O Fantasma - Legados escrita por Glaucio Cardoso


Capítulo 1
Capítulo 1 - Heranças




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“Meu nome é Kit Walker, todos somos Kit Walker. E todos estamos destinados a nos tornarmos algo maior, uma lenda, um símbolo, uma tradição, um Fantasma!"

* * *

O jovem Kit suspendeu a escrita por alguns instantes e olhou ao seu redor; por toda a sua vida ele se preparara para este dia, mas agora que ele chegara, não se sentia pronto. E como poderia? A consciência do papel que assumia era o suficiente para amedrontar a qualquer um, e ele não seria exceção.

* * *

“No fundo no fundo, acho que nenhum de nós se sentiu preparado, nem tenho certeza se não foram muitos os que pensaram em seguir outro caminho. Eu mesmo cheguei a pensar que talvez fosse melhor se não fosse eu a assumir este legado, se não seria mais indicado se..."

* * *

Lá fora, o canto ritual dos bandar o chamava à realidade, era preciso apressar-se e registrar no diário os acontecimentos que o levaram até ali. Era preciso registrar, para as gerações futuras, a última missão de seu pai, O Fantasma.

* * *

Os Mori, uma tribo de pescadores, haviam convidado o Fantasma para assistir à cerimônia do Dia do Amanhã, um rito de passagem da infância para a fase adulta em que meninos se tornavam homens após inúmeras provas de força, habilidade, resistência e conhecimentos que se estendiam por pelo menos três dias. Como convidado de honra, o Fantasma tinha o direito de levar um acompanhante, desde que respeitasse a interdição às mulheres, então achou por bem levar seu filho, uma vez que no futuro este papel caberia a ele.

O Espírito que anda não poderia estar mais orgulhoso de seu filho. Kit, que fora apresentado simplesmente como “um bom amigo do Fantasma” portara-se de maneira impecável, demonstrando respeito pelos costumes dos nativos, fluência em seu idioma, habilidade em manter-se impassível mesmo diante de rituais chocantes (como quando viu meninos não muito mais jovens que ele caminharem em meio a formigas cujas mordidas eram sabidamente dolorosas) além de demonstrar uma grande capacidade de empatia, candura e, principalmente, discrição em meio aos Maori.

Kit, por sua vez, não conseguia nunca esconder a admiração que sentia por seu pai e era-lhe particularmente difícil não poder revelar aos jovens Mori que era mais que “um bom amigo”.

* * *

“De todas as coisas que aprendi com meu pai, a mais complicada foi a respeito da imortalidade do Fantasma. Eu tive de aprender desde cedo que não podia simplesmente dizer a todos os nativos que tanto o respeitavam que era seu filho, pois isto colocaria em risco uma das principais armas do Fantasma: a lenda que impõe temor aos malfeitores de toda a parte, que acreditam enfrentar algo mais que um ser humano. O mais difícil foi que, por causa disso, acho que eu mesmo cheguei a crer na lenda, pois nunca pensei de verdade que um dia estaria escrevendo estas linhas.”

* * *

Já era a manhã seguinte quando a cerimônia do Dia do Amanhã terminava. A última parte consistia em uma longa vigília na qual era contada a história da criação do povo Mori. Com todos ao redor das fogueiras, viram quando um velho griot mandinka se aproximou. Era ele o guardião da memória de seu povo e de muitos outros. O pai de Kit lhe dissera que aquele era um dos maiores gritos dentre todas as tribos, conhecido por nunca esquecer nada; fez-lhe notar ainda que ele vinha acompanhado de meninos de diversas aldeias, os quais iriam substituí-lo no futuro.

– Como vê, Kit, – disse-lhe seu pai em inglês, para que ninguém na tribo entendesse – não são apenas os Walker a planejar o futuro.

O velho griot, com a cabeça completamente grisalha e com o rosto repleto de rugas bateu seu cajado no chão e imediatamente fez-se silêncio.

– Eu saúdo aos homens Maori de ontem e os de amanhã. Saúdo àqueles que deixam de ser meninos e tomam lugar na história de seu povo. – começou o ancião. – Saúdo aos deuses que nos permitiram viver para presenciar este momento em que tudo recomeça para nunca deixar de existir. Saúdo ainda àquele de muitos nomes que nos honra com sua presença, o Espírito que Anda, o Homem que não pode morrer, o Guardião das Trevas Orientais, O Fantasma...

O Fantasma se levantou e retribuiu a saudação com um aceno de cabeça. O velho griot ergueu sua mão e Kit pode ver que trazia no pulso a Boa Marca, a proteção do Fantasma.

– Para que tudo volte a existir sem nunca ter se findado, eu venho aqui para contar a história do povo Mori, de como sua origem e seu futuro são determinados pelas águas. Eu sou N’gani, dos Mandinka!¹

* * *

“Por toda a minha vida vi meu pai realizando coisas extraordinárias, algumas das quais pareciam impossíveis de serem realizadas por um simples homem. Eu o vi derrotando homens que mais pareciam gigantes utilizando apenas os músculos e a inteligência; vi quando impediu guerras sangrentas entre tribos apenas com a força de suas palavras; vi o medo que impunha aos malfeitores apenas com sua presença. Mas também vi o que não gostaria de ver: vi que ele estava envelhecendo, embora sua convicção o fizesse parecer maior que o próprio tempo.”

* * *

Enquanto faziam o caminho de volta para casa, o Fantasma e Kit conversavam sobre o futuro e passado. O jovem parecia sempre disposto a ouvir sobre o real significado do que é ser o Fantasma.

– Importante, Kit, é entender porque fazemos o que fazemos. Pode parecer loucura dar prosseguimento a um juramento feito há tanto tempo...

– Já me perguntei sobre isso, pai.

– Assim como eu, e assim como meu pai e o pai de meu pai. Cada um de nós, creio eu, já se perguntou a respeito disso.

– E qual a resposta?

– Bem, a que meu pai me deu e que só entendi quando chegou o momento decisivo, foi: fazemos o que fazemos porque alguém tem de fazê-lo e por que podemos fazê-lo.

O jovem kit ficou em silêncio acomodado sobre Faísca, seu cavalo que estava se tornando aos poucos o mais veloz corcel da selva.

Aproveitando esse silêncio, o Fantasma pôs-se a admirar seu filho com indisfarçável satisfação. Era já um homem formado, forte e musculoso, fadado a tornar-se um dos maiores Fantasmas. E que caráter!

Quem o visse dois anos antes talvez duvidasse de que ele seria o próximo Fantasma. Que era Kit então? Um jovem com treinamento de anos na selva, hábil com o arco bem como com armas de fogo, mas de tamanha insegurança...

Até que tudo mudou... Kit nunca contara aos pais o que havia acontecido no tempo em que saíra pelo mundo como parte de seu aprendizado, mas o fato é que ao retornar parecia mais maduro, pensativo, até mesmo soturno. Diante do silêncio do filho, o Fantasma achou melhor respeitar seu momento. A partir de então, entretanto, notou o quanto Kit se empenhava de forma mais intensa em aprender tudo o que precisava. Lia as crônicas, treinava, escutava atentamente as palavras de seu pai e nunca perdia a oportunidade de fazer perguntas.

– Pai, como saber qual será o momento decisivo?

– Bem, filho...

Os tambores interromperam a fala do Espírito que anda com uma mensagem. Uma mensagem que falava de morte!


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Notas finais do capítulo

1 - A história de N'Gani pode ser lida em "Demônios na Floresta Negra", do mesmo autor.