A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 19
Convergência




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Ela nunca imaginou que seria fácil, mas quando você não tem mais nada a perder, qualquer dificuldade parece perder o sentido.

Aqueles grandes portões de ferro haviam sido apenas o primeiro obstáculo vencido. E que obstáculo! Nunca havia imaginado que um dia seria responsável pela morte de alguém — mesmo que esse alguém fosse um dos demônios mais cruéis que ela poderia conhecer. O medo às vezes pode ser o maior estimulante da raça humana.

A pequena criatura parou, escorada por uma enorme rocha que escondia todo seu corpo. Passara a noite toda acordada, fugindo não só de seus algozes, mas dos próprios pesadelos que inevitavelmente a atormentavam no segundo em que fechava os olhos. Agora, à luz do dia, finalmente decidiu que seria seguro descansar.

Olhou para a perna e a visão quase a fez desmaiar. O sangue havia estancado e formado uma crosta seca e escura em volta da ferida. Era possível ver a carne exposta e, pela primeira vez, sentiu a região arder, em uma dor lancinante que ela havia conseguido ignorar até o momento. Com as pequenas mãos tremendo, ela puxou a bainha das vestes, arrancando um pedaço de tecido. Amarrou em volta do machucado com cuidado, protegendo a ferida.

Olhou ao redor, para se certificar novamente de que estava sozinha, e puxou do bolso um pequeno embrulho esfarrapado, feito de um papel puído. Abriu o pacote com cuidado e pegou uma pastilha. Odiava aquelas pílulas, mas sabia que precisava delas para sobreviver naquele mundo hostil.

Engoliu o comprimido e fechou os olhos, apertando os joelhos com força. Teria que esperar os efeitos colaterais passarem se queria continuar. Ironicamente, seu maior infortúnio era também seu maior trunfo: já era tanto tempo passado naquele inferno, tantas pastilhas ingeridas, que seu corpo se acostumara com a droga e agora não precisava mais do que apenas uma hora para absorver aquelas substâncias.

Sentiu o suor escorrer pela testa. Os efeitos estavam começando.

(...)

O dia nasceu calmo no Reikai. Passada a animosidade do dia anterior, Koenma parecia estar aos poucos se conformando com sua nova situação, chegando até mesmo a travar uma divertida conversa com Ayame naquela manhã — uma das poucas pessoas que conseguia o alegrar mesmo em momentos desalentadores. Infelizmente, o destino não estava tão bem humorado assim e tratou logo de por um fim àquela animação matinal.

Começou com uma batida forte na porta. Ninguém nem teve tempo de se dar ao trabalho de abrir: a mesma pessoa que batia agora escancarava a porta com uma energia incomum para um horário tão cedo.

— Com licença, senhor Koenma.

Para a surpresa de todos, a General Ayaka surgiu na entrada, em movimentos rígidos e uma fisionomia mais rígida ainda. Deu um passo a frente, abrindo espaço para dois soldados uniformizados e igualmente carrancudos.

— Podem começar com toda a prateleira superior — disse novamente, se dirigindo aos subordinados que avançavam pelo recinto e ignorando completamente o olhar perplexo dos outros ocupantes do espaço.

— O que significa isso? — Koenma bradou, com o tom mais enérgico que conseguiu, do alto de sua cadeira.

— Estamos apreendendo todo tipo de documentação envolvendo o Makai para fins de investigação interna — ela respondeu, mantendo o semblante sério.

— Como assim? Quem autorizou isso?

Eu autorizei — a General fez questão de frisar, enquanto lançava um olhar frio em direção ao pequeno ser de feições infantis que a encarava. Para ela, isso seria o bastante para fazê-lo parar de importuná-la com aquele tipo de pergunta.

Afinal, há apenas dois meses, Ayaka havia sido indicada para liderar a Corregedoria Interna do Esquadrão de Defesa do Mundo Espiritual, responsável por fiscalizar a corporação. Isso a concedia, entre outros poderes, autoridade de confiscar quaisquer arquivo que julgasse relevante para suas investigações.

