Somos programados para cair escrita por Luna


Capítulo 1
A lista




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A chuva queimava minha pele e encharcava meus cabelos recém-escovados, mas no momento eu não ligava muito. Eu e Ana corríamos como duas alucinadas debaixo do aguaceiro enquanto a neblina se abria à nossa frente à medida que avançávamos frente à rua.

Meus pais haviam dito que nos levariam ao St. Thomas assim que a enchente baixasse, mas não podíamos simplesmente esperar sentadas pelos resultados. Eles ainda estavam parados no centro da cidade enfrentando o engarrafamento provocado pelos milímetros a mais de tempestade e eu sabia que se estivessem em casa, não teriam permitido que nós duas nos aventurássemos até o outro lado da cidade para ver uma lista de nomes, mas cá estávamos nós, correndo e encharcadas até os ossos.

Eu tentava desesperadamente controlar meus batimentos à medida que chegávamos mais perto do hospital. Era incrível como eu contara as horas até o dia de hoje e agora implorava para que o relógio corresse mais devagar. A verdade é que eu não tinha me preparado para não ver meu nome na lista. E eu sabia que desabaria se não o visse. E mesmo com as pernas bambas e o coração saindo pela boca, gritos de adrenalina saiam sem autorização todas as vezes que um dos carros velozes passavam ao nosso lado e nos encharcavam mais ainda. E quer saber? Nem nos importávamos mais.

Subimos a calçada do grande prédio enquanto reparávamos na pintura esquisita das paredes. Haviam tentado reproduzir alguma tonalidade particular de verde, mas com o tempo a cor tornara-se relativamente triste. Mas eu gostava. Se Deus quisesse, eu veria essas cores todos os dias de hoje em diante, e isso já era o bastante para que eu as amasse.

Pensei pela primeira vez que eu não tinha onde levar a ficha de aprovação, agora que nenhuma das minhas roupas estava seca. Dei de ombros: aceita ou não, nunca me esqueceria do resultado. Estava quase achando que seríamos barradas assim que nossos pés tocassem o soalho quando as portas abriram-se sozinhas dando passagem.

Não repararam em nenhuma de nós duas. As pessoas debruçavam-se e se agrediam em volta de um quadro de avisos branco e saíam chorando da multidão quase todas as vezes. Bem, pelo menos não seria a única se meu nome não estivesse lá. Ana sentou-se ensopada em uma das cadeiras estofadas e vi a recepcionista arrebitando o nariz com o gesto. Fiz o mesmo: não era hora para gentilezas.

Esperamos todas as pessoas saírem, uma a uma. De qualquer forma, eu queria ver aquele pedaço de papel com calma. Depois de alguns minutos de tensão comecei a reparar nos sons à minhas volta. Os sapatos dos rejeitados produziam um som diferente quando tocavam o piso, eles corriam, tentando apagar a imagem de uma lista em ordem alfabética que pulava seus nomes para o seguinte, como se nunca tivessem existido. Os aceitos, muito poucos por sinal, não produziam som algum: pareciam pisar nas nuvens. Tentei expulsar o pensamento de que meus sapatos sempre faziam barulho já que eu era muito estabanada.

Ana olhava para mim, torcendo a bainha do vestido. Sua meia-calça estava rasgada na cocha e eu não sabia se pela chuva ou se por suas unhas inquietas. Olhei à minha volta e vi o movimento diminuindo. Alguns dos candidatos eram amparados e outros davam notícias ruins ao telefone. Os aprovados nunca ficavam ali por muito tempo. Um deles, um garoto loiro com um sorriso insistente tirara fotos da ficha de aprovação e obrigada a recepcionista a posar para uma selfie em sua companhia. Tive uma boa impressão dele. Parecia ser aquele tipo de pessoa de bem com a vida, mas quem não estaria se recebesse uma notícia animadora daquelas? Eu só sei que talvez eu não fosse corajosa o bastante para ir ver o resultado se ele não tivesse dado uma palmadinha no meu ombro e uma piscadela encorajadora, sem se importar com meu estado molhado.

Levantei-me com um suspiro e puxei minha prima: já havíamos tido suspense o bastante.

Fechei meus olhos e contei até três, clamando a Deus para que demonstrasse mais coragem do que tinha no momento e implorando para que meu nome estivesse naquela lista.

Percorri com o dedo indicador por todo o começo do alfabeto até o final, pressionando a unha na letra “R”. Li inúmeras vezes até conseguir acreditar: Rafaela Allison.

Meus olhos se arregalaram e olhei direto para Ana. E imediatamente eu soube a resposta. Seus olhos, antes tão amedrontados, brilhavam tanto que nesse momento eu soube que as duas juntas podiam ofuscar as estrelas.

Começamos a pular e gritar como loucas, espalhando água por todo o cômodo. Agora eu quase podia sentir pena de quem quer que fosse limpar esse aguaceiro. Minha consciência pesou quando ouvi a recepcionista suspirando, talvez ela esperasse que piorássemos a situação se fossemos aprovadas e deveria estar rezando para que não acontecesse. Mas tinha acontecido e eu poderia passar a noite toda secando o piso que continuaria feliz da vida.

