Como nos velhos tempos escrita por Ane


Capítulo 7
Preparação




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— Ok, qual é o plano?
     Estávamos há quase dois dias andando sem parar. De hora em hora Sougo me fazia essa pergunta, e eu sempre dizia a mesma coisa:
— Eu ainda estou pensando.
— Você disse que tinha um plano.
— Eu... não sei ainda... O meu plano era simplesmente chegar lá e botar todo mundo pra dormir, mas...
— E aí então você percebeu que esse era um plano de merda. — Sougo me interrompeu.
     Parei e olhei para ele. Eu estava com raiva, mas não podia negar que era verdade. Isso não era um plano, era contar com a nossa força e no final ver o que acontecia.
— Você tem algum plano melhor? — Perguntei.
— Talvez. Eu só acho além de não termos um plano, não estamos numa boa condição para simplesmente chegar lá e colocar todo mundo pra dormir. Quer dizer, olha como o seu cachorro monstro está. Ele vai ser o primeiro a implorar que você coloque ele pra dormir.
     Sadaharu estava andando devagar e se tremendo. Estava muito frio e fazia muito tempo em que nós tínhamos tido nossa última refeição. Eu também estava definitivamente cansada, e por mais que eu não quisesse admitir, ele estava certo. Não teríamos condições de lutar desse jeito.
— Droga... estamos tão perto... — Pensei alto.
— Não vai adiantar de nada se morrermos no primeiro soco. Não ligo se você tiver querendo se matar, mas eu quero viver por um tempinho ainda. Vamos arranjar algum lugar pra descansar por enquanto. Nós estamos em uma cidade abandonada, tem várias casas dessas pra gente ficar, dá até pra escolher.
— Tudo bem... — Suspirei — Mas não confie que qualquer lugar por aqui seja seguro. Nem toda cidade está totalmente abandonada, tenho certeza que em muitas dessas casas têm pessoas se abrigando, usando drogas ou até se prostituindo. — Olhei ao redor. Existia um toque de terror naquele lugar — Vamos procurar algum lugar bom.
     Passamos um tempo andando por algumas ruas e entramos em uma casa que parecia confortável. O lugar estava saqueado e grande parte dos móveis e objetos estavam revirados e alguns restos de comida ou seringas podiam ser vistas no chão. Apesar disso, decidimos ficar por ali mesmo já que provavelmente não acharíamos um lugar sem essas características. Tivemos sorte por encontrarmos só isso e não pessoas doentes ou perigosas. Pegamos alguns potes de comida que encontramos trancados em um armário e tentamos deixar a sala o mais limpo possível para que pudéssemos dormir. Depois disso, Sadaharu dormia um sono pesado em frente a porta e Sougo parecia distraído afiando sua espada encostado em um travesseiro, enquanto eu observava sentada em uma cadeira velha, observando as janelas.
— Deveria dormir. — Sougo disse — Você não funciona bem com sono.
— Agora não. Dorme você.
— Estou ocupado. — Ele avaliava o trabalho feito na espada.
— Eu também estou.
— Sendo paranoica? — Riu —Ninguém vai nos atacar. Mesmo que alguém tente vir aqui, será só mais um moribundo que vai ser espantado por esse seu cachorro gigante.
— É sempre bom ter cuidado.
— Kagura, vai dormir. Eu fico vigiando.
— Vai dormir você.
— Não acredito que você está desperdiçando esse meu momento de bondade... — Balançou a cabeça em negação.
— Eu não tô com sono cara, não enche.
— Eu também não. Só que como você é obviamente muito mais fraca que eu, deve estar mais cansada, então...
— Que bonitinho... — Eu finalmente olhei para ele — Você está se preocupando comigo... Eu acho que vou chorar... Mas se isso for porque você espera um outro beijo, pode parar.
