After ever after escrita por Porcelain Warrior


Capítulo 1
Você vai trocar a lâmpada do banheiro hoje?


Notas iniciais do capítulo

Esse é apenas um recorte de um dia comum em uma rotina boba de casal com filhos. Fiquei fantasiando essa vida feliz e espero que não tenha ficado inútil demais.

Boa leitura!



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A casa tinha um ritmo próprio e este começava às seis e meia da manhã. Kenny não podia compreender como é que Kyle não precisava de despertador; ele tinha um relógio biológico tão aprimorado que, independente da hora que fossem dormir, estava de pé no máximo por volta das seis e quarenta, já pensando no café da manhã. Kyle era uma criatura de hábito e não gostava de mudanças drásticas na rotina, embora isso não funcionasse muito bem na prática. Mas ele tentava. Tinha todo um ritual matinal que Kenny conhecia muito bem por estar com aquele homem há quinze anos, mas atualmente, quase nunca estava acordado quando Kyle se erguia da cama para seguir sempre os mesmos passos: primeiro ele vai ao banheiro escovar os dentes e urinar os 500ml de água que bebeu durante a noite. Depois, toma um banho de gato muito breve (quase nunca lava o cabelo de manhã, porque o cuidado que Kyle tem com o cabelo exige todo um momento ritualístico de dedicação) antes que as crianças acordem. O resto dependia do relógio biológico do bebê, mas àquela altura e no segundo filho, Kyle já era mais flexível com a imprevisibilidade das crianças. Se os dois ainda estivessem dormindo, Kyle tiraria dois minutos para fumar um cigarro na varanda.

Emma tinha acabado de completar cinco meses. Não era uma bebê escandalosa, era muito comum que Kyle só ouvisse ruídos finos pela babá eletrônica ou silêncio completo, mas ao chegar no quarto dela, não era incomum que ela estivesse com os olhinhos abertos no berço. Naquela época, Emma tinha recém descoberto os próprios pés e tentava agarrá-los, fazendo uma bolinha com o próprio corpo, entretida o suficiente para não resmungar de solidão. O coração de Kyle derretia completamente todas as manhãs ao entrar naquele quarto amarelo-claro, com abelhinhas na parede que Kenny mesmo pintou.

Charlie tinha seis anos. Kenny construiu o berço dele na época em que o adotaram; Kyle tinha acabado de se formar em arquitetura, estava com vinte e cinco anos e no início do que se pode chamar de uma carreira estável, mas ainda trabalhando muito mais do que ganhando. Kenny já era artista plástico desde a juventude, nunca terminou uma graduação (embora tenha iniciado três, em ciências biológicas, marketing e design) e, à época, tirava o sustento de pequenas ilustrações para livros infantis, desenhos para marcas da indústria têxtil e, ainda, pintura de parede e carpintaria. Foi nesse cenário que decidiram ter o primeiro filho. Kenny já falava sobre bebês desde muito antes, literalmente anos, embora Kyle não levasse a sério mesmo depois que foram morar juntos. Não tinham muito dinheiro, mas haviam acabado de comprar uma casinha em South Park, depois de morarem durante quatro anos em um apartamento minúsculo em Boulder, onde Kyle se formou. Quando Kenny decidiu ir com ele para Boulder, Kyle brincava (embora acreditasse mesmo nisso) que, se eles sobrevivessem àqueles quatro anos juntos e ainda quisessem estar juntos, aquela relação seria pro resto da vida. “É comigo que você vai ter seus filhos”, Kenny dizia a ele, e Kyle gargalhava pelo absurdo.

Mas dito e feito.

