A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 4
Socos e dados




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Passava das dez da noite quando Kurama chegou ao endereço fornecido por Botan. Diferente de antes, agora o bar estava aberto e cheio de clientes de todos os tipos. A maioria, ele notou, espalhafatosos e com várias garrafas vazias à mesa.

Kurama sentou no balcão e pediu um gim-tônica. Não era adepto de bebidas alcoólicas, mas sempre teve predileção por água tônica, o que tornava o drink prazeroso. Não se importou em mentir a idade: vender bebidas para menores com certeza seria o mais leve dos crimes praticados naquele lugar. O bar inteiro exalava a corrupção e problemas. "O lugar perfeito para um demônio arruaceiro se esconder", ele pensou.

Começou a observar os presentes, na expectativa de sentir alguma energia fora do normal. À sua direita, no balcão, estava um casal que parecia se desentender. O homem tentava abraçar a moça, sem sucesso, enquanto cochichava palavras em seu ouvido. "Nada aqui", ele pensou e logo desviou a atenção.

Nas mesas mais próximas, grupos diversos riam e falavam alto. A maioria composta de homens de aparência simples, provavelmente funcionários de construção civil ou mecânicos após um longo dia de trabalho. Algumas jovens faziam companhia, abraçadas aos rapazes. Kurama não teve dúvida do tipo de relacionamento que estaria se desenvolvendo ali. Ao contrario dos homens, as mulheres pareciam atentas e evitavam beber, apenas sorrindo e oferecendo mais um copo de cerveja aos acompanhantes. Na certa, esperando conseguir um programa no fim da noite antes de irem para casa. Novamente, Kurama virou o rosto, desapontado.

No fundo do bar, afastado do barulho, uma mesa com cinco pessoas de terno e gravata parecia destoar da multidão do local. Concentrados na conversa que travavam entre si, ignoravam o alvoroço ao redor com uma placidez que poderia causar estranheza a um observador mais atento. O único elemento em comum entre aquela e as demais mesas era a garrafa de bebida alcoólica — um saquê local — já quase vazia. Kurama os fitou por alguns instantes com interesse. Tentou se concentrar e prestar atenção na conversa, que, mesmo naquele ambiente ruidoso, lhe chegava clara aos ouvidos. Pareciam falar de negócios, de um jeito cauteloso. Ficou alguns minutos observando cada um deles, mas não conseguiu captar nada especial vindo daquela direção e desviou o olhar, desanimado.

Ele suspirou e bebeu mais um gole do gim-tônica, o segundo da noite. Olhou o relógio. Já havia passado mais de uma hora desde que chegara ao local, e ele começava a se perguntar se que toda essa história realmente não era apenas excesso de zelo de Koenma.

De repente, um grito forte chamou a atenção no ambiente barulhento. Ele olhou para o canto esquerdo e viu uma mesa com seis pessoas sentadas ao redor, dois dados no centro e um montante de dinheiro na frente de cada um. Aparentemente, estavam participando de uma espécie de jogo de azar, em um frenesi que aumentava na mesma proporção em que consumiam aos goles os mais diversos tipos de drinques. A animação do grupo começou a chamar a atenção dos demais frequentadores do bar, que agora se amontoavam perto da mesa, vibrando a cada rodada.

Kurama se aproximou, estudando a ação que se desenrolava na sua frente e percebeu, com certa curiosidade, que apenas um dos ocupantes era uma mulher. Jovem, cabelos curtos e negros. A moça chamou atenção pelo alto volume de dinheiro que ia para suas mãos a cada rodada. Enquanto observava o grupo animado, notou também uma energia instável vindo daquela direção, e tal fato o surpreendeu. Já estava quase desistindo de encontrar algo naquele bar. Se concentrou mais um pouco e tentou descobrir de onde vinha aquela energia que lhe chegava em ondas intermitentes,  tamanha a aura pesada do lugar.

Teria que chegar ainda mais perto se quisesse uma percepção mais clara. Aproveitando-se da multidão, deu mais alguns passos para a frente, ficando o mais próximo possível do grupo principal que comandava as apostas. A aproximação foi suficiente para ele entender a fonte daquela carga energética e após alguns minutos a revelação o atingiu como um raio: o movimento dos dados era completamente anti-natural. A primeira vista, a alteração era sutil, quase imperceptível. Apenas um olhar mais atento seria capaz de detectar aquela anomalia. Era como se estivessem sendo invisivelmente manipulados. 

