A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 29
Demônios interiores, parte I




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O primeiro golpe partiu de Yusuke, e a força foi tanta que Grego/Bozukan sentiu o deslocamento de ar ao seu lado quando desviou do ataque.

Os socos do garoto eram ágeis e numerosos, seus punhos desenhando borrões no ar tamanha a potência que ele alcançava. Ainda assim, seu oponente evitou os ataques um a um.

Grego deslocava-se graciosamente pela sala de controle que ia aos poucos sendo destruída pelo impacto dos socos de Yusuke, que atingiam todos os lugares, menos o seu alvo.

A luta, com movimentos tão perfeitos que mais parecia uma coreografia ensaiada, arrastou-se assim por vários minutos: Yusuke aplicando toda a força em seus golpes, tentando fazer cada ataque ser mais rápido do que o anterior; Grego, mantendo a defensiva impecável.

Inevitavelmente, Yusuke parou. Estava irritado e começando a se cansar do jogo que o demônio parecia brincar com ele. O incômodo não vinha apenas pela sua taxa de acertos nula, mas também pela ausência de contra-ataque. Sentia-se lutando sozinho, e não gostava da sensação.

— Cansado? — o demônio perguntou, percebendo a respiração ligeiramente ofegante do rapaz.

— Cansado dessa palhaçada, sim. Por que não luta comigo de verdade? Desviar dos meus golpes é tudo que você sabe fazer?

Grego riu discretamente. Continuava tão calmo e descansado quanto antes.

— Qual é a pressa? — disse, sob os olhos atentos de Yusuke — Você é muito precipitado, mas acho que essa é uma característica típica dos mais jovens.

— E você fala demais! Típico dos mais arrogantes!

Yusuke avançou de novo, mas para sua surpresa, Grego não se mexeu. Permaneceu onde estava, esperando o golpe do garoto. Quando este o atingiu, no entanto, viu a imagem do demônio se desmanchar em uma nuvem de fumaça, e, ao invés do rosto do inimigo, seu punho acertou com força a parede, criando uma rachadura que fez alguns pedregulhos rolarem para o chão.

Atônito, Yusuke se virou e olhou ansiosamente ao redor, mas estava sozinho na sala. Porém, antes que pudesse falar, ouviu novamente uma voz, dessa vez, vindo do lado de fora.

— Eu disse que você era precipitado. Se tivesse mais atenção, teria percebido a ilusão...

O som o deixou alerta e sem perder tempo, o garoto voou pelo corredor, tentando apurar os ouvidos. Mentalmente, se xingou por ter caído no truque, e ficou se perguntando se ele estivera sendo enganado durante todo aquele tempo.

Seu corpo estava eriçado com aquela batalha que ele parecia travar sozinho e um misto de ansiedade, raiva e medo surgiu dentro dele. Não recuaria, nunca. De todos os sentimentos, o medo inexplicavelmente era o que mais o fazia avançar.

Atingiu o fim da galeria em um átimo, e percebeu que ela continuava à direita, terminando em um salão cujos pilares se uniam em arcos no teto abobadado. Parou de correr assim que alcançou o meio do salão e jurou para si mesmo que não se deixaria enganar novamente.

Toda a área era ladeada por grades que subiam do chão ao teto, cravadas a um metro de distância da parede. A iluminação fraca criava sombras bruxuleantes no chão, e ele notou um amontoado nos fundos das grades que não conseguiu distinguir.

— Pare de se esconder!

— Acho que você ainda não entendeu... — a voz de Grego soou novamente no ar — Você está no meu território. Acha que vai conseguir me vencer assim tão fácil?

— Já estou cheio dos seus joguinhos! Por que não me enfrenta de uma vez?

— Como quiser...

E Yusuke ouviu um clique metálico vindo de uma das grades. Se virou na direção do barulho e viu algumas das barras de ferro se moverem, indicando a existência de uma porta.

O salão ficou em silêncio novamente, e apenas sua pulsação acelerada ecoava em seus ouvidos. Sem ver mais nenhuma movimentação ao redor, caminhou até a abertura recém-revelada e deu um passo para dentro do corredor estreito formado entre a parede e as grades. Assim que entrou, a porta de ferro se fechou com um baque, fazendo novamente um clique metálico.

Estava preso.

Yusuke, no entanto, não se daria conta disso na hora. Outra coisa havia chamado sua atenção: o youkai estava na sua frente, apenas poucos metros os separavam.

Agora, uma aura muito mais forte o envolvia, criando um espectro luminoso a sua volta. Grego movia os braços em movimentos circulares e entoava um mantra em voz baixa, criando uma imagem quase hipnótica.

Da mesma forma que a energia do demônio aumentava, Yusuke sentia sua própria crescer dentro dele. Tentou direcioná-la para o punho direito, que mantinha cerrado e levemente erguido ao lado do corpo. Com um espaço mais limitado, somado à fúria que Yusuke alimentava, sabia que as chances de Grego escapar dos golpes era pequena.

Ele avançou, ziguezagueando na tentativa de confundir o inimigo, mas antes que pudesse desferir o soco, Yusuke foi atingido. Sentiu um choque alvejar sua perna e subir pelo seu tronco, irradiando por toda a coluna. A potência foi tão grande que ele chegou a perder a consciência por milésimos de segundos, enquanto caia no ar.

Examinou rapidamente a cabeça, tocando a nuca com a palma da mão. Não se lembrava de ter sentido algo tão intenso assim antes.

Ainda assim, não desistiria. Levantou, ignorando o tremor que persistia na perna impactada pelo golpe, e retomou a ofensiva.

Grego também atacou, mas dessa vez, Yusuke conseguiu captar seus movimentos e esquivou para o lado para escapar do ataque, chocando-se com a grade. E sentiu o corpo tremer com um choque muito mais potente do que o anterior.

