com seu pai. Se fosse há três anos, ela não reclamaria. Só que Amanda tinha dezessete anos e planos para o natal, que incluiam suas amigas e o garoto de quem estava afim.

Planos inúteis.

— Amanda! — escutou seu nome sendo chamado e levantou a cabeça. Ao ver seu pai, Roberto, se aproximando, bloqueou a tela do celular e se levantou. — Desculpe o atraso. Nem posso culpar o trânsito dessa vez — ele disse dando um sorriso amarelo, que Amanda retribuiu por educação. Quando seu pai ainda morava na capital, sempre se atrasava para buscá-la na escola e culpava o trânsito.

— Tudo bem, pai — respondeu. Roberto começou a se mover em direção à sua mala, porém ela o impediu. — Pode deixar que eu levo.

Roberto assentiu, indicando o lugar onde havia estacionado. Amanda o analisou pelo canto dos olhos, vendo o quanto seu pai tinha mudado nos poucos anos em que não se viram. Seus cabelos, antigamente escuros, se tornaram grisalhos e ralos; os olhos castanhos estavam opacos e sem vida, além de sua blusa, que parecia apertada ao corpo roliço. Amanda pressionou os lábios perguntando-se se não havia ninguém para cuidar de seu pai, se ele não havia arrumado alguém.

— Como você está na escola? — Roberto perguntou, tirando-a de seus pensamentos piedosos. Encarou-a com um pequeno sorriso. — Sua mãe me contou que está interessada em algumas faculdades. Em que curso pensou?

Encolheu os ombros, sentindo-se intimidada.

— Psicologia.

Roberto mostrou-se impressionado.

— Sério? Pensei que faria Letras, porque se interessava muito por livros. Você ainda lê?

Amanda sorriu.

— Mamãe teve que comprar uma estante para mim tamanha era a quantidade livros. Estavam espalhados pelo quarto.

Chegaram ao carro e ele pôs a mala na traseira. Amanda ameaçou abrir a porta de trás quando foi impedida.

— Você já é grande para vir na frente comigo, Amanda. Apenas ponha o cinto.

— Tudo bem. — Aquela era a sua resposta habitual. — Aqui mudou bastante.

— Sim, mudou. Abriu um shopping, viu? Podemos vir aqui depois do feriado.

Amanda forçou um sorriso enquanto seu pai ligava o carro.

— Claro. — Esse era o maior defeito dela. Não querer decepcionar as pessoas. Por isso ocultou o fato de que planejava apenas passar o Natal com ele e voltar para a sua vida habitual. Passaram pela livraria que ela antigamente frequentava, pequena e em frente à praia. Agora era cercada por uma feira que estava fechada. — Pelo menos mantiveram isso — disse.

— A livraria? Sim, mas com esforço. Abriram uma dentro do shopping, tem aqueles livros que você gosta de ler — seu pai disse em tom de brincadeira.

Amanda ficou envergonhada. Ela tinha vergonha de comentar com seu pai sobre os seus gostos literários e que gostava de escrever nas horas vagas. Uma parte sua dizia que ele não ligava, perguntava apenas para puxar assunto e por ser seu papel como pai. Nada muito novo. Pegou um prendedor na mochila e prendeu seu cabelo cacheado apenas para que as mechas saíssem de seu rosto.

— Seu cabelo cresceu bastante — Roberto comentou. Amanda reteve um comentário literário Ah, eu cortei, como Bella tinha dito ao seu pai quando se reencontraram em Crepúsculo. — Está namorando alguém?

— Não — respondeu apressada, arregalando os olhos escuros. — Estou conhecendo uma pessoa.

— Sua mãe sabe?

— Sim, eles se conhecem. — Forçado, mas conhece.

Roberto deu de ombros.

— Tudo bem, então. Só tome cuidado com esses garotos.

— E você? O que anda fazendo aqui? — Amanda perguntou, cansada de ser o centro das atenções. — Está namorando alguém?

Roberto ficou sério, fazendo a sua filha pensar se não havia sido dura demais.

— Estou trabalhando na mesma coisa que fazia no Rio. Faz-tudo. Conserto alguns telefones, fios, luz, o que me chamarem. Não é a melhor coisa do mundo, mas consigo me sustentar. Por isso eu quero que você cresça e se forme. Para ter um futuro melhor do que o meu.

Era esse um dos motivos para não passar um tempo com seu pai. Voltavam sempre ao mesmo assunto, em que Roberto se mostrava digno de pena, por mais que não quisesse demonstrar isso. Apenas mexeu a cabeça, não querendo falar muito. Seu pai não se esforçou mais em puxar assunto, o que ela agradeceu. Era uma das coisas que apreciava no seu pai – ele sabia dar seu espaço, mesmo quando tinha algo errado. Márcia a pressionava para dizer o que sentia e o motivo de estar triste/chateada/frustrada, por mais que Amanda só quisesse ficar quieta.

— Chegamos — ele disse parando em frente a grande casa pintada de amarelo. — Gostou da cor?