Oito meses depois de comprarem a casa e se estabelecerem em South Park, decidiram adotar. E se alguém tivesse dito a Kyle Broflovski aos dezenove anos de idade que ele seria pai de duas crianças, e mais do que isso, com um homem como Kenny McCormick, ele teria revirado os olhos. Talvez fosse a genética forte de seu pai - ou a própria educação judaica semi-tradicionalista - que o tornava tão comprometido com a vida profissional antes de qualquer coisa. Um companheiro como Kenny mostrou-se surpreendentemente ideal para que ele tivesse suporte domiciliar; durante o namoro, quando eram jovens e idiotas, Kyle ficava angustiado por pensar que talvez eles tivessem uma data de validade. Nunca teve um pingo de dúvida do quanto amava aquele loiro imbecil, mesmo aquele tipo de amor adolescente e exagerado, mas sempre achou que talvez eles quisessem coisas muito diferentes. Kyle sempre sofreu de ansiedade diagnosticada e encontrava-se neurótico sobre a faculdade desde os quinze anos de idade, enquanto Kenny não tinha certeza nem mesmo se conseguiria se formar no ensino médio.

Mas na prática, Kyle descobriu que jamais poderia se adequar com um companheiro que fosse tão dedicado à vida profissional quanto ele mesmo. Na verdade, jamais poderia se adequar a alguém que não fosse Kenny McCormick. Conforme a relação amadureceu, Kyle descobriu em Kenny um descanso. Um descanso de tudo. Kenny tinha um jeito tão manso de falar, sempre uma gracinha pronta na ponta da língua, mãos tão boas pra massagem, uma ideologia de vida tão mais simples, tão satisfatória, que fazia Kyle sentir que todas as preocupações do mundo eram pequenas.

Casar-se com um dos seus melhores amigos de infância tem um bocado de vantagens. Kenny sabia exatamente no que estava se metendo - na maior parte do tempo, isto é -, conhecia o temperamento Broflovski de cor e salteado, sabia como aquela cabecinha neurótica funcionava e o quanto ele cobrava de si mesmo. E queria tudo isso. Queria toda a inconstância explosiva de Kyle, toda a prepotência, o jeito metódico e controlador, aquela força da natureza que Kyle carregava dentro de si, a teimosia irrefutável, tudo. Tudo que fosse bonito e feio. Desde que era um jovenzinho mirrado do Colorado que não tinha um puto de um tostão no bolso, um caipira sem perspectiva alguma na vida, Kenny soube do fundo do seu coração que amaria Kyle Broflovski até morrer. Daria tudo o que ele quisesse, viraria gente por ele.

Então, Kenny esteve lá durante as madrugadas longas que Kyle passava debruçado sobre os livros, trazendo café e se certificando de que ele comesse, porque Kyle era uma dessas pessoas que mergulham tão fundo no trabalho intelectual e se esquecem do corpo. E fazia isso mesmo tendo que acordar cinco e meia da manhã para trabalhar durante aqueles anos de universidade, porque só Deus sabia como ele não tinha dinheiro sobrando para se sustentar fora da casa dos pais em uma cidade diferente com dezoito anos de idade. Depois, quando voltaram para South Park e Charlie entrou em suas vidas, Kenny era quem passava mais tempo cuidando do bebê e trabalhando em casa, enquanto Kyle trabalhava como um louco no primeiro emprego de gente grande como arquiteto. Foram noites e mais noites em claro fazendo as contas, tentando fazer Charlie dormir (ele foi um bebê muito mais apegado e muito mais choroso do que Emma), lidando com o cesto cheio de roupa suja por papinha e vômito de criança, preocupações com a hipoteca e o seguro do carro, para depois acordar e trabalhar o dia inteiro, comer mal, transar pouco, não ver mais os amigos, colocar ordem na casa e, quando sobrasse tempo, tomar banho.

Mas Deus, como eles eram felizes.

Quando Kyle chegava em casa exausto à noite, com os pés doendo e cheio de olheiras, mas encontrava Kenny cochilando na poltrona da sala com Charlie nos braços, dormindo sobre o peito nu dele porque se acalmava com o calor do corpo do pai, Kyle não desejaria outra vida nem em um milhão de anos.

