Deuses Entre Nós escrita por Lirah Avicus


Capítulo 1
O Diário




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Heróis não existem.

Ninguém gosta de admitir isso. Ninguém admite. Eles existiram, eu conheci alguns deles, assim posso afirmar por experiência própria que um dia, há muito tempo, eles estavam aqui, e lutavam por nossa liberdade, felicidade e existência. Eles eram honrados, dignos, agiam por se importar com seu próximo, e eram guiados pelo altruísmo a ponto de entregarem suas vidas pelo bem maior.

Por isso eles não existem mais. Eles morreram.

Eu vivo há muito tempo. Meus cabelos brancos podem provar isso caso alguém duvide de minha idade avançada. Eu vi mais coisas do que deveria, e isso me fez maduro, me fez talvez não melhor, mas superior ao que possivelmente eu seria em outras circunstâncias. E eu vi o surgimento dos heróis. Não os de verdade. Pois como eu já disse, eles não existem.

Eu trabalhei, quando jovem, para organizações que omitirei o nome, e nós, pessoas normais, lutamos pelo que acreditávamos. Pessoas sem nome, heróis de verdade, que encontravam na sua fraqueza a maior força de todas, vinda da mais pura humanidade. Tínhamos armas, equipamentos, e nossa inteligência. Achávamos que aquilo era o suficiente, e havia certo equilíbrio entre nós e o inimigo. Homem contra homem. Que vencesse o melhor. Mas esse equilíbrio foi abruptamente quebrado quando o primeiro herói surgiu. Não um herói de verdade, é claro.

Ele surgiu como um raio flamejante no céu. Eu era apenas um jovem, e não estava pessoalmente presente. Vi pela televisão. Uma televisão pequena e monocromática. Aconteceu em Nova York. Tocha Humana, assim o chamaram. Não sei ao certo se ele era realmente um homem. Havia o boato de que ele havia sido construído e mantido trancado debaixo da terra por décadas, até conseguir escapar. Construído por cientistas... Como Frankenstein. As pessoas ficaram receosas, afinal, o que um ser com o poder de gerar fogo poderia querer? Seria poder? Destruição? Paz? Estas perguntas não foram respondidas, não houve tempo, pois uma ameaça surgiu do mar, e coube ao homem incandescente detê-la.

Namor. Este era o nome do príncipe das águas. Estranhamente ele também voava.

Por motivos que desconheço, este homem submarino se desentendeu com os moradores da terra firme, e decidiu destruí-los. Faria isso, se o Tocha Humana não o enfrentasse. Foi o primeiro combate entre dois seres superiores. Causou mais destruição do que provavelmente Namor teria causado sozinho. Mas a verdade é que não foi o homem de fogo que o impediu de nos destruir, ele o retardou, sim, mas foi algo também vindo da água que colocou um basta naquele confronto.

Outro homem submarino. Este me falha o nome. Algo me diz que era Arthur.

Este não voava. Surgiu em meio a uma muralha de água, empunhando um tridente, seu corpo recoberto de escamas e espuma do mar. Proclamando-se rei das águas, ordenou que Namor retornasse ao mar, para que um confronto pelo reino submarino fosse devidamente travado e decidido. Namor aceitou o desafio, e ambos sumiram nas ondas. Pouco tempo depois testemunhamos a maior sequência de tsunamis da história. A destruição foi assustadora. E no final, não sei quem ganhou.

As pessoas ficaram em polvorosa. A mídia nem se fala. O surgimento de seres com poderes especiais era, de fato, algo fantástico, assustador, surpreendente. E uma vez aberta a caixinha de surpresas, cada vez mais presentinhos começaram a sair dela. Cada vez mais heróis, dotados dos mais variados poderes, surgiam e causavam sua proporcional medida de destruição e caos. E com eles, os vilões vieram junto.

Eles voavam, levantavam ônibus como se fossem carrinhos de brinquedo, causavam tempestades, partiam barras de ferro à plena força. Não havia nada que algum deles não pudesse fazer.

Alguns eram amados. Possuíam fãs alucinados que gritavam seu nome pelas ruas, os jornais os aclamavam como a salvação da humanidade, as crianças brincavam com versões de plástico deles. Outros eram odiados, temidos, e a simples menção de seus nomes acendia a faísca da raiva que sinceramente eu nunca soube de onde vinha. Na verdade, desde aquele tempo, eu percebia que a raça mais estranha de todas era, sem dúvida, a humana.