Gritei minhas desculpas e ela pareceu aceitar, porque sorriu de canto, entendendo minha reação devastadora. Peguei minha ficha de aprovação e sabe-se lá como a coloquei dentro do sutiã esperando que não molhasse e saí correndo na chuva, seguida aos trotes por uma Ana anestesiada e coberta de lama da cabeça aos pés. Encontramos o garoto da selfie na porta do hospital. Ele mexia no celular enquanto arrumava-se no banco da frente do carro. Sorriu e acenou quando nos viu, rindo pela nossa falta de senso, afinal éramos duas garotas correndo pela rua no meio de um temporal sinistro, mas eu não me importava. As gostas de chuva não eram mais como adagas contra minha pele clara: elas lavavam toda a insegurança e trazia-me para a realidade que me tiraram quando digitaram meu nome naquela ficha.

Eu não me lembro de ter corrido tanto na vida. A chuva não era mais barulhenta que os meus berros de prazer, lembranças ruins nunca esquecidas guardaram-se na periferia do meu cérebro e não ousavam aparecer por um bom tempo. Meus pés me levaram para a praia.

De alguma forma a areia entrando no meio dos meus dedos sempre me acalmou, meus problemas vinham da praia, e acabavam ali também. De um jeito horrendo, as forças se anulavam enquanto eu via as ondas chocando-se contra as rochas cobertas de corais. Sentei-me na areia fria: durante o dia a maré nunca atingia aquele ponto, mas à noite, as ondas mais corajosas conseguiam alcançá-lo. Respirei o ar puro. Mesmo com a chuva torrencial abastecendo o mar eu conseguia ouvir o som particular que ressoava apenas na praia, e em mais nenhum lugar do mundo.

Ana ria descontroladamente, provavelmente assimilando a loucura em que havíamos nos metido: corremos metade da cidade no meio de uma tempestade até o St. Thomas e fomos aprovadas no mais difícil teste de internos do país, sem contar que agora estávamos na praia. Mamãe nos mataria se não morresse de felicidade antes.

Eu engolia quase um litro de chuva todas as vezes que resolvia gritar de felicidade. Ali, deitada na areia, meus olhos estava nadando em água e minha visão borrava mais que tudo, mas não havia nada para ver: as estrelas estavam tampadas pelas nuvens densas e a Lua não dera as caras desde a noite anterior. Mas eu sabia que o transe durara muito tempo. Com certeza estava quase amanhecendo quando pisquei, tentando eliminar a camada de água dos olhos. A verdade é que eu deveria ter caído na real quando a maré subiu a ponto de cobrir nossos pés, mas só pensava na lista de admissão, que pairava molemente dentro do meu sutiã.

Cutuquei Ana, que me olhava com a careta mais arregalada que já estampara naquele rostinho de boneca e começou a rir como louca. Levantamo-nos e corremos novamente, afinal aquele dia não havia sido feito para ter calma.

Eu não precisava pensar muito agora. Meus pés já haviam me levado de casa para a praia e da praia para casa mais vezes do que ousava contar. Sorri com o pensamento de que agora eu deixara na areia uma felicidade tão implacável que anestesiava os ferimentos permanentes. E eu sabia que por um tempo, por menor que fosse, eu ficaria numa boa.

Percorri todas as esquinas iluminadas pelos postes de luz. Quase conseguia ver meus pés encharcados enquanto eu quase voava a caminha de casa. Ana olhava-me e sorria, segurando um relevo no rumo da cintura: eu soube imediatamente que seu formulário estava ali. Encharcado, com certeza, mas sempre teria valor para ela, mesmo que nada pudesse ser lido naquele pedaço de papel.

Meu sorriso murchou quando cheguei na rua familiar. Luzes vermelhas e azuis piscavam para todos os lados e policiais entravam e saiam de casa a todo o momento. Eu não devia ter saído sem avisar.

Corri até a porta da frente, seguida a passos largos por uma Ana pálida. Enxuguei meus pés no tapete da porta mesmo sabendo que não serviria de nada: minhas jeans ensopadas lavariam a casa toda em um segundo. Girei a maçaneta quase temendo a bronca, mas fiquei mais surpresa ainda com os policiais em círculo conversando com uma mulher de aspecto frágil com um lenço na mão enquanto a cunhada escondia a cabeça entre os joelhos. Pareciam estar anunciando meu óbito ou alguma coisa parecida.

_ Mãe! – Chamei mais alto que o normal. Seus olhos, antes cobertos pelo lenço agora faiscava de alívio. Tia Jessie corria ao encontro da filha o que me fez pensar que a situação estava realmente séria, pois Ana morava no Rio conosco, mas a mãe ainda continuava em São Paulo.

_ Onde estavam? – Ela tentava gritar, mas as lágrimas não permitiam. – Chamamos a polícia!

Sorri para a mulher enlouquecida na minha frente. Enfiei a mão dentro do decote o que fez algumas das pessoas na sala erguerem a sobrancelha. Retirei de lá o comprovante de admissão e fiz um avião de papel com a folha encharcada. Em um gesto infantil e sapeca, joguei o aeromodelo, se é que poderia ser chamado assim, para a minha mãe mais que chocada.

Ela nem mesmo se protegeu do objeto deformado. Fechou seus olhos antes arregalados no momento em que a coisa atingiu seu vestido, respingando água no tecido já manchado de lágrimas. Olhando-me com censura, abriu o bilhete e leu até que seus olhos voltaram ao tamanho gigante e original. E como eu previa, deu um berro agudo e alucinado que fez com que os policiais pulassem em seus assentos como baratas tontas.

A mulher, tão nervosa como era possível estar, veio saltitando toda serelepe até que pulasse em cima de mim sem se importar com o amanhã. Dei graças à parede às minhas costas: mamãe era bem mais pesada do que eu.


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