Koenma ficou mudo. Observava os soldados retirarem de sua sala caixas e mais caixas dos mais diversos documentos — muitos deles altamente confidenciais — e se sentiu de uma impotência ímpar. Buscou o olhar de seus ajudantes, mas todos apenas encolheram os ombros. Se o chefe não tinha como barrar aquela situação, não seriam eles que conseguiriam impedir.

— O que o Comandante Liu tem a dizer sobre isso? — ele enfim perguntou.

— Liu foi intimado a depor, por suspeita de fraude. Deve comparecer ainda esta tarde para prestar esclarecimentos.

Koenma perdeu o ar. O Comandante Liu era o único do Esquadrão em quem ele confiava. Fora ele quem o procurara em primeiro lugar para discutir suas suspeitas de corrupção. Por que alguém o estaria incriminando? "Talvez...", ele pensou "...para desviar o foco do principal responsável..."

Ayaka nem esperou Koenma terminar sua linha de raciocínio; em um gesto triunfal, se dirigiu à porta, se virando para a pequena divindade antes de sair.

— E você será o próximo. Voltarei mais tarde com a intimação — disse, fechando a porta e deixando a sala em um silêncio sepulcral.

(...)

Kiki avistou Yusuke na manhã seguinte e não conseguiu esconder uma pitada de ressentimento que ainda sentia pelo garoto. Ele estava do outro lado de um longo corredor, sua figura quase sendo engolida pela horda de estudantes que lotavam o corredor da Escola Sarayashiki naquela manhã. Trocaram olhares rápidos e ele logo sumiu de vista, desaparecendo na multidão.

— Você está bem? — Kuwabara perguntou, se aproximando da menina. Ela ainda estava tão distraída que mal reparou a chegada do rapaz — Não ligue para ele. No fundo, está se sentindo culpado por você ter desmaiado naquela noite. E eu também já dei um puxão de orelha nesse miserável ontem. Aliás, o que deu em você, heim?

— Eu estou ótima — ela retrucou, sem dar atenção — e eu não preciso de ninguém tomando as minhas dores.

Ela se afastou, deixando Kuwabara atônito. Teve a impressão de ouvi-lo resmungar alguma coisa, mas não deu atenção. Tampouco se deu ao trabalho de ir atrás de Yusuke. No final das contas, ela estava certa: só sabia resolver mesmo as coisas sozinha.

Por sua vez, Yusuke também não estava muito interessado em remoer os eventos passados. Já bastava ter tido que aturar Kuwabara todo o dia anterior, o obrigando a fazer um verdadeiro malabarismo para explicar para Keiko o porquê daquela implicância toda do amigo, algo que ela, claro, havia notado.

Talvez houvesse exagerado um pouco em sua pequena explosão naquela noite, mas quem poderia culpá-lo? Não era fácil aguentar toda aquela pressão vinda de todos os lados. De onde tiraram que ele teria que salvar o mundo? Aquele lance de herói não combinava com ele. Além do mais, se alguém tinha agido com excessos naquela noite, essa pessoa era Kiki, e não ele. Ela, sim, havia surtado e reagido de maneira irracional.

Não, não estava arrependido. Se Botan passou o dia inteiro sem o procurar, era sinal de que ele realmente não estava fazendo falta para o Mundo Espiritual, e para ele, era melhor assim. Podia finalmente ficar livre para cuidar da sua vida, quem sabe até se entender de uma vez por todas com a Keiko.

Realmente não estava arrependido.

Por que, então, aquela pontinha insignificante de culpa não o deixava em paz?

(...)

Já para Kurama, o dia até agora tinha sido normal na medida do possível. Havia feito uma prova na parte da manhã e achou que tinha se saído relativamente bem, principalmente depois de ter passado quase todo o dia anterior estudando no quarto enquanto mantinha o olho em uma Kiki adormecida. A desculpa havia caído como uma luva: sua mãe sempre respeitava seus pedidos de não ser incomodado quando estudava em véspera de prova, e assim, passou o dia sem notar a presença da menina na cama do filho.