Eu ainda trabalhava para organizações secretas. Eu vi centenas de heróis em sua ascensão e queda. Vi quando deuses se misturaram à humanidade, criando nomes normais para se confundirem entre a multidão enquanto secretamente lutavam contra outros seres tão poderosos quanto eles. Ouvi falar de alguns deles: Bruce Carter, Billy Batson, os gêmeos Alan e Jack Armstrong, Britt Reid, Thomas Blake, entre outros. Claro que só soubemos seus nomes depois que eles já estavam fora de circulação. Mas eu também vi que eles não puderam impedir a Segunda Guerra Mundial, e tampouco nos pouparam de travá-la. De modo que nós, humanos normais, fomos à guerra. Eu estive nas vastas fileiras de infiltrados, tentando de todas as formas possíveis destruir o Mal. O Mal tinha muitas faces, uma era careca, a outra tinha bigode, a outra era vermelha. Quando visitei um quartel avançado na Alemanha, conheci Steve Rogers, jovem patriota e símbolo americano, conhecido por todos como Capitão América. Ele havia sido submetido a experiências obscuras que o haviam tornado mais forte e rápido que qualquer outro. Pergunto-me por que ele se submeteu a isso. Não sei se gostei dele, na verdade não me lembro muito bem. Mas conheci um jovem que atuava junto dele, chamado James Buchanan Barnes, este sim uma agradável companhia e rapaz muito inteligente. Podem imaginar minha tristeza ao saber de sua morte. Rogers também morreu na guerra, mas seu corpo jamais foi encontrado. Ainda pergunto-me onde estavam todos aqueles heróis poderosos de antes da guerra, que não puderam salvar nossos jovens. Jovens como Bucky. Homens como Steve Trevor, morto em combate diante dos meus olhos injetados.

Nós lutamos. Nós morremos. Onde estavam nossos ditos heróis?

A guerra acabou. Mas nossos problemas com seres superiores estavam longe de acabar. Vimos o surgimento de humanos com transformações estranhas em seu DNA, chamados de meta-humanos, e o ódio que as pessoas sentiam por eles. Sinceramente, jamais entendi o por quê daquele preconceito, e nunca o aderi. Mas tenho de admitir que sentia certo temor, levado pelo fato de que alguns destes seres nos odiavam só por sermos normais. Era um preconceito mútuo, e os dois lados perdiam. Grupos extremistas de meta-humanos tinham por maior diversão matar seres humanos. Eu me lembro de certa vez estar vendo TV e de repente tudo apagar e, ao retornar, um homem caucasiano se proclamar meta-humano e jurar nos destruir. Lembro-me até do nome dele: Eric Lehnsherr. De alguma forma ele não nos destruiu, mas o medo pairava sobre nossas cabeças, tanto por causa da ameaça meta-humana, como também o clima pesado entre EUA e URSS. Com respeito ao assunto dos transformados, do lado dos humanos normais, grandes estadistas como o Sen. Robert Kelly, o milionário Lionel Luthor e o Gen. Thaddeus Ross defendiam que estes seres eram uma ameaça, e que deviam ser detidos ou destruídos. Com o aumento do ódio de ambos os lados, foi necessário criar o D.A.M, Departamento de Assuntos Meta-Humanos, sob o controle da congressista Amanda Waller e do meta-humano, também professor e PhD, Charles Xavier.

Eu conheci Xavier. Era um homem frio, educado, lembrava-me um computador com pernas. E não tinha cabelo. Já Amanda eu apenas a vi à distância. Seus tempos como combatente à mando dos EUA lhe deram um corpo invejável, e um olhar duro. Não sei por que estou contando isso. Achei apenas que valia a pena contar.

A onda de heróis continua. No momento, vejo mais vilões do que os chamados heróis. Os verdadeiros ficaram para trás, e são muito raramente lembrados. Na verdade, só me lembro deles por que escrevo isto com a ajuda de um amigo, Jon, e ele tem a memória muito melhor do que a minha. De fato, a memória dele é tão boa que ele se lembra por nós dois.

Pouco depois da criação do D.A.M eu decidi mudar de vida. Eu queria um trabalho calmo, que exigisse de minha mente, mas não de meu corpo cansado. E quem sabe, exigisse um pouco de meu coração... De forma que, devido a meus conhecimentos gerais e educação inglesa, pude me tornar administrador doméstico. Em termos simples, tornei-me mordomo. E passei a cuidar da casa da família que decidi adotar como minha: a família Wayne.

Somente eu posso descrever meus dias naquela mansão, todos os acontecimentos e alegrias, e uma tragédia que mudou para sempre o rumo da história. Um duplo assassinato que criaria uma lenda, um medo primitivo no coração de todos que defendiam o mal, vestido de capa e encoberto por sombras, alguém que eu mesmo ajudaria por considerá-lo meu filho. Um herói. Quem diria...

Mas estes tempos passaram. Tempos de glória eles foram, mas são agora cinzas. Hoje o mundo não é como deveria ser, é uma verdadeira barafunda de ideias e ideais, e meus anos de experiência pressentem que a guerra se aproxima. Não uma guerra comum. Não uma guerra. A Guerra. Oro para que eu não a veja acontecer.

Jon acaba de abrir um sorriso. Seu sorriso é triste, que se alargou ao perceber que agora escrevo sobre ele. “Pare com isso” ele disse em tom de brincadeira. Seu olhar é bondoso, mas sempre consigo ver nele uma mancha de mágoa. Eu sei de onde essa mágoa vem. Vem de nós. Ele esperava mais de nossa espécie.

Olho para minha caneta, e imagino o que eu poderia fazer caso um confronto surgisse de fato. Surgirá. Eu sei disso.

“Escolha um lado.” Jon diz, levantando-se. Ele se retira, deixando-me sozinho com meus pensamentos e anotações. Observo-o ir. A tristeza me invade.

Os heróis não existem. Não mais.


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