A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 40
Enfrentamento




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Enma tinha o olhar perdido enquanto encarava as janelas que subiam do chão ao teto do Palácio, admirando melancolicamente o Mundo Espiritual.

Koenma entendia bem aquele desalento do pai. Tinha estado ao seu lado em graves momentos de crise no passado para saber reconhecer aquele ar desesperançoso que tão raras vezes ele testemunhara. Pelo semblante refletido no vidro, Koenma chegou até mesmo a notar uma certa expressão de derrota no rosto do Rei, sensação que logo foi dissipada: mesmo aparentemente esmorecido, Enma ainda transpirava vigor e imponência por todos os lados.

A conversa com Botan no corredor ecoava na memória. A denúncia sobre o autor do furto das Reíquias havia sido um choque que ele tentava pouco a pouco digerir. Era como se estivesse revivendo novamente o roubo dos Artefato das Trevas, a ansiedade para encontrar os culpados, o medo dos castigos do pai, a tensão pelas consequências... Paralisado pelas lembranças, Koenma não conseguiu fazer outra coisa senão aguardar pela ira do Rei.

— Esta é a primeira vez que as Relíquias Primordiais são levadas do Palácio — Enma falou, interrompendo seus pensamentos.

— Devemos acionar o Esquadrão de Defesa? — respondeu, quase que automaticamente.

Enma suspirou. Tirou os óculos finos do rosto e os limpou com cuidado nas vestes.

— O Esquadrão está focado no fechamento das barreiras entre o Mundo dos Humanos e dos Demônios — Ele fez uma pequena pausa — Na verdade, ainda não dei o alerta. Queria conversar com você primeiro.

Koenma assentiu, engolindo em seco. Sentiu nos ombros a responsabilidade pesar sobre ele, mas manteve-se firme olhando para o pai.

— É muito provável que Liu esteja por trás disso, apesar de ainda não saber como ele pode ter invadido o perímetro sem ser notado — o Rei continuou — Todos aqui foram informados de que ele foi banido do Reino Espiritual.

Koenma prendeu a respiração. A ideia de Kurama ser o autor do ataque ainda estava tão recente em sua cabeça que chegou a se surpreender com a dedução do pai sobre Liu. Baixou os olhos, confuso, e precisou reprimir o impulso de gritar que ele estava errado.

No momento em que a guia lhe confidenciou que fora atacada, não pensou em outra coisa senão contar ao pai. Agora, na frente do Rei, a certeza já não era tão sólida. Um medo quase irracional de o enfurecer ainda mais lhe assaltou. Se contasse a verdade, com certeza Koenma seria responsabilizado pela sua aproximação inapropriada com Yusuke, Kurama e Hiei, youkais que atraíam a desconfiança do Reikai. Se não contasse e Enma viesse a descobrir, ele certamente sofreria consequências inimagináveis pela omissão do fato.

Enma se virou para ele, percebendo a agitação do filho.

— O que Botan queria com você?

Koenma voltou a olhar para o Rei. Os sentimentos conflitantes quase o impediam de pensar com clareza. O encarou por um segundo, tempo que lhe pareceu uma eternidade.

— Nada — ele mentiu — Assuntos de sempre do Ningenkai. Bozukan ainda está a solta.

— Eu sei — disse, voltando-se para a janela.

Koenma abaixou o rosto, lívido pela mentira e, ao mesmo tempo, impressionado consigo mesmo.

Desde que assumira o comando do programa de Detetive Espiritual anos atrás, passara a gozar de certa autonomia no Reikai, apesar da permanente subordinação ao Rei. Aprendera muito com os humanos — Kuroko¹, Sensui, Yusuke — e sentia que crescera junto com eles.

Sua maior demonstração de coragem e independência provavelmente fora o enfrentamento às ordens do pai quanto à situação de Yusuke, logo após a batalha com Sensui. Agora estaria ele novamente se opondo a Enma para defender um amigo, ainda que em condições nada favoráveis?

Koenma balançou a cabeça, tentando afastar tais pensamentos. Imediatamente, outro questionamento brotou em sua mente. Kurama havia dado a entender que Enma soubesse dos planos de Liu junto ao Makai. Teria o roubo alguma relação com aquela conspiração?

Ele olhou novamente para o pai, estranhamente mais calado do que de costume. Decidido, reuniu coragem e se aproximou, ficando a seu lado.

— O acordo de Liu com Bozukan... é verdade? — Koenma perguntou — Como você permitiu?

— Por que acha que eu tinha conhecimento?

A pergunta severa quase o intimidou, mas Koenma manteve o semblante sério.

— Ele era o chefe do Esquadrão... e você, o Rei.

Enma se virou, encarando o filho.

— Você cresceu, Koenma — disse, com um sorriso discreto — Parece que foi ontem que eu ainda te castigava com palmadas.

Koenma não respondeu, olhando para a janela enquanto o pai se afastava.

— Isso me deixa mais tranquilo para um possível desenlace dessa história — Rei Enma continuou.

— Do que você está falando?

