Liars and Killers escrita por A Lovely Lonely Girl


Capítulo 42
Capítulo 38




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            {Katherine Adams Kohls}

          Meus dedos percorriam as teclas pretas e brancas do piano à minha frente com classe e sem hesitação. Melodias maravilhosas jamais imaginadas saíam de minhas mãos e se tornavam uma leve aura dourada ao meu redor, me cercando e protegendo de tudo o que restava. Meu cabelo estava preso em um rabo de cavalo alto, eu usava uma calça social preta, botas estilo montaria de saltos grossos e uma camisa social branca um pouco larga para mim, que deixava um de meus ombros exposto. Sorri amplamente, aquela energia instigava ainda mais meus sentidos e minha vontade. Tudo o que eu conseguia enxergar era o meu piano negro de madeira brilhante, todo o resto estava escuro. Eu não temia a escuridão, já que minha luz a confrontava.

            — Não vai me convidar para dançar, minha cara? — Parei de tocar instantaneamente. Me levantei e observei os traços de quem me convocara. Pele pálida, nariz arrebitado, altura mediana, curvas... Quase sem curvas. Era como me olhar em um espelho, a não ser pelos olhos. Os dela eram intensamente negros, enquanto os meus eram verdes. Kitty usava um vestido digno de uma princesa: corpete de brilhantes prateados que valorizava seu decote, saia bufante de cetim preto, mangas curtas também bufantes. Longas luvas brancas em suas mãos, seu longo cabelo negro estava solto, uma coroa negra com as mesmas pedras prateadas do vestido adornava sua cabeça. Seus lábios estavam pintados de vermelho, suas bochechas estavam coradas de blush.

            “Merry Go Round of Life”, do filme Howl’s Moving Castle começou a tocar em algum canto da minha mente, como se uma orquestra invisível estivesse no salão. Kitty sorriu para mim e esticou sua mão enluvada:

            — Vamos, me acompanhe, Kate. — Me aproximei dela, coloquei minha mão esquerda um pouco acima de sua cintura enquanto ela colocou sua direita em meu ombro. Segurei sua mão esquerda com a minha direita. Comecei a guiá-la calmamente, conforme nossa valsa progredia, mais do cenário à nossa volta era mostrado. Era um amplo palácio dourado, figuras em trajes elegantes e máscaras venezianas surgiram ao nosso redor e rodopiavam no ritmo da música. Meu olhar estava fixo no de Kitty, ela me dirigia um pequeno sorriso misterioso.

            — Eu estou morta? — Perguntei. Ela riu; apesar de termos a mesma voz, sua risada era muito mais charmosa e encantadora do que a minha. Eu a girei algumas vezes. Os saltos das botas me deixavam cerca de dez centímetros mais alta do que ela. Lustres e candelabros de cristal