Amanda sorriu de verdade. Tinha realmente ficado bonita. Sua avó, Rosana – antiga proprietária –, ficaria feliz em saber que seu filho estava cuidado de seu legado.

— Ficou ótima. — Pegou sua mala e esperou o pai abrir o portão. — Era muito fúnebre com aquele cinza.

— Sim. Demorei quase duas semanas pintando. — Ele exibiu o bíceps tensionado e Amanda riu. — Esse é o poder do faz-tudo. Arrumei o quarto para você e tem Wi-Fi. Vai poder falar com os seus amigos.

— Obrigada — disse, sincera.

— Vou arrumar as coisas para a janta. Tem pão na geladeira, caso esteja com fome.

Amanda negou.

— Só quero tirar uma soneca. Mas, se quiser ajuda...

— Não precisa, princesa — ele disse, chamando-a pelo antigo apelido. — Senão vou ficar mal acostumado. Pode lavar a louça depois de trocarmos os presentes, se quiser.

— Fechado. — Apertou a mão dele e puxou a mala em direção ao quarto. — Até mais tarde.

— Até.

*********

Tinha uma razão para Amanda não visitar tanto seu pai quanto uma boa filha faria. Não era por gostar mais da vida urbana ou da companhia dos amigos – ela era de casa, preferia a vida de lobo solitário. Muito menos por proibição da mãe. Era mágoa. Ainda que tivessem se passado dez anos, ela não perdoou seu pai pelo dia em que foi embora.

Ela era jovem demais para entender, porém sonhadora o suficiente para desejar que ele voltasse. Nunca tinha visto os seus pais brigando, nem ao menos se recordava deles terem o feito. Por isso foi um baque quando acordou na madrugada com os gritos de sua mãe e o som de pratos e talheres caindo. Ela abriu a porta do quarto a tempo de ver seu pai saindo pela porta sem lhe dar um segundo olhar e isso a magoou muito.

Amanda gritou para que ele a levasse; eram muito próximos na época. Roberto ignorou e continuou seu caminho até o carro, indo embora. Nem disse adeus. Márcia segurou a filha até que o dia amanhecesse e ela parasse de chorar pelo pai, questionando a mãe de quem a chamaria de princesa e diria coisas idiotas como aham, né quando a pegasse fazendo alguma bagunça. Sua mãe apenas disse que ele não a deixaria, mas isso criou uma marca em Amanda que não poderia ser apagada.

Ela não tinha raiva dos pais – na verdade, ela nunca tinha raiva de ninguém –, só que isso não significava que ela não estava magoada. E evitar o pai ou qualquer assunto recorrente da separação era sua maneira de evitar a dor.

— Não precisa mesmo de ajuda? — perguntou quando apareceu uma hora mais tarde na porta da cozinha. Uma verdadeira batalha parecia estar sendo travada entre o pai e o Cherster. — Espere um minuto — ela pediu antes que ele desse outro soco no alimento. Tirou uma das grades do forno e empurrou o Cherster. — Minha mãe faz isso todo ano.

— É a primeira vez que vou fazer algo além de rabanada e miojo — Roberto declarou. — Obrigado.

— O que mais falta?

Eles passaram as próximas horas arrumando as comidas de Natal e conversando sobre coisas aleatórias, procurando um assunto que coubesse aos dois. Times de futebol diferentes – ele, Botafogo; ela, Flamengo –, novelas – nenhum dos dois as assistiam –, fofocas dos famosos – o pai não se interessava. Até que começaram a falar de filmes e séries. Amanda se orgulhava de ter puxado essa paixão de ambos os pais.

— Comecei a acompanhar Game of Thrones e fiquei viciado — Roberto confidenciou, terminando de fritar outra rabanada.

Isso deixou Amanda surpresa.

— Minha mãe também assiste — ela contou. — Vocês dois são bizarros.

Roberto sorriu.

— Qual série você assiste?

— The Walking Dead, no momento.

Seu pai parou de fritar e arregalou os olhos.

— Não me dê spoilers ou te deixo sem rabanada.

Ela estendeu o midinho.

— Prometo.

— Se quiser, mais tarde podemos ir até a praia — Roberto propôs, apagando o fogo e se abaixando para verificar se o Cherster estava pronto. — Ainda acendem aquelas lamparinas no alto da ponte. Lembra-se?

Amanda sorriu, pois se recordou de quando tinha uns cinco anos e corria pela ponte apenas para ver o caminho de lamparinas penduradas na ponte. Era como ver estrelas de perto. Ela ficou com um pouco de medo de ser decepcionada com a visão, porque ela era nova e tudo era lindo. Como o casamento dos pais. Aquela era uma das poucas memórias que sobraram da época em que os pais ainda estavam juntos.

— Ainda tem isso?

— Algumas coisas não mudaram, Amanda — ele disse em tom baixo. — Lembro-me de como você gostava de passear por lá. Insistia para que viéssemos para cá apenas para ir lá. — Olhou para o relógio de pulso e deu um suspiro. — Já são quase dez horas. Deveria ir se arrumar. Vou ligar a televisão para ver os filmes que vão passar.