Pai e filho voltaram a se encarar.

— De você assumir o meu lugar no Mundo Espiritual.

(...)

Kurama, Kiki e Hiei baixaram a guarda por apenas poucos segundos, distraídos pela visão macabra de seus corpos sem vida através do medalhão. O susto inicial não fora tanto pela morte estampada em seus rostos, mas sim pela reviravolta inesperada. De observadores, passavam agora a observados. Ao menos foi essa a sensação que, por um breve instante, os acometeu.

Como resultado, a atenção dos três ficou ainda maior. Eles sabiam que a margem para erros agora era nula, se quisessem sair vitoriosos. Se Bozukan pensava que os deixaria inseguros com a projeção do Olho de Jade, a estratégia não funcionaria.

O que eles falharam em perceber, no entanto, era que para o youkai, aqueles poucos segundos de distração inicial eram tudo que bastava.

Uma fina camada de fumaça já cobria a grama. Silenciosamente, ela avançou, engolindo seus pés e rastejando sobre suas pernas. Era tão discreta e veloz que eles somente se deram conta quando, em um piscar de olhos, a fumaça já os envolvia até a cintura.

— O que é isso agora? — Hiei perguntou, visivelmente irritado. Puxou a espada sem demora e a empunhou em posição de ataque. A névoa, porém, já alcançava seu peito.

— Essa merda é tóxica? É assim que esse covarde pensa que vai nos matar? — Kiki berrou, tentando, sem sucesso, dissipar a nuvem em movimentos agitados.

Kurama foi o único que permaneceu imóvel. A fumaça os consumia avidamente, cobrindo sem cerimônia cada parte dos seus corpos. E, apesar de estarem lado a lado, a neblina era tão densa que, em pouco tempo, já não conseguiam enxergar mais uns aos outros.

— Fiquem parados — Kurama falou, elevando a voz para se fazer ouvir — Não se mexam.

Ele teve dúvidas se conseguiu passar a mensagem com clareza. Até um minuto atrás, podia até ouvir a respiração dos companheiros, mas agora os palavrões e grunhidos de Kiki e Hiei pareciam distantes e abafados, como a quilômetros de distância. A única coisa que o fazia ter certeza de que permaneciam por perto era a energia inconfundível dos dois, pulsando com força ao seu lado.

— Eu sei que está aqui — ele disse em voz alta — Apareça e vamos resolver isso entre nós.

A resposta veio em forma de uma risada contida.

— Você sempre se achando superior, Kurama... — A voz de Bozukan se sobrepôs à névoa.

O chicote de espinhos já estava firmemente preso entre os dedos de Kurama. A nuvem de fumaça oprimia seu peito e fazia arder a vista, mas nada disso atrapalhou seu foco ou desviou seu pensamento.

Mesmo cercado por aquele nevoeiro espesso, que o isolava dos demais e amortecia os ruídos externos, os sentidos afiados de Kurama conseguiram captar um tímido estalido. Algo que soava como uma distante crepitação, mas que ele não teve dúvidas do que se tratava. No segundo seguinte, tal estalido se transformaria em uma sonora e perigosa explosão, mas ele precisou apenas de alguns milésimos para desviar com maestria do ataque.

A voz de Kiki chegou até ele novamente, em um lamento baixo que ele se forçou a ignorar.

— Eu falei que pouparia seus amigos, se vocês não ficassem no meu caminho — Kurama ouviu novamente a voz do youkai, sem ainda conseguir precisar sua localização, escondido pela parede de fumaça — Mas vocês quebraram o trato.

— Deixe eles fora disso — respondeu — ou sua morte será muito mais dolorosa do que o necessário.

Mais uma vez Bozukan riu, em deboche. A crepitação de antes se repetiu, dessa vez por mais tempo. Quando o raio explodiu, iluminou toda a cortina escura de neblina ao redor de Kurama, que novamente escapou graças aos seus reflexos apurados.

Não ver o inimigo era algo que a princípio o deixava tenso, mas ele sabia que não precisava depender da visão para localizar o oponente. Com todos os sentidos centrados em um único objetivo, ele esperou paciente pelo próximo estalo.

Fechou os olhos e saltou para o lado, fugindo pela terceira vez do golpe. Sua audição, seu olfato e até mesmo sua intuição o guiavam não apenas para o rumo do ataque, mas também para sua origem. Quando voltou a abrir os olhos, o terreno estava muito mais claro, apesar de continuar nas mesmas condições de antes. Não era a névoa que tinha diminuído. O que tinha mudado era a percepção de Kurama.

Pulou novamente, dessa vez fazendo o chicote vibrar. Sentiu quando atingiu algo sólido entre o nevoeiro e forçou a arma a se enroscar no alvo. O puxou com força, na expectativa de ferir, ou no mínimo revelar Bozukan. O chicote, no entanto apenas tensionou, como se enganchado em algo imóvel ou pesado demais, até mesmo para ele.

O puxou novamente, mas o chicote não respondeu.