Era o último dia de abril e a primavera estava no auge. Kyle era o único naquela casa que precisava tomar antialérgicos para sobreviver ao polén, felizmente. Lá fora, fazia um calor agradável e os passarinhos já cantavam. Era uma das maravilhas da vida suburbana. O sol já se erguia no céu azul e esquentava o clima, banhando as flores no jardim, os pinheiros e animais silvestres. O quarto ficava voltado para o oeste, então não batia sol na primeira hora da manhã. Lá dentro, era fresco, escuro e confortável, ambiente propício para ficar na cama por mais tempo.

A pele de Kenny estava quente como de costume. Ele tinha uma temperatura corporal exageradamente elevada, o que era delícia no inverno. Kyle se mexeu um pouco, abraçado ao travesseiro, sentindo a respiração de Kenny em sua nuca. Kenny sempre estava enroscado nele quando acordavam e era uma luta diária tentar levantar sem acordá-lo, mas Kenny até gostava de acordar e saber que podia virar para o lado e dormir mais.

Kyle ainda tinha os olhos fechados, mas o cérebro começava a mandar sinais para o resto do corpo, preparando-o para despertar. Ainda estava naquele estado de consciência entre a realidade e o sonho, mas já não podia mais se lembrar em detalhes vívidos o que estava sonhando propriamente. Mexeu-se um pouco, respirando fundo e depois soltando o ar pouco ao pouco enquanto se espreguiçava, ajeitando o corpo ao encaixe no do homem colado às suas costas. Kenny o apertou com o braço e bufou na sua nuca, afundando o nariz nos cachos amassados pelo travesseiro. Kyle só percebeu que ele estava acordado quando sentiu aqueles lábios tão familiares roçando na sua pele, primeiro na curva entre o ombro e o pescoço, deixando três beijos demorados e barulhentos na região. Não chegou a erguer a cabeça do travesseiro, pois ela pesava demais.

Kyle sorriu mostrando os dentes, franzindo um pouco o nariz pelas cócegas, tanto da respiração de Kenny quanto pela barba que ele precisava fazer, mas não havia tempo ou disposição. Começou a fazer carinho no tornozelo dele usando o próprio pé, conservando o calor do abraço, angustiado pela ideia de que qualquer um dos dois deixasse aquele leito.

Kyle havia ido dormir meio puto com ele. Não muito, só um pouquinho. O suficiente para não esperá-lo acordado na cama como lhe era de costume. Isso porque Kenny bebeu uma ou duas cervejas a mais no final da tarde e se esqueceu completamente do que Kyle pediu que ele fizesse. Ele não se incomodava que Kenny bebesse durante a semana, já conhecia o ritual de abrir uma lata quando terminava um projeto muito exaustivo e precisava relaxar. Isso só era um problema quando Kenny se esquecia de algo que teria esquecido mesmo se estivesse sóbrio. Como não estava, Kyle se emputeceu pela negligência e pelo álcool.

-Você me deixou ir dormir bem beijo ontem, sabia? - O loiro murmurou sonolento ao ouvido dele, ainda de olhos fechados, e Kyle podia sentir o sorriso sem vergonha que se formava nos lábios de Kenny sem precisar enxergá-lo.

-Hmm. - Foi tudo o que Kyle pôde responder, pois ainda não estava devidamente acordado. Ele gostava de fingir ser uma pessoa matinal, mas isso não poderia estar mais distante da verdade. Kyle era uma pessoa terrível antes das nove da manhã. Às vezes dez, dependendo do dia.

Mas Kenny McCormick o amava e não dava a mínima para a rejeição. Tinha esse jeito altruísta de amar, tirava até algum prazer em oferecer todos os carinhos do mundo e não ganhar nada em troca. Beijou a bochecha quentinha, amassada se sono, fazendo algum esforço para erguer o tronco e se aproximar do canto da boca de Kyle, que apertou os olhos, resmunguento.

-Sai daqui. - Disse com um sorriso inevitável. - Eu tô dormindo.