Ele estava revisando as respostas com alguns colegas no pátio interno da escola, como costumava fazer em dias de prova, quando foi interrompido por outro aluno.

— Minamino, tem uma garota aí do lado de fora procurando por você — ouviu o rapaz falar — pelo uniforme, parece da Sarayashiki.

O ruivo agradeceu e, levantando, se despediu dos colegas. Ouviu os cochichos inevitáveis às suas costas, mas não deu bola e seguiu pelo caminho que levaria aos portões do colégio.

Fora Keiko, com quem ele mal trocava algumas palavras, só havia uma garota da Escola Sarayashiki com quem ele mantinha contato, a única que poderia estar ali naquela hora.

Avistou ao longe o uniforme azul tradicional. A menina estava de costas, mas ele a reconheceu de imediato. No entanto, ao invés dos negros cabelos curtos que esperava encontrar, se deparou com longos cabelos azuis presos em um rabo de cavalo no alto da cabeça.

— Botan? — ele perguntou confuso, fazendo a deusa se virar.

— Kurama, até que enfim — ela correu em direção a ele — vamos, preciso falar com você!

E o arrastou pelo braço, se afastando da escola sob os olhares curiosos dos demais alunos.

Caminharam lado a lado pelas ruas da cidade, sem um destino definido. Quem os observasse a distância, veria apenas dois jovens estudantes absortos na própria conversa, uma cena inocente e frugal no cenário da cidade. O teor dessa conversa, no entanto, arrepiaria os pelos da nuca de qualquer um que ousasse escutar.

Finalmente Botan estava parando para ouvir a versão de Kurama sobre os últimos acontecimentos. Depois da conversa desastrosa com Yusuke, não tivera muito tempo para pensar a respeito sobre o assunto, já que agora estava a voltas com problemas diplomáticos do Reikai.

Uma manobra política havia feito com que Koenma perdesse parte de sua representação no reino de seu pai, levando assim à suspensão do programa de Detetive Espiritual. Os boatos sobre as operações da Red Society no Makai já estavam correndo por toda a parte, obrigando o Rei Enma a restringir a influência do filho sobre qualquer assunto que envolvesse as três dimensões — e o deixando novamente preso a um mero papel decorativo, responsável apenas por pequenas tarefas burocráticas.

— Pelo visto, apenas Koenma foi responsabilizado, enquanto o Esquadrão não foi afetado pelos boatos... — ele comentou, após ouvir o relato nervoso de Botan.

— Koenma concordou em não delatar o envolvimento do Esquadrão... ele e o Comandante Liu tinham achado que o melhor seria trabalhar por debaixo dos panos.

— Então Koenma aceitou se sujeitar a funções administrativas apenas para deixar o terreno livre para Liu continuar conduzindo as investigações?

— É, mais ou menos... — ela respondeu. 'Aceitar' não era bem a palavra, já que o chefe havia quase destruído toda a sala de reunião em um seus arroubos de raiva — Eles só não previram que isso iria se virar contra eles — ela continuou — e agora os dois viraram alvos da própria investigação — suspirou.

E Botan pôs-se novamente a narrar, agora detalhando a cena com a General Ayaka que presenciou apenas algumas horas antes. A situação havia pego a todos de surpresa, e Koenma não estava nada confortável em ser visto como suspeito de corrupção. O clima no Reikai estava mais pesado do que nunca.

— Bem, mas você não veio aqui só para desabafar...

— Não, você tem razão — ela concordou, desalentada — vim para pedir um favor.

Kurama não tentou esconder seu olhar de curiosidade. Se voltou para a deusa, cauteloso.

— Estou ouvindo...

Botan parou de andar e se colocou na frente do youkai, abrindo um sorriso amarelo.

— O que você acha de fazer uma visitinha ao Makai?


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Notas finais do capítulo

Ayame, mencionada no começo, para quem não lembra, é outra Guia Espiritual do Reikai, assim como Botan. Ela aparece brevemente no mangá e no anime.