Quando Kurama percebeu que algo estava errado, o estalido surgiu às suas costas. Sua mão ainda segurava a própria arma, que, presa, não o obedecia. Um segundo se passou. O estalido sumiu, indicando a iminência do raio. Kurama seria atingido se insistisse em recuperar o controle do chicote. Mais meio segundo se fora. O choque chegaria até ele.

Sem saída, largou o Rose Whip e esquivou do ataque. Sua breve hesitação, entretanto, cobrou seu preço: o braço esquerdo recebeu a carga elétrica sem piedade, com tamanha violência que chegou a rasgar a manga do casaco, expondo seu braço. A corrente passou pelo seu corpo, atravessando o tórax e o queimando por dentro. Se sentiu sem ar, mas obrigou o corpo a resistir.

Olhou para o local em que estava no instante anterior. O chicote havia sumido — pulverizado ou simplesmente engolido pelas trevas.

Rapidamente, pegou mais uma semente de seu arsenal e a transformou em uma pétala de rosa. A pétala se multiplicou, criando duplicatas que imediatamente o rodearam, o envolvendo em uma espiral ao mesmo tempo defensiva e ofensiva. O movimento constante das flores rasgava de leve a névoa ao redor, mas nem mesmo isso era suficiente para extinguir a espessa neblina que o cercava.

A espiral se expandiu, aumentando sua área de atuação. As pétalas giravam em velocidade crescente, se transformando em um borrão avermelhado tão afiado quanto uma navalha.

— É assim que planeja me encontrar? — Bozukan falou — Vou facilitar as coisas para você.

Kurama deu meia-volta, em direção à voz. Se deparou com o youkai na sua frente, dentro do redemoinho de flores que havia criado.

— Acho que devia cuidar desse braço...

Ignorando o conselho, ele direcionou o ataque. As pétalas mudaram o movimento e se juntaram para a ofensiva como mil estilhaços a caminho do inimigo. Bozukan desapareceu nas sombras novamente, mas as rosas não se detiveram. Permaneceram a rota, já energeticamente guiadas até seu alvo.

Elas continuaram perseguindo o youkai por mais algum tempo, subindo, descendo e rodopiando sem nunca interromperem sua dinâmica. Por fim, ao atingirem seu objetivo, se desmancharam em um estouro agudo e penetrante que agitou a fumaça ao redor.

Kurama segurou o braço ferido, olhando com cuidado para o lugar do estrondo. Uma fagulha se originou de lá, se expandindo em raios finos e radiantes que o fez trincar os dentes. As centelhas ganharam volume e avançaram, cobrindo quase toda a área e deixando pouco espaço para escapar de suas potentes ramificações elétricas. Todos os pelos do corpo se eriçaram, atraídos pela estática.

Sem tempo ou lugar para fugir do ataque, ele agachou, segurando a nuca abaixada com as mãos enquanto os braços cobriam os ouvidos. Antes, porém, conseguiu lançar alguns minúsculos grãos pelo gramado, tão rápido que o gesto escapou ao olhar de Bozukan.

Os raios trovejaram, produzindo um clarão e explodindo em um volume tão alto que apenas o barulho seria suficiente para atordoar um inimigo. Kurama, no entanto, estava ileso.

As sementes que jogara momentos antes haviam se transformado em árvores de troncos lisos e robustos. Elas criaram uma barreira que atraiu e redirecionou a eletricidade para o chão, através de suas raízes profundamente fincadas no solo. Em vários pontos, os troncos apresentavam cortes de onde deixavam escorrer uma seiva cor de chumbo, que, ao menor contato com o ar, endurecia e ganhava uma consistência emborrachada. A resina cobria a parte de trás do escudo de árvores e chegava ao chão, isolando a área onde Kurama estava e minimizando o ataque. Apenas uma leve descarga colateral chegou até ele.

Kurama levantou. Encarou Bozukan por entre as plantas, que agora reaparecia com um corte no rosto — provavelmente produzido pelas pétalas de rosa do seu golpe anterior.

— Você pode ficar eternamente fugindo de mim, mas seus amigos são tão espertos assim? — Bozukan falou.

Os ataques do youkai tinham causado danos devastadores à clareira. Apesar de maior parte do terreno ainda estar sob a neblina sinistra, era possível ver alguns estragos traduzidos em folhas chamuscadas e galhos partidos ao meio.

— Já falei que isso é entre mim e você — Kurama disse.

— Tarde demais...

Kurama fechou a cara. Hiei e Kiki continuavam invisíveis sob a névoa, suas vozes nem sequer mais eram ouvidas. E foi então que ele percebeu.

Não era apenas o silêncio.

Já não conseguia sentir a presença dos amigos. As energias claras e indistintas de antes não existiam mais.

Bozukan mostrou os dentes, sorrindo ao ver no rosto de Kurama que ele tinha acabado de compreender o que tinha acontecido.


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Notas finais do capítulo

¹Kuroko - Para quem não está ligando o nome à pessoa, é aquela ex-detetive espiritual que Yusuke visita antes de ir para o Torneio do Makai.