Amanda fez uma careta.

— A Missa não, por favor. Quando minha mãe me arrasta para a casa da vovó Lúcia, sempre acabamos vendo A Missa. Não aguento mais.

Foi a vez do pai de erguer o mindinho.

— Prometo.

***********

Amanda apareceu na sala quase uma hora depois. Não que tivesse demorado em se arrumar, ela ficou falando com seus amigos e garantindo a sua mãe que tudo estava indo bem. Ela encontrou seu pai sentado no sofá encarando a árvore de Natal piscando sem nenhum presente embaixo. Ela apertou o pacote por entre seus dedos e tomou coragem para se aproximar.

— Posso colocar isso aqui? — ela perguntou, atraindo a atenção do pai.

— É para quem? — ele perguntou com um sorriso.

— Meu pai. Conhece? — Ela se abaixou e pôs o presente embaixo da árvore. — Está tudo bem? — indagou vendo o pai cabisbaixo.

— Amanda, temos que conversar.

A filha levantou as mãos.

— Vai me mandar de volta para casa porque comi uma rabanada quando você não estava olhando? — brincou.

Roberto riu, por mais que parecesse forçado.

— Quando fomos dividir a rabanada me lembrarei disso. — Deu dois tapinhas no seu lado do sofá. — Sente-se.

Ela foi desconfiando de tudo o que estava acontecendo. Seu pai ficou sério e desviou os olhos dos dela diretamente para a parede. Amanda apertou as mãos uma na outra e respirou fundo exatamente como aprendeu a fazer quando estava prestes a ter um ataque de ansiedade. Não funcionou. Seu estômago embrulhou e suor surgiu em sua testa. Roberto aparentava nervosismo semelhante.

— Pai...

— Amanda, eu não queria ter ido embora daquele jeito — ele começou com a voz arrastada e sussurrante. — Não te deixando daquele jeito. Queria ter dito alguma coisa, te explicar que não estava te abandonando. Sei que você está magoada comigo até hoje e que evitamos esse assunto o máximo possível. Mas eu não consigo, minha filha. Não consigo te ver me evitando, não me atendendo, e o seu medo de me decepcionar.

Amanda abaixou a cabeça com os olhos levemente molhados.

— Só não quero que me abandone de novo — sussurrou.

Roberto a segurou pelos ombros e a fez encará-lo.

— Amanda, você não entende. É exatamente disso que estou falando. — Ele parecia frustrado e quando viu que estava assustando sua filha, soltou-a. — A culpa não foi sua que eu e Márcia não demos certo. Na verdade, nunca daríamos. Você foi o que nos manteve juntos e feliz, querida.

— E quando deixei de ser útil?

Roberto soluçou.

— Amanda, eu sou gay.

Os olhos de Amanda se arregalaram. Nunca tinha reparado os sinais e nem prestou atenção se seu pai tinha realmente os dados. Mas ali, com a verdade sendo jogada em seu colo, percebeu o quão egoísta tinha sido em todos esses anos. Assim como seu pai tinha ido embora para se recompor, ela se afastou para catar os cacos de seu coração. Porém nenhum dos dois percebeu que precisavam um do outro. Pelo menos, não até aquele momento.

Amanda abraçou o pai, afagando suas costas até que ele parasse de chorar. Exatamente como sua mãe tinha feito com ela – como se a preparasse para aquele momento. Ela sorriu para o pai e limpou uma de suas lágrimas.

— Nada no mundo vai me fazer te amar menos, pai — ela disse suavemente. — Você me ama e pode amar outras pessoas, e é isso que importa.

Os lábios de Roberto tremeram, assim como os seus ombros.

— Eu só fui embora porque achei que era o melhor. Como eu poderia explicar para você que eu não amava a sua mãe e que preferia homens? Por Deus, você só tinha sete anos. Imagina o que as pessoas iriam falar.

— Minha mãe sabe?

Roberto assentiu.

— Ela disse que estava na hora de você saber — ele disse com a voz rouca e passou as costas da mão por seu rosto. — Por isso quase te arrastou pelos cabelos até aqui.

Amanda sorriu.

— Você realmente não me ama menos? — seu pai questionou frágil.

— Não. Acho que te amo mais agora. — Levantou-se, pegando a mão do pai e também limpou as próprias lágrimas. — Podemos voltar aqui mais tarde e comer. Agora quero ver as lamparinas com você.

Mais tarde, enquanto todos nas casas ao redor comemoravam o Natal e trocavam presentes, Roberto passou o braço ao redor dos ombros da filha e a abraçou. Ambos olhavam o caminho das lamparinas acesas, buscando ali um recomeço e esquecendo as mágoas do passado. Eram fênix e o alicerce um do outro.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler!
Que tal comentar?
É tão rapidinho e ainda faz um bem danado ao autor. XD



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