Mas Kenny fez exatamente o oposto do que lhe foi mandado: arrastou-se por cima dele e beijou seu rosto insistentemente, até que Kyle cedesse ao peso e caísse de barriga para cima, facilitando que os lábios se encontrassem de maneira lenta e preguiçosa, roçando e acariciando antes de se encaixarem um ao outro. Não houve contato entre as línguas, mas a de Kenny percorreu um pouco os lábios de Kyle, deixando o beijo mais barulhento. Era gostoso sentir a respiração quente do outro àquela hora da manhã.

Kyle gemeu baixinho em meio ao beijo, suspirando fundo, virando o rosto um pouco para o lado. Não queria afastar a boca de Kenny. O loiro deslizou os lábios pelo maxilar do outro, distribuindo beijos despretensiosos pela linha, e Kyle podia sentir o sorriso dele mesmo sem enxergá-lo. Esticou as pernas, sentindo a textura fresca do lençol tocando os pés. Já aproveitou o movimento para se espreguiçar.

-Escuta. Aproveita que você tá acordado e vai fazer o café. - Kyle murmurou sério, bocejando ao final da frase.

Mas Kenny deitou o rosto bem na curva entre o ombro e o pescoço dele, o braço enroscado no tórax de Kyle, fazendo carinho por baixo da camisa solta de algodão, sentindo a carne macia da barriga dele com sua palma.

-Eu não tô acordado. - Kenny respondeu depois de algum tempo, com os olhos já fechados.

Kyle coletou o que havia de energia em seu braço para deixar um tapa bem fraco nas costas dele, ao qual Kenny correspondeu com um "ai" única e exclusivamente por amor, visto que não doeu coisa alguma. Kyle prosseguiu com os dedos mergulhados nos fios de cabelo loiro, acariciando o escalpo de Kenny enquanto voltavam, pouco a pouco, a um estado de latência. Teriam certamente deslizado de volta para a terra dos sonhos se Kyle não tivesse se levantado alguns minutos depois. Kenny resmungou ao perder o calor do outro corpo, mas ainda não tinha forças nem para erguer a cabeça, quem dirá prender Kyle naquela cama. O dia havia começado e ele não podia impedir isso.

Ficou esparramado no centro da cama com a cabeça enfiada embaixo do travesseiro. Ouviu o barulho do chuveiro ligando, mas quando Kyle terminou o banho, Kenny já estava capotado de novo. Não levou mais do que cinco minutos. Era a pessoa mais rápida pra dormir que Kyle já conheceu, aquilo era impressionante e um bocado incompreensível para uma pessoa que precisava de toda uma preparação para pegar no sono.

Kyle voltou ao quarto se secando com a toalha, ouvindo um resmungo baixinho pela babá eletrônica. Isso trouxe um sorriso imediato aos seus lábios. O quarto era contaminado pelo cheiro de shampoo e sabonete que vinha do banheiro. Agora, já havia amanhecido propriamente, mas a cortina segurava um pouco da luz para que Kenny continuasse dormindo confortável; não que ele precisasse de escuro para isso. Tinha claridade o suficiente para que Kyle enxergasse as roupas no armário. Vestiu-se rapidamente, deixando para fechar a camisa de botões fora do quarto, levando a toalha úmida sobre o ombro. Fechou a porta atrás de si, ainda descalço, e seguiu o corredor em direção ao quarto de Emma.

Por mais suspeito que ele fosse pra falar, tinha certeza de que ela era o bebê mais lindo do mundo. Usava um tip top branco com pequenas âncoras desenhadas, tinha bochechas enormes e rosadas, olhinhos puxados pela descendência oriental, uma quantidade absurda de cabelos bem pretos. Ergueu os bracinhos assim que Kyle apareceu sobre seu berço, remexendo os pezinhos sob a manta que a cobria, emitindo sons alegres com um sorriso enorme sem dentes, a cara inchada de sono.

-Oi, meu amor. - Kyle disse lentamente, com a voz carregada de afeto, debruçando-se sobre o berço para envolver aquela forma pequena em seus braços, beijando sua bochecha macia e inalando aquele cheiro gostoso que só os bebês têm. Era o único estímulo de que ele precisava pra se levantar da cama.