— Eu... — Por um momento eu quase pude ver um rubor em seu rosto. Ele ficou parado por uns segundos tentando dar uma resposta, mas desistiu e logo voltou a afiar sua espada, irritado. — Ok, foda-se você. Se quer morrer amanhã, eu não ligo. Se me pedirem eu talvez até ajude.
— Tudo bem. — Cantarolei.
— Tudo bem. — Ele disse áspero.
     De certa forma eu estava um pouco feliz por finalmente ter conseguido usar aquele assunto para irritá-lo. A cara que ele fazia era impagável.
     
     Depois de um tempo, Sougo acabou adormecendo. Eu continuava acordada, tentando pensar em algo que fosse menos suicida do que nós iríamos fazer, e vez ou outra vigiava a rua. Nem sequer uma alma. Ninguém nos perseguiu, ótimo. Mas a tristeza de ver que aquela cidade destruída, assim como tantas outras, me deixara cada vez mais pensativa. A ideia de falsificar uma cura, criar uma esperança e vende-la em preços absurdos, era cada vez mais cruel para mim. Enquanto isso, Sougo parecia estar tendo um pesadelo. Ele se mexia e se virava constantemente, e sua expressão estava cerrada.
— Ei! — Chamei, tentando acorda-lo, quando percebi que ele podia estar se machucando.
      Ele não acordava.
     Me aproximei um pouco, chamando-o cada vez mais, porém ele continuava imerso em seu pesadelo. Cheguei então bem ao seu lado e comecei a dar uns pequenos empurrões em seu ombro, tentando não ser muito abrupta para que ele não se assustasse. Mas meu cuidado pareceu não ser muita coisa, já que um segundo depois ele me derrubou no chão num reflexo, pegou sua espada e apontou direto para a minha garganta, antes mesmo que eu piscasse.
— Você estava tendo um pesadelo... — Iniciei, tentado fazer o mínimo movimento possível até mesmo ao respirar — eu tentei te acordar...
     Podia sentir a lâmina recém afiada começando a fazer um corte em minha garganta.
   Sougo estava ofegante, como se estivesse acabado de correr por quilômetros. Seus olhos frios e sem alma foram aos poucos tomando consciência e um olhar horrorizado foi surgindo em seu rosto. Rapidamente ele me soltou e jogou a espada longe.
— Droga... — Ele suspirava enquanto se encostava a uma parede, tentando se afastar de mim.
   Ainda deitada, coloquei a mão em meu pescoço e a chequei. Estava sangrando um pouco, mas não era lá grande coisa, iria sobreviver. Fui me sentando e aos poucos percebi que ele tinha usado muita força para me derrubar já que as minhas costas e cabeça começavam a doer.
— Eu te machuquei? — Ele perguntou.
— Você já fez coisa pior que isso... — Respondi, tentando não fazer daquilo uma grande coisa — Me lembre de nunca mais tentar te acordar...
— Você está sangrando...
— Não vou morrer por causa disso. O que é? Tá preocupado comigo? — Falei em um tom de deboche, tentando aliviar a sua cara.
— Estou.
     Sougo parecia assustado e por um instante eu também fiquei. Ele não estava bem. Eu não esperava uma resposta como essa. Ele estava sério.
— Eu estou bem. — Respondi, olhando em seus olhos. — Eu vou ficar bem.
     Apesar disso, ele parecia preocupado. Estava com raiva, sabe-se lá de quem ou do quê. Provavelmente de si mesmo.
— Eu quase te matei. — Ele falou, parecendo ter pensado alto.
— Ah qual é, você só estava tendo um pesadelo e eu fui idiota o suficiente pra tentar acordar um assassino. Não precisa ficar desse jeito, eu não morri. E não se ache tanto, você nunca conseguiu me matar em todos esses anos, não seria agora que iria conseguir.
     Ele permaneceu me encarando por um tempo e então se levantou e começou a andar pela casa sem falar nada. Eu me sentei novamente na cadeira e continuei olhando a janela enquanto eu mexia em meu ombro, tentando aliviar a dor. Aquele cara tinha ficado muito mais forte. Minutos depois, ele volta com algum tipo de caixa de primeiros socorros em sua mão.
