A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 26
Kishi Kaisei


Notas iniciais do capítulo

Kishi Kaisei é uma expressão japonesa que significa literalmente "acordar dos mortos e voltar à vida". É usada quando alguma pessoa passa por alguma dificuldade e acaba ficando mais forte por causa disso.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/656165/chapter/26

Levaria ainda algum tempo para que a menina se acostumasse com a presença dos garotos e começasse a ficar confortável para falar. Seu nome era Momoko, ela contou, e tinha 10 anos. Tinha perdido a noção do tempo em que passara ali — no começo, ela disse, ainda contava os dias em uma marcação rústica na parede da sua cela, mas aos poucos acabou desistindo. Simplesmente não valia a pena.

Kuwabara foi a quem a menina mais se afeiçoou. Algo sobre ele ser humano como ela de um certo modo a fazia se sentir mais segura.

— É verdade que você me salvou? — ela perguntou, acanhada.

— Claro! Eu não poderia deixar uma menina bonitinha como você nas mãos daqueles monstros horríveis, não é? — respondeu, arrancando um sorriso tímido da garota.

Kurama também já estava de volta e foi com muita relutância que Momoko deixou que ele se aproximasse. A aparência dele não inspirava nem um pouco de confiança na menina, e ela só permitiu que ele examinasse a ferida da perna sob a condição de Kuwabara permanecer do seu lado durante todo o tempo.

Ele ainda conservava sua forma youko. Se sentia mais forte assim, principalmente estando no Makai. E ainda havia a questão de Mia, que ele esperava que fosse atrás dele a qualquer momento. Só que Kurama sabia que tudo isso não passavam de desculpas. Mia poderia facilmente rastrear sua aura, mesmo com aparência humana, e seu youki já era suficientemente alto para não precisar transmutar-se. Mesmo assim, ele insistia em manter-se no seu estado original. Era quase como se fosse inevitável.

— A ferida está muito infeccionada — falou — Apliquei um bálsamo, mas ela precisa de cuidados mais intensivos.

— Aqui não é um lugar seguro — Yusuke replicou — O que ela precisa é voltar para o Mundo dos Humanos.

Kurama concordou, pensativo. Olhou para a menina, que ria das brincadeiras que Kuwabara inventava para distraí-la. Perguntas e mais perguntas cruzavam sua mente, a maioria sem resposta. Talvez não por muito tempo...

Ele se aproximou novamente de Momoko, dessa vez levando um chá que tinha acabado de preparar com a maceração de algumas folhas. Pediu que a menina o tomasse, disse que a faria se sentir melhor. Ela hesitou, mas acabou tomando a bebida. Em menos de meia hora, já estava em sono profundo.

— O que foi que você deu a ela? — Kuwabara perguntou, intrigado.

— É só um chá relaxante inofensivo — respondeu, acalmando o amigo — ela precisa estar completamente desligada para Hiei conseguir se conectar à mente dela.

— Como é? — Kuwabara puxou Kurama pela gola da camisa, irritado. A ideia de Hiei fazer qualquer coisa com aquela criança não lhe era nem um pouco agradável, já que o demônio de fogo certamente não se preocuparia com seu bem-estar — O que você pensa que está fazendo?

Hiei observou a cena irritado. Tinha concordado com Kurama em emprestar os poderes do Jagan para arrancar respostas da garota, mas não estava ali para ficar aturando os escândalos de Kuwabara. Ele devia era lhe agradecer.

— Vamos acabar logo com isso — ele falou, se aproximando de Momoko e ignorando as ameaças de Kuwabara sobre o que ele faria caso machucasse a menina.

Hiei arrancou a faixa da testa, despertando seu terceiro olho. A pálpebra se abriu, revelando uma enorme íris púrpura, marcada por uma pupila negra no centro. Ele fechou os outros olhos, concentrando toda sua energia no Jagan, que imediatamente começou a cintilar, emitindo um brilho sobrenatural.