A jovem ganhou mais uma rodada e arrecadou o dinheiro dos demais. Ela ria e juntava o dinheiro sem cerimônia, recebendo de volta algumas caras feias e ameaças que pareciam não a assustar. Ao contrário, portava-se completamente à vontade, com seu casaco de moletom cinza surrado e seus gestos descontraídos e soltos. Não se intimidava pelos companheiros do jogo e parecia disposta a continuar ganhando. Ao começarem a próxima partida, Kurama focou os olhos na moça. Ela encarava os dados concentrada, confirmando sua suspeita. "Ela está manipulando mentalmente os dados", pensou, ainda com o olhar atento.

Fim da rodada e mais uma vez a morena recebeu o dinheiro dos companheiros do jogo. Zombando dos demais, guardou o dinheiro em uma pequena carteira e a acomodou no bolso do casaco.

— O que eu posso fazer se tenho sorte com os dados.... — ela dizia, em meio a risadas.

E saiu do bar por uma porta lateral, enquanto os demais se dividiam entre aceitar o fato, entornando mais uma garrafa de bebida goela abaixo, ou esbravejar raivosos, tendo que ser segurados para conter a fúria.

Kurama saiu na mesma direção, decidido a interpelar a mulher. Ele a encontrou encostada na parede próxima à porta, acendendo um cigarro, despreocupada.

— Belo truque — disse, se aproximando sorrateiro.

— O quê? — a jovem se sobressaltou, quase queimando os dedos com a chama do isqueiro — Que truque, não sei do que você está falando — ela retrucou.

— Um bom trabalho, mas bem amador... o suficiente para enganar meia dúzia de bêbados.

— Olha aqui, você nem estava no jogo — ela esbravejou, o empurrando com uma das mãos — Não sei o que você acha que viu, mas eu não tenho nada a ver com isso — e, dizendo isso, virou-se de costas para o rapaz, na tentativa de ignorar aquela afronta.

— O que é? Telecinese? Talvez seus amigos do bar gostem de saber dessa sua trapaça...

A provocação surtiu efeito. A garota se virou em um pulo, as sobrancelhas franzidas sinalizando uma raiva que ela já não se preocupava em conter.

— Olha aqui, o que você quer, heim? Está querendo meu dinheiro para calar essa boca? Já falei que não tem trapaça nenhuma, até quando vai ficar torrando a minha paciência com essas histórias? — disse de uma tacada só, quase perdendo o fôlego.

— Eu não quero seu dinheiro — Kurama respondeu, mantendo a calma — Só saber quem você é e o que faz aqui — e cruzou os braços, encarando a jovem com seu semblante sério.

Antes de que ela tivesse chance de revidar, a porta se abriu com violência e uma figura exaltada correu para fora do bar. O sujeito, cabeça raspada e roupas simples, parou esbaforido e olhou ao redor, pousando o olhar enfurecido na moça à sua esquerda. Uma cicatriz próxima à orelha direita marcava seu rosto anguloso, deixando sua fisionomia ainda mais assustadora.

— Ah, você ainda está aí, não é, sua ladra! — ele gritou, partindo com velocidade para cima dela.

— Ei, eu não roubei nada! Qual é o problema de vocês? 

Já era tarde. Ele agora estava a centímetros da garota que, em um movimento ligeiro, agachou para fugir das mãos que se alongavam em sua direção. 

Levantou apressada, os braços em posição de defesa. Sem pensar muito, brandiu o pulso direito, acertando o rosto do homem em um soco preciso. Sentiu a injeção de adrenalina tomar conta dos seus impulsos e, confiante, mirou o joelho na virilha do sujeito.

Seu otimismo, no entanto, durou pouco. A jovem se viu sendo empurrada com força em direção à parede, suas costas gritando com a dor do baque. Tentou revidar, mas uma mão pesada agora prendia com firmeza seu pescoço enquanto seu casaco era invadido por uma outra mão agitada que tateava os bolsos.

— Você acha que eu sou igual àqueles otários, que pode me enganar?  — ele ralhava, os olhos vermelhos enfurecidos — Sua filha da....

— Solte-a! 