— Ok, eu achei isso. — Ele se aproximou, tirou algumas coisas da caixa e a colocou no chão — Agora levanta a cabeça.
— Ah não... — Ri — Você não tá fazendo isso...
— Deixa eu ver esse corte.
— Você tá agindo como se eu tivesse sido degolada. — Continuei rindo.
— Levanta logo a cabeça, idiota. — Ele parecia tímido e irritado por estar fazendo aquilo. Eu não sabia se ria ou se me preocupava.
     Ele estava se sentindo culpado. O suficiente para vir fazer um curativo em mim. Por mais que em outros dias eu riria e zombaria dele por semanas, naquele momento eu apenas levantei a cabeça e deixei que ele se sentisse menos culpado. Sougo era uma pessoa que não se deixava abalar por nada. Ele é do tipo de pessoa que sonha todos os dias com as piores coisas já vistas na Terra e mesmo assim no outro dia ele acorda mais disposto do que nunca para continuar vivendo e matando, se preciso. Ele definitivamente era assombrado por todas as almas que ele já tinha tirado a vida, mas ele não se abalava, nunca. Seja lá com o que ele teria sonhado, era algo que teria mexido com ele. O suficiente para ele acordar tentando me matar e se sentir culpado por isso.
     Depois de alguns minutos, ele acabou terminando de fazer o curativo.
— E então doutor, quantos meses tenho de vida? — Brinquei.
— Cala a boca, é a primeira e última vez que faço isso.
— Pelo menos você não disse “desculpa”, aí sim eu ficaria com medo...
— Você não liga que eu quase te matei? — Ele exclamou. — Para de fazer piada com isso!
— Não, eu não dou a mínima pra isso. Foda-se, você já quase me matou umas duzentas vezes, isso é normal pra mim. Se eu tô preocupada é com o que te deixou assim, todo sentimental... Isso é mais incomum pra mim do que você apontando uma espada na minha garganta. E eu não faço a mínima ideia de como lidar com isso. Esse você todo chorão.
— Então você tá preocupada comigo? — Ele debochou. E era a primeira vez que aquilo me deixava aliviada.
— Estou. E aí? Você nem tem direito de me zoar por causa disso já que você falou a mesma coisa minutos atrás. 
      Sougo riu.
— Ok, foda-se. Agora sai daí, é minha vez de vigiar. Vai dormir. Se não amanhã você vai ser morta pelo primeiro Gafanhoto que for lutar com você.
    Suspirei. Eu poderia ter respondido, mas ele estava certo. Eu estava começando a ficar com sono e agora com essas dores eu realmente precisava descansar. Sem dizer nada, me levantei e fui me deitar perto do Sadaharu. Fechei os olhos, mas não conseguia dormir.
— Eu tinha um amigo. — Sougo disse de repente — Ele ficou doente. Eu quase morri de fome pra comprar essa cura. Ele morreu no mesmo dia que ele tomou. Eu tive que enterrá-lo naquela cidade morta. Ele era meu amigo.
     Apesar de que sua voz não demonstrasse nenhuma emoção e soasse tão monótona quanto sempre, eu percebi que talvez isso tivesse sido algo muito importante para ele. Talvez até o que o teria motivado para ir atrás dos Gafanhotos. Eu estava surpresa, mas não tentei entender. Ele estava em uma missão pessoal.
— Eu lembro dos rostos deles todos os dias e me arrependo de não ter ouvido meus instintos. Eu devia ter investigado. Mas eu tive esperança. Eu nunca tenho esperança e eu tive naquele dia... Esse esquema deles, isso precisa acabar. Amanhã, seja lá qual for seu plano, precisa dar certo.
     Não me virei, permaneci de olhos fechados.
— Espero que sim. — Disse.
    E repeti isso mais algumas vezes na minha mente, até dormir.


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