Abaixou a testa em direção à Momoko. A respiração dela era calma e estável e o corpo, completamente relaxado. Estava na fase mais profunda do sono, Hiei notou, a fase ideal para o que ele pretendia fazer.

Então a atividade cerebral da menina aumentou. A proximidade do Jagan a fez entrar no estágio dos sonhos, estágio onde ele podia enfim controlar suas memórias. Buscou as profundezas da mente da criança e não teve dificuldade para encontrar o que procurava. Juntos, entraram em transe.

Ele tinha uma ideia do que aquelas memórias escondiam, mas a visão que teve foi muito mais devastadora do que ele estava esperando.

Viu episódios de abuso e tortura que se repetiam e se repetiam diante dele. Momoko era drogada e molestada infinitas vezes, com requintes de crueldade que eram impressionantes até mesmo para Hiei.

Viu o corpo da garota ser violado de todas as formas; viu a garota ser flagelada dia e noite; viu as escaras do corpo e da alma jovem daquela criatura que ele até então não tinha a menor empatia, mas que começava a se apiedar.

Ele se demorou naquelas cenas, absorvendo cada detalhe. Queria memorizar o rosto daquele agressor, queria encontrar aquele lugar e infligir no demônio os mesmos castigos — aquilo seria divertido.

Quando enfim se afastou, percebeu que o sono da menina já não era tão tranquilo quanto antes. O Jagan era poderoso, e trazia consequências desagradáveis em quem escolhia como vítima. Momoko suava frio, suas pernas e braços se repuxando em espasmos nervosos. Estava tendo um pesadelo, Hiei sabia, e dos ruins.

Ele se aproximou de novo, colando sua testa na dela. Aos poucos, a menina se acalmou. A respiração voltou ao normal e seu corpo repousava sereno. As mãos, que há poucos segundos estavam duras e fechadas, relaxaram. Ela não teria mais aquelas memórias para lhe assombrarem à noite. Suas memórias agora pertenciam a ele.

— O que você fez? — Kuwabara perguntou, exaltado, ao ver ele se levantando.

Hiei olhou de esguelha para ele. Tinha sido o único a pôr um fim de verdade no sofrimento dela.

— Sua protegida está bem, se é o que quer saber.

Kurama entendeu o que o amigo havia feito, e ficou grato por ele ter tido a lucidez de realizar o gesto.

— Não a acorde — ele pediu, ao ver Kuwabara se aproximando para checar o pulso de Momoko — Hiei apagou suas lembranças. Ela não se recordará de nada que viveu aqui, mas precisa voltar ao Mundo dos Humanos. Talvez Yukina e Genkai possam fechar a ferida da perna antes de ela voltar para casa. As duas possuem técnicas de cura mais eficazes que as minhas.

— Claro! — ele exclamou — Eu posso fazer isso! Vai ser um prazer tirar essa menina daqui e ainda poder rever minha Yukina!

Hiei revirou os olhos e se afastou, evitando ouvir o nome da irmã e os gracejos de Kuwabara, que agora tagarelava animado. Não estava com o menor humor para aquilo.

(...)

Kuwabara partiu, carregando a menina adormecida em seus braços. Prometera a levar em segurança para o templo de Genkai o mais rápido possível, onde poderia enfim se recuperar.

Enquanto isso, os demais ainda tinham assuntos não resolvidos no Makai.

— Como ela sobreviveu por tanto tempo aqui? — Yusuke perguntou, após ouvir o relato de Hiei — Achei que humanos comuns tivessem dificuldade em se adaptar à atmosfera do Makai...

— As pastilhas — Hiei respondeu, fazendo-os lembrar dos comprimidos encontrados por Kurama nas vestes da menina — São uma espécie de droga. Alteram o organismo da pessoa, a deixando mais resistente, mas ao mesmo tempo, dependente. Sem falar nos efeitos colaterais...

— Você viu o responsável por isso? — Yusuke perguntou, completamente perturbado pela narrativa — Fale onde ele está e eu mesmo acabo com esse desgraçado!