No calor da luta, esqueceu-se do fato de que o metal é um ótimo condutor de eletricidade. As barras de ferro, atingidas pelas faíscas do ataque do youkai, grudaram nas costas do rapaz por longos segundos, provocando queimaduras intensas na sua pele e o fazendo urrar de dor. Ele podia sentir o cheiro da derme chamuscada e o tecido da camiseta colando nos ferimentos, aumentando ainda mais a sensação de ardência.

Seus joelhos fraquejaram e acabaram cedendo, e ele precisou se apoiar com a mão no chão para não cair totalmente. A queimadura latejava, e seus olhos lacrimejaram por causa da dor. Abaixou a cabeça por um instante, para em seguida levantá-la, assim como todo seu corpo.

Quanto mais esmorecia, mais sentia o sangue e a energia do seu antepassado ressurgirem dentro dele. Aquilo lhe dava forças — e Grego percebeu que havia algo de errado. A potência do golpe teria matado uma pessoa comum, mas Yusuke não somente continuava vivo, como parecia ainda ter disposição para manter a batalha pelo tempo que fosse necessário.

Um pouco acuado com aquela situação, Grego recuou em direção à ponta mais extrema do corredor gradeado. Yusuke o seguiu, acelerando o passo enquanto mais uma vez reunia suas energias na mão fechada. As dores que ainda sentia pelo corpo não eram suficientes para fazê-lo parar.

— Pare! — o demônio gritou, dessa vez erguendo a mão em direção ao amontoado indefinido que havia perto da parede, e que o garoto ainda não tinha conseguido identificar.

Yusuke ignorou completamente aquela ordem e levantou o punho, que brilhava com uma cor vermelha intensa, símbolo da energia maligna que ele agora manifestava. Grego ameaçava atirar na pilha disforme caída no chão, que ele imaginou ser alguma espécie de explosivo. Se não o acertasse antes, talvez tudo aquilo fosse pelos ares — ele e seus amigos juntos. Mas Yusuke nem se preocupava com aquilo. Estava cego de ódio demais para interromper a investida, e se morresse no ato, não teria problema. Já havia morrido duas vezes antes, a morte não o assustava.

Grego cumpriu a ameaça e atirou. O disparo produziu um clarão que quase o cegou, seguido de um som que fez Yusuke congelar. Ele parou na hora.

O Mercado Negro não havia sido destruído e ele ainda estava vivo. O amontoado escondido pelas sombras não eram explosivos.

Eram crianças.

Encolhidas, assustadas, amarradas pelos pulsos e tornozelos. Uma delas, morta depois de ter sido atingida pelo choque do demônio.

Yusuke viu seu mundo cair ao perceber o que tinha acabado de acontecer. Fora até ali para interromper o esquema de tráfico de crianças e agora tinha em suas costas a culpa pela morte de uma delas.

O sangue de Yusuke ferveu e seus olhos brilharam coléricos. Aquele ato selou o destino do youkai.

— A vida de crianças humanas é tão importante assim para você?

Yusuke nem se mexeu. A energia que brilhava no pulso agora se concentrava em seu dedo indicador.

— Compaixão é a pior fraqueza que alguém pode ter — Grego falou novamente, com um sorriso sarcástico. Faíscas projetavam-se de sua mão.

— Você vai morrer! — Yusuke gritou, levantando a mão com o indicador apontado para frente.

Para surpresa do demônio, o garoto atirou duas esferas de energia seguidas em sua direção. O segundo tiro se encontrou com o primeiro ainda na trajetória, impulsionando-o e aumentando ainda mais sua potência.

O disparo acertou Grego em cheio antes que ele tivesse tempo de contra-atacar ou mesmo se defender. O demônio foi ao chão, mortalmente ferido.

(...)

No andar acima, Kurama e Hiei escutaram o estrondo vindo do nível mais baixo. Tinham se encontrado em uma das escadarias, e lutavam juntos contra os dois irmãos alados que compensavam a falta de poder ofensivo com a agilidade das asas.

Se entreolharam rapidamente.

— Vá — Hiei falou — Eu cuido desses dois idiotas sozinho.

Kurama hesitou, mas sabia que não adiantaria argumentar naquele momento. Desceu o resto das escadas apressado, alcançando o terceiro nível com rapidez.

Percorreu a longa galeria até chegar ao salão abobadado e avistou Yusuke à distância, por trás das grades.

O garoto ainda socava o youkai caído no chão quando Kurama o encontrou. Encolhidas no canto, um grupo de crianças chorava baixinho.

Kurama olhou com surpresa para o demônio desfalecido, reconhecendo-o imediatamente. O nome de Bozukan era conhecido por todo o Makai. Milenar, de idade desconhecida, ele talvez fosse o youkai que mais havia gerado lendas e histórias acerca dos seus feitos.

No entanto, havia algo de errado com aquilo tudo, algo que Kurama não conseguia decifrar.

— Yusuke! — chamou, fazendo o garoto finalmente perceber a presença do amigo — Onde está Kiki?

O rapaz interrompeu a sequência de golpes, saindo do frenesi em que se encontrava.

— Não sei — respondeu taciturno, enquanto levantava olhando o cenário a sua volta — Precisamos sair desse lugar.

— Você ainda tem a chave?

Yusuke remexeu os bolsos, encontrando o objeto.

— Tire as crianças daqui. Vou procurar Kiki.

Ele concordou, calado. O remorso pela morte da criança ainda o consumia.

— Você está bem? — Kurama perguntou, antes de se afastar. Os olhos opacos do amigo de alguma forma o deixava apreensivo.

Yusuke não respondeu. Sentia-se verdadeiramente derrotado.

Só queria destruir aquele lugar. E faria isso nem que fosse na mão.


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