O homem se virou surpreso para a voz que surgiu de repente ao seu lado. Se deparou com um jovem ruivo de aparência adolescente, mas olhos faiscantes e postura destemida. Atraído pelo novo oponente, jogou sua vítima para longe, a fazendo cair a metros de distância. 

— E você quem é? Cúmplice dessa vadia?

Kurama percebeu que uma energia muito superior — e, dessa vez, maligna — havia tomado conta do lugar. Sim, a jovem também emanava algo, mas agora, com a presença daquele sujeito e fora do tumulto do estabelecimento, estava muito mais clara a diferença. Seus dentes trincaram ao perceber que poderia ter cometido um erro de julgamento mais cedo.

Não teve muito tempo para refletir sobre o assunto. No mesmo segundo já desviava do ataque do agressor, que agora o perseguia com a mesma intensidade que usara com a garota. O homem brandia socos no ar, errando Kurama por poucos centímetros. Ele, por sua vez, tentava ganhar tempo, enquanto analisava a nova situação, contornando cada golpe com destreza.

De repente, uma tampa de lata de lixo surgiu no ar, atingindo o homem na cabeça. Ele parou, mais de susto do que de dor, e encontrou a jovem novamente de pé, o olhar desafiador e uma lixeira aberta a alguns metros de distância.

— Esse é o melhor que você tem para mim? — ele riu, a pancada sendo insuficiente para sequer atrasá-lo em uma nova investida contra ela.

— Seu miserável! Devolva meu dinheiro! 

— Que dinheiro? O que você roubou?

— Eu vou acabar com você! 

Ela avançou, os punhos erguidos e o rosto em brasas. O acertou no maxilar, dessa vez com toda a força que conseguiu imprimir no golpe. Sem hesitar, desferiu mais dois socos seguidos, sujando as próprias mãos do sangue que agora escorria pelo nariz do seu adversário.

O próximo soco estava a caminho quando sentiu a mão quase quebrar com violência ao ser agarrada com força. Olhou surpresa para o homem que segurava seu punho e sentiu os dedos serem esmagados, fazendo um grito inevitável sair pela garganta. Lágrimas de dor brotaram nos seus olhos, deixando sua visão embaçada demais para distinguir o tentáculo verde que agora enlaçavam o braço do agressor.

Ela novamente desabou, enquanto o Rose Whip de Kurama puxava com veemência sua presa. Mais um movimento ágil e o chicote agora envolvia todo o corpo do sujeito, o deixando imóvel.

— Quem é você? — perguntou o youko.

— Vocês se acham mesmo muito espertos, não é? 

Kurama apertou ainda mais as cordas do seu Rose Whip em torno do corpo do homem, seu rosto tomado de raiva pela sua própria conclusão precipitada sobre a verdadeira ameaça do bar. 

— Acha que isso pode me deter? — disse, soltando uma gargalhada e sumindo no ar, o chicote caindo flácido no chão. Reapareceu alguns metros na frente, em uma postura debochada e, repetindo o truque, sumiu nas sombras.

A menina, que ainda sentia os ossos dos dedos latejando, olhou surpresa em direção à risada que ainda ecoava na escuridão e não segurou um berro de frustração.

— Maldito! Ele levou meu dinheiro! — disse, chutando o ar.

— Você está bem?

— Você não ouviu o que eu falei? Aquele desgraçado levou toda a minha grana! — continuou, inconformada.

— Você sabe quem ele é?

— Ele é um dos imbecis que estava jogando comigo. Idiota...

— Já viu ele antes?

— Eu não, é a primeira vez que venho aqui. E eu achei que essa espelunca seria um bom lugar pra fazer um dinheiro em cima desses otários... — respondeu, agitada. Ainda sentia o corpo tremendo pela emoção da luta e pelo desgosto de ter acabado de perder o dinheiro — É melhor que ele esteja aqui amanhã! Isso não vai ficar assim!

— Ficou maluca? Ele pode te matar!

— Ele que tente...

— Será possível que você não entendeu o que acabou de acontecer? — Kurama repreendeu — Ele é perigoso, fique longe dele e deste lugar. Você vai acabar se machucando.

— E quem pediu sua opinião?

Ela se virou para ir embora, mas parou por um instante antes de seguir. 

— E vê se fica de bico fechado sobre esse negócio dos dados, falou? — pediu, olhando por cima dos ombros, em um tom quase imperativo.

E se afastou, deixando Kurama pensativo.


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