Um Sopro Perdido no Ar escrita por Humberto Cotrim


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Para Jean, o verdadeiro dono da história, e para Maria, que ajudou com a centelha.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/666573/chapter/1

Um leve odor marinho preenchia cada pedaço do ambiento aberto. Ouvia-se o quebrar das ondas, ressoando distante. Constante. O olhar inexpressivo fitava a poça de lama, que se fez após uma chuva forte. A mente resgatava lembranças felizes, que se chocavam com seu sentimento momentâneo e tornavam a perda mais difícil de suportar. A garota permanecia sozinha, sentada no primeiro degrau da escada de entrada da casa. Era suposto que estivesse na cerimônia. Sua família havia ido. Ela, não. Se participasse, se estivesse presente, tudo seria... real. Embora negar fosse uma tarefa que fugia da simplicidade, aceitar traria uma dor sufocante.

Gotículas de água teimavam em preencher o ar, depositando-se sobre o chão úmido, ainda que a chuva forte tenha cessado. Um sopro repentino levou algumas gotículas em direção à pele da garota, e o toque gélido a despertou de seu limbo, carregado de sofrimento. Ela ajeitou-se sobre o seu desconfortável e improvisado banco de madeira. Decidiu fazer uma breve caminhada. Passou pelo quintal da casa. Recordou que aquele era o local da sua infância, quando ela percorria pelo gramado aos saltos, subia as escadas com um só pé e tentava atingir o céu ao brincar na cadeira de balanço. Tudo havia passado. E agora, nem alguém que compartilhara cada momento com ela estava ali. Respirou fundo. Pensou em ir até a falésia, próxima a praia, para observar as ondas de perto e preencher os pulmões com ar e sal. Poderia jogar umas pedras, contar os segundo e vê-las desaparecer, em um baque surdo, dentro do mar. Uma bela alusão à vida. Começou a caminhar, porém foi interrompida pelos faróis do carro, quando estava a meio caminho do fim da rua. Eram seus pais retornando. O veículo parou ao lado da garota, a porta se abriu e a mãe de Louise saiu, atirando-se sobre a filha, em um misto de preocupação e tristeza.

— Querida, o que você está fazendo? — Seus olhos estavam marejados e a voz, trêmula. — Está molhada. Venha, vamos para casa. Não pode sair assim por aí.

Louise gostaria de recusar. Preferiria partir como andarilho para um destino certo e isolado, mas seu torpor deixou-se levar pela fala maternal. O interior da casa estava seco, o aquecedor ligado. O pai da garota manteve-se em silêncio, fazendo uma bebida quente para todos na cozinha, enquanto Louise trocava o vestido negro, salpicado de lama, em seu quarto, sob a supervisão apaziguadora de sua mãe. A pequena família fez a ceia juntos, com o que havia na geladeira, não tiveram tempo para comprar algo no supermercado. Poucas palavras foram proferidas. Quando acabaram, as louças foram limpas e as luzes apagadas. O casal desejou uma boa noite para a filha, que se preparava para dormir.

A mente, embora cansada, lutou contra o sono. Louise mergulhava em seus pensamentos, em suposições e perguntas sobre o futuro que não iria existir. Vagava entre pesadelos lúcidos e a consciência lúdica. Em certo momento, ela era novamente uma menina de dez anos, que tinha medo de altura, mas que gostava de ir mais alto. Camila a incentivava:

— Você pode subir mais.

— Mas eu posso cair, Mila — retrucou Louise. — E o balanço tá rangendo, ele pode quebrar.

— Não se preocupa com isso.

— Então, me empurra.

— Eu não posso. — Camila tinha a voz infantil, mas um sorriso triste demais para a infância. — Você tem que fazer sozinha. Eu tenho que ir.

— Claro que não! Fica comigo, Mila — pediu. — Eu preciso de você aqui, pra me ajudar.

A cadeira parou de se movimentar e transformou-se em rocha. Os calcanhares, outrora no ar, batiam delicadamente na beira da falésia. As meninas haviam crescido e o sol estava se pondo.

— É bonito. E poético. Devíamos vir mais vezes. Não acha? — perguntou Louise, animada.

— O que entende por poético? — questionou, em resposta, a outra jovem.

— Ah, você sabe. Algo passível de subjetividade, que traz a cada um de nós algum pensamento diferente, sobre algo que ninguém sabe dizer concretamente o que é.

— Este é o sol. E ele está se pondo. Isso é bem concreto pra mim.

— Sua chata. Não quis dizer isso, estou falado da situação em si.

— Continue desse jeito. Okay? — falou Camila, com uma voz melancólica, e dando um sorriso. — Esqueça o que há de ruim e continue observando beleza no meio do caos. Isso é ótimo e é o que irá te salvar. E essa sua maneira de pensar, irá sempre me acompanhar, mesmo que você pense que não é possível. Será. Na verdade, é tudo que estou levando comigo.

Louise não pôde responder. O relógio a despertou. O rosto de Camila se desfez em um corte súbito, trazendo-a para a realidade, que nunca havia sido tão angustiante.

A luz invadia o quarto pela janela entreaberta e alcançava a estante. Os livros ganhavam tons em amarelo e laranja, mas em meio a eles, outro objeto se destacava. Uma pequena caixa, feita em madeira escura. Louise estranhou; se pôs de pé e caminhou até a prateleira. A garota encarou aquela peça de formato retangular e composição simples. Pensou em perguntar a sua mãe sobre a caixa, mas a curiosidade a deteve. Resolveu abrir. No interior, havia uma nota, que Louise supunha ser de euro, um bombom e uma carta. Camila. Com as mãos trêmulas, a jovem abriu o lacre, que fechava a carta. Leu para si em silêncio.

Não peço para que me entenda, muito menos para que não me odeie. Seria egoísmo demais, e, desse sentimento, as pessoas que estavam ao meu redor eram sempre cheias. Exceto você, Lou. Agradeço por isso. Só por isso.

Deixei-te dois presentes. Acho que já viu. Ambos são simbólicos e representam coisas boas. A nota é para dar sorte e também será a primeira que você usará na Europa, compre um sorvete ou qualquer outra coisa doce, saboreie. Mas, não espere por tanto tempo para provar o bombom que também te deixei. É seu preferido.

Queria trazer poesia, a mesma que você tanto gosta, para esta carta. Não consegui, provavelmente. Você é quem sabe usar as palavras... Eu queria ter lhe dito antes sobre tudo o que você significou dentro da minha breve existência. Saiba que fez dela menos dolorosa. Se for possível, carregarei as lembranças agridoces que tenho com você. Na verdade, é tudo de bom que posso levar comigo.

Eu adorava te ver sorrindo. E espero que continue a sorrir. Não precisa chorar por mim. Afinal, ambas sabemos que eu não era quem você necessitava, mesmo que tenha te amado. Não, esqueça o pretérito. Eu ainda te amo. E sempre amarei você.

Sem qualquer saudação ou assinatura, a carta iniciava e terminava. Feita apenas para ser de uma pessoa. Exatamente como fora a vida de Camila.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Um Sopro Perdido no Ar" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.