— Sossegue, Yusuke — falou calmamente — Esse trabalho já foi feito.

Eles olharam espantados com a revelação. Fora um acidente, Hiei explicou, provocado quando Momoko fugiu. Seu captor estava morto, o corpo esmagado debaixo de uma enorme coluna de pedra.

— Um a menos... — o demônio murmurou.

— O que mais você viu? — Kurama interpelou. Sabia que o amigo teria sido eficiente ao vasculhar as memórias da menina. Sabia que conseguiriam alguma coisa.

Hiei olhou em sua direção e em seguida virou o rosto, observando o horizonte.

— Se sairmos agora, poderemos atacar o lugar ao amanhecer — ele comentou.

— Que lugar? Do que está falando? — perguntou Yusuke.

— O Mercado Negro — disse, ainda com os olhos no horizonte. Virou-se para Yusuke e continuou — O lugar onde as crianças são vendidas. O núcleo da Red Society no Makai.

(...)

Caminharam na direção indicada por Hiei, que conhecia bem aquelas terras sem lei do Makai. O dia parecia se arrastar lentamente, o silêncio entre eles deixando tudo ainda mais demorado. Não queriam falar sobre o assunto, mas a verdade era que todos sentiam carregar consigo o peso das memórias de Momoko.

Já estava quase anoitecendo quando decidiram interromper a jornada. Estavam bem próximos do local visto nas visões da menina, e poderiam seguir com o plano na manhã seguinte.

Encontraram abrigo em uma enorme fenda aberta na parede rochosa das montanhas que formavam aquele vale. O espaço parecia amplo o suficiente para passarem aquela noite — e mais seguro do que acampar ao relento.

No entanto, um cheiro nauseante atingiu com força suas narinas ao adentrar a caverna. Um cheiro fresco e pungente, um cheiro de morte.

Três corpos jaziam mutilados no estreito corredor que conduzia à gruta; sangue, areia e ossos se misturando no chão. Um deles, com o rosto completamente desfigurado.

— Seja quem for que fez isso, ainda está aqui — Yusuke afirmou, e os outros dois assentiram.

Podiam sentir a energia que vinha do interior da caverna chegando até eles de maneira forte e intensa, envolvendo-os, fazendo seus corpos se inebriarem com a adrenalina que agora corria acelerada pelas veias.

Aquela, porém, não era uma energia maligna. Não havia youki no ar, era algo mais leve, mais... humano.

— Kiki?! — exclamaram, atônitos.

A garota estava de pé nos fundos da caverna, enrolando a mão ensanguentada em uma espécie de gaze improvisada. Outras feridas também eram visíveis pelo seu rosto e pescoço, e no braço, uma enorme mancha roxa. Tomou um susto ao ouvir seu nome, e levantou os olhos agitada.

— Você não devia estar aqui — Kurama falou, se aproximando. Ela franziu o cenho, demorando a reconhecê-lo. Se assustou a princípio com aquela imagem, e evitou olha-lo por muito tempo. Perguntas brotaram em sua cabeça, mas ela se recusou a dar voz a elas.

— Menina, você é maluca? — Yusuke exclamou, também chegando mais perto. Apesar da bronca, seu tom era jovial — Como você veio pra cá?

O jeito amigável de Yusuke a confortou, a tirando daquele estado catártico por um instante.

— Da mesma forma que vocês, ué! — Kiki respondeu, se virando para o garoto — Achou que eu ia ficar de fora da brincadeira?

— Você não é fácil! — ele respondeu — Ainda bem que a Keiko não anda muito com você, para não começar a ter essas ideias também!

Ela acabou rindo junto dele. Por dentro, teve um certo alívio por eles a terem encontrado. Sempre achou que era melhor sozinha, mas pela primeira vez, sentiu que isso não era verdade.

Kurama, porém, não estava achando graça e continuava analisando a menina com uma expressão séria.

— Você está machucada — disse, interrompendo a brincadeira dos dois — eu posso dar uma olhada em você.