Desceu com Emma no colo e a ajeitou na cadeirinha da cozinha, deixando com ela um pequeno chocalho em forma de elefante para que ela se distraísse enquanto começava os afazeres matinais. Pendurou a toalha no varal da lavanderia, que era anexa à cozinha, com uma janela que permitia que ele ainda enxergasse Emma enquanto colocava as roupas na máquina. De vez em quando, ela colocava o chocalho na boca e Kyle precisava largar tudo que estava fazendo para tirar. A cozinha não era tão grande quanto ele gostaria; o piso de ladrilho marrom claro, as bancadas brancas sempre cheias de coisas: vidros de azeite, uma fruteira, um quadro bordado pela mãe de Kyle onde estava escrito “família” em Hebraico, o bule, a mamadeira, o faqueiro, porta-papel toalha, o espremedor, a cafeteira. Entre os armários da parede e a bancada, no estreito espaço da parede, estavam colados desenhos do Charlie e algumas fotografias.

A rotina matinal seguia como de costume. A cafeteira estava ligada, a máquina também, a aveia com mel estava pronta na mesa esperando que Charlie acordasse. Kyle estava espremendo as laranjas pro suco quando o pequeno desceu ainda de pijama, que era azul claro e cheio de patinhos, falante como sempre. Com as duas crianças acordadas, a casa já parecia muito mais cheia. Emma ficava mais agitada na presença do irmão, que conversava com ela como se os sons que ela fazia significassem palavras. Era lindo de assistir.

Quando Kyle estava cogitando enviar Charlie para o quarto com a missão de arrancar Kenny da cama, o loiro apareceu na porta da cozinha bocejando como um leão, coçando as costas nuas, pois não se deu ao trabalho de vestir uma camisa antes de sair da cama.

-Finalmente. - Kyle resmungou, bebendo uma xícara de café puro de pé, apoiado no balcão, terminando de amassar mamão em um pratinho com a mão livre. Entregou o pratinho ao Kenny antes de deixar um beijo rápido no canto da sua boca, assim que ele parou no meio da cozinha tentando se localizar no espaço. - Aqui, boa sorte. - Então, voltando-se ao filho. - Vamos, amor, você tem que trocar de roupa.

Charlie encarou de volta com uma colher pendurada na boca, sem segurá-la com as mãos, seus enormes olhos azuis brilhando curiosos. Já havia terminado a aveia, mas o copo de suco ainda estava pela metade. Arrancou a colher da boca e segurou o copo com as duas mãos.

-Espera. - Pediu com tanto jeitinho que nem parecia insolente, virando o copo de suco para dar um último gole. Encolheu-se quando Kenny chegou perto para beijar sua bochecha e apertar seu nariz. Charlie gargalhou, segurando o copo contra o peito, mostrando os dentinhos tortos com o sorriso.

-E aí, seu sem vergonha. Para de enrolar o papai. - Kenny disse em tom de brincadeira antes de deixar o pratinho de mamão no apoio da cadeirinha de Emma, batendo palma para ela, que se agitou erguendo as mãozinhas para ele. Kenny a pegou por debaixo dos bracinhos, levantando-a no alto. - Cadê o meu sushizinho?

-Kenny. - Kyle reprendeu, deixando a caneca de café na pia. - Para de chamar ela assim. Eu já falei que isso é racista.

-É nada. - O loiro disse distraído com um sorriso besta na cara, sem tirar os olhos do bebê, balançando-a um pouquinho e fazendo cócegas na barriga. Ela ria alto, apertando os olhinhos pretos feito jabuticaba, colocando as duas mãos no rosto dele. Depois, encarava o pai com curiosidade, a boquinha entreaberta e os olhos bem abertos e curiosos, a testa quase franzida. Kenny a ajeitou em um braço e acariciou sua bochecha com o polegar. - Mas é a coisa mais linda desse mundo, não é?

-Ela é chinesa. Esse apelido nem faz sentido. - Kyle prosseguiu, recolhendo a louça da mesa até a pia.

-E daí? Se a gente tem sushi aqui, você acha que na China não tem?

-Você é um idiota. - O ruivo disse com um sorriso, balançando a cabeça negativamente.

-É, você é um idiota. - Charlie repetiu bem sério, assentindo.

-Olha o que você ensina pra esse menino. - Kenny protestou, voltando a ajeitar Emma na cadeirinha, o que a fez resmungar um pouco. Ele puxou uma cadeira e se sentou de frente pra ela, tomando o pratinho em mãos para começar a dar o mamão amassado na boquinha dela. Emma continuou a encará-lo sem expressão, ignorando completamente a colher, com aquela expressão assustada dos bebês que veem grandeza nas coisas mais banais. Kenny começou a mostrar como abrir a boca, pedindo encarecidamente para que ela imitasse.

Nesse meio tempo, Kyle levou Charlie para o quarto e foi terminar de se arrumar. Só precisou ajudá-lo a amarrar os cadarços, depois o mandou para o banheiro do corredor - que era muito claramente um banheiro de criança, com toalhas coloridas, adesivos de peixes e um porta-escova em forma de macaco - para escovar os dentinhos e pentear o cabelo ralo, laranja como o de Kyle. A diferença é que Charlie era cheio de sardinhas e tinha aquela pele ultra-sensível que queimava com qualquer coisa. Kyle sempre o ajudava a passar fio dental, mas Charlie tinha uma mania de criança independente e sempre respondia que sabia como fazer sozinho.

Kyle voltou para a cozinha completamente arrumado, com a mochilinha do Batman que Charlie levava para a escola, a pasta de trabalho embaixo do outro braço, largou tudo em cima da mesa e consultou o relógio, constatando que haveria tempo de lavar a louça.

-Deixa aí, lindo. - Kenny disse, ainda empenhado na luta de fazer Emma terminar a tigelinha. Ela já estava toda suja de mamão na região em torno da boca. Kenny havia colocado o babador com desenhos de balãozinho e o usava para limpar a parte mais grossa, mas ela sempre dava um jeito de se sujar. - Eu lavo.

-Tudo bem, o Charlie ainda não tá pronto.

Kenny ficava impressionado com a velocidade com que Kyle executava as tarefas domésticas e, mesmo assim, o resultado final era um brinco.

-Escuta. - O ruivo disse de repente. - Você vai ao mercado hoje?

Ele pensou por um segundo.

-Posso ir.

-Você vai lembrar se eu te disser o que falta?

A resposta foi uma gargalhada. Não chegou a ser irônica, era extremamente honesta; não, ele não se lembraria. Virou-se para olhar Kyle de costas na pia, como a bunda dele ficava bonitinha naquela calça. Quando voltou seu rosto para Emma, ela estava com a mãozinha dentro da tigela.

-Não, não, não pode. - Disse a ela, segurando seu pulso minúsculo para puxar a mão do pratinho. Não se deu ao trabalho de limpar, porque não serviria de grande coisa. - Escreve, é melhor.

Kyle chacoalhou as mãos para tirar o excesso de água e fechou a torneira, deixando a louça no escorredor. Pegou o bloco de notas amarelo dentro de uma gaveta desorganizada na cozinha e procurou uma caneta entre as tralhas. Ao encontrar uma, riscou no papel para ter certeza de que ela funcionava, antes de começar a escrever a lista. Falava em voz alta conforme pensava:

-Eu preciso de sabão em pó… Leite…

-Leite tem.

-Mas tá acabando.

-Eu vou ter que ir de carro?

-Vai, né, amor? Não vai nessa mercearia da esquina, vai no mercado mesmo.

Kenny empurrou a cadeira um pouco para trás e pensou a respeito, mordendo o lábio inferior, segurando a colher no ar. Emma se inclinou na cadeirinha tentando alcançá-la, com a boca aberta, sacudindo os pés. Ele sorriu e raspou o restinho de mamão, que deu em mais duas colheres. Kyle continuou escrevendo, debruçado sobre o balcão.

-Quando é que a Karen e o Michael vem jantar mesmo? - Perguntou de repente.

-É… Sábado.

-Você não quer já comprar as coisas do jantar então? Não é mais prático?

A irmã de Kenny havia se casado com um músico três anos mais novo do que ela, que tinha uma banda de rock e piercing no mamilo. Quando Kenny contou essa última informação, Kyle respondeu apenas com uma expressão de “eu não quero saber como você sabe disso”. Nunca viu dois cunhados se darem tão bem quanto aqueles dois. Tinham uma amizade tão genuína que Kyle não duvidava nada que continuassem sendo amigos mesmo que Karen e ele se separassem algum dia. Michael sempre trazia um pouco de erva quando eles vinham jantar, para talvez fumar com Kenny na varanda depois que as crianças já estivessem dormindo.

Era a única coisa que, muito eventualmente, Kenny ainda fumava. Depois que tiveram o Charlie, ele parou completamente com o cigarro também.

-Se você prefere, eu faço isso hoje.

-Não sou eu que prefiro, você que vai fazer.

Kyle deixou a lista sobre a bancada e tirou as uvas lavadas da geladeira e uma maçã, que descascou e picou enquanto conversavam, guardando em potinhos separados para guardar na lancheira. Qualquer conversa que tivessem de manhã cedo consistia em Kyle andar de um lado para o outro, fazendo alguma coisa como se ainda não estivesse cedo demais para sair, otimizando o tempo como a maquininha perfeccionista que ele era. Kenny ficava tonto só de olhar. Tirou o babador de Emma para deixá-lo na lavanderia e depois a tirou da cadeirinha.

-O que a gente vai cozinhar? - Perguntou, aproximando-se de Kyle com o bebê.

Quando Kyle virou o rosto em direção a eles, riu do estado de Emma, toda babada e com as mãos melecadas de fruta.

-Vai limpar essa criança, Kenny. Por que eu te deixo sozinho com ela?

-Sei lá, porque você é doido. - Ele ajeitou Emma no colo primeiro, depois trocou o braço com que a segurava. Ela já era muito mais pesada do que quando a adotaram. O processo todo ocorreu antes de Emma chegar ao mundo, então a tiveram nos braços assim que ela nasceu. Recostando-se na bancada, Kenny prosseguiu. - Ô, vamos fazer macarronada então?

-Boa ideia. Quem diria que passa alguma coisa nessa cabecinha.

-Você vê como ele fala comigo? - Kenny perguntou a Emma, que estava empenhada em tentar tocar no cabelo de Kyle. Ela parecia ser fascinada pela cor ou pelos cachos, adorava puxar com as mãozinhas e tentar alisá-los. Virou o rosto para Kenny com um beicinho, aproximando as mãos do peito, alternando o olhar de um adulto ao outro.

-Então você vê o que falta, compra cerveja e… - Kyle voltou sua atenção ao bloco de notas e voltou a anotar em rabiscos sem cuidado; mesmo assim, sua caligrafia era impecável. Kenny não poda entender como ele fazia esse tipo de coisa. - Traz pasta de dente. E pão. - Interrompeu o que escrevia para levantar a cabeça bruscamente, apontando a caneta para ele. - Você vai trocar a lâmpada do banheiro hoje?

Kenny congelou por um segundo, exatamente como Charlie fazia quando era pego fazendo alguma coisa errada. Os dois não tinham o mesmo sangue, mas podia-se dizer de longe que eram pai e filho. Os olhos azuis tão claros de Kenny se arregalaram por um segundo, como se tivesse acabado de ver um leão ou coisa pior. Exagerava nesses gestos porque sabia que isso faria Kyle sorrir.

-Vou, sim senhor.

-Mas vai mesmo? - Agora, a ponta da caneta estava apontada para o nariz do loiro, como se fosse algum tipo de objeto letal. - Se eu chegar em casa hoje e tiver que tomar banho no escuro de novo, eu juro que vou pegar a escada da garagem e trocar sozinho essa merda.

Kenny usou a mão livre para tampar um ouvido de Emma; o outro estava pressionado contra o seu peito. Ela descansava a cabecinha no pai como se ele fosse um travesseiro gigante. A expressão no rosto de Kenny era tão atrevida que Kyle poderia ter dado um tapa nele ali mesmo, se não fosse pelo escudo de bebê. Toda vez que um palavrão escapava na frente das crianças, o loiro se deliciava desse deslize, vingando todas as broncas que já levou por não conseguir controlar a própria boca. Só não disse nada naquele momento específico porque não gostava de forçar a sorte, pelo menos quando se tratava do temperamento delicado de Kyle.

-Não precisa disso, lindo, eu alcanço só com a cadeira.

-Sim, você alcança. Eu não. É por isso que é você quem deveria ter trocado, já.

A mão de Kenny deixou o ouvido de Emma para envolver a nuca de Kyle, os corpos se aproximando como se gravitassem um para o outro de forma natural. O loiro plantou um beijo bem no canto da boca dele, e houve resistência no início; Kyle abaixou o rosto e tentou continuar escrevendo, rindo baixo, empurrando-o com o ombro. Mas se Kenny McCormick podia ser definido com apenas um adjetivo, este seria persistente. Não afastou a boca até que arrancasse um beijo demorado dele, carinhoso e lento, com os dedos subindo pelos cabelos da nuca. Emma também aproveitou a proximidade para tentar se agarrar ao corpo de Kyle uma segunda vez. Sempre cortava o coração do ruivo em mil pedaços quando chegava esse momento de despedida, em que precisava negar colo ao seu bebê e não podia fazê-la entender o motivo.

Charlie já aparecia na porta da cozinha procurando a mochila. Kenny deitou a testa na lateral do rosto de Kyle e deixou um último beijo na bochecha, entregando Emma a ele para um cheirinho breve de até logo.

-Eu vejo você à noite, meu amor. - Kyle disse com aquela voz tão mansa que praticamente só usava com as crianças, e Kenny sorriu enquanto assistia de perto como ele beijava a bochecha macia de Emma várias vezes antes de devolvê-la, hesitante. Ela resmungou um pouquinho, mas nunca fazia muito escândalo. - E você. - O ruivo prosseguiu, segurando o maxilar de Kenny antes de se colocar na ponta dos pés, dando-lhe um selinho rápido. - Não me faça brigar com você. Eu não quero.

-Você adora brigar comigo, pode admitir.

-É verdade! - Charlie confirmou entusiasticamente, ajeitando a mochila nas costas.

-É nada. - Kyle disse distraído, negando com a cabeça, guardando a lancheira na mochila de Charlie e fechando com cuidado.

Apanhou a pasta sobre a mesa enquanto Charlie acenava para Kenny e a irmãzinha, parecendo tão pequeno com aquela mochila pesada nas costas, os ombros um tanto caídos para frente, ainda com cara de sono. Era um passarinho matinal, esse Charlie, mas ainda sim conseguia ser preguiçoso na mesma medida que Kenny. O loiro sorriu e os acompanhou até a porta, ajeitando Emma no colo, levando junto o chocalho para ficar brincando com ela ao atravessar a sala. Quando via aquelas duas cabecinhas ruivas se dirigindo à porta para sair de casa todas as manhãs, tinha certeza de que fez alguma coisa certa na vida para merecer uma família como aquela.

-Se cuidem. Voltem logo. - Gritou da varanda, quando Kyle já tirava o carro da garagem e ajeitava a gola da camisa de Charlie. O garoto começou a acenar animadamente pela janela do carro.

Kenny sorriu e acenou com a mãozinha pequena de Emma, que continuava braba por ter perdido o colo de Kyle.

-Calma, meu amor. - Kenny disse a ela. - Eu também odeio quando eles tem que sair.


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