Ele levantou a mão para tocar nos ferimentos dela, mas Kiki na mesma hora recuou, como se tivesse levado um choque. O rosto, até então sorridente, se fechou.

— Não precisa. Eu estou bem — murmurou. E se virando novamente para Yusuke, completou — Eu vou dormir. Amanhã você me conta tudo que eu perdi.

(...)

Kiki de fato estava exausta, mas não conseguiu pregar o olho a noite inteira. Seus pensamentos estavam desordenados, mas ela não fazia questão de colocá-los em ordem — e o fato do seu cérebro não entender isso a deixava profundamente irritada.

Incomodada com a insônia, acabou levantando durante a madrugada. Só precisava de duas coisas para relaxar: o ar fresco do exterior da caverna e uma boa dose de nicotina. Por sorte, ela podia ter os dois.

— Sem sono?

Kiki estava sentada na entrada da gruta quando ouviu a pergunta. Olhou para o alto, procurando a origem da voz e encontrou Kurama parado de pé a seu lado, a expressão neutra de sempre. 

Estremeceu um pouco com aquela figura, tão diferente do que ela conhecia, mas, novamente, nada falou a respeito.

— Um pouco.

Ele se sentou, apoiando a cabeça na rocha e observando as estrelas numerosas que enchiam o céu limpo.

— Tem tempo que não passo um dia inteiro por aqui. Eu tinha esquecido de como o céu do Makai pode ser bonito em noites como essa.

— Estava com saudades? — perguntou, irônica.

O lábio de Kurama se ergueu em um discreto sorriso ao perceber a irritação das palavras da menina.

— Minha aparência está te incomodando tanto assim?

— Não é sua aparência que está me incomodando.

Ele a observou por um instante, calado. Kiki evitava olhar para ele, seu rosto ligeiramente virado na direção contrária. As tragadas no cigarro eram longas, e ela soltava a fumaça pelo nariz em vez de pela boca — gesto que denunciava seu nervosismo. As cinzas começavam a acumular na ponta do cigarro, e ele sabia que ela sempre as fazia cair dando batidinhas com o dedo indicador. Duas batidas, em situações normais; quatro a cinco, quando estava irritada.

— O que aconteceu com você? — Kurama perguntou.

Ela não respondeu, deixando as cinzas caírem do cigarro em silêncio. Cinco batidinhas, ele contou.

— Seu reiki está muito maior agora do que na noite passada. Para ter aumentado tanto em tão pouco tempo, algo deve ter servido de gatilho.

— E que diferença isso faz? Eu estou mais forte, isso que importa.

A frase soou como um tapa, mas ele não se importou. Talvez em outro dia teria deixado o assunto de lado, mas por alguma razão, queria continuar provocando-a, incitando-lhe a falar.

— Na verdade a jornada é tão ou mais importante quanto o destino final. A maneira como a enfrentamos diz muito sobre quem nós somos — ele replicou — A primeira vez que sua energia espiritual despertou foi quando descobriu suas habilidades, logo depois de ter perdido sua mãe...

— Não fale da minha mãe! — ela gritou subitamente, virando o rosto para ele — Eu não quero falar sobre isso, não com você! — ela fez questão de frisar a última palavra.

Kurama franziu as sobrancelhas, furioso com aquela reação explosiva exagerada. Ela o encarava de volta, os olhos parecendo duas labaredas. Já tinha a visto brava, mas nunca assim.

— Por que está falando isso? — respondeu, endireitando o tronco e elevando a voz — Eu ainda sou o mesmo!

— Nenhum de nós é! — esbravejou, destacando cada sílaba. Levantou em um pulo e arremessou com força o cigarro para longe antes de marchar pelo estreito corredor de volta para o interior da caverna.

Kurama se virou, perplexo, vendo a jovem se afastar com aqueles passos decididos. Ainda ficaria sozinho mais alguns minutos, contemplando as estrelas em silêncio. Kiki tinha dado a ele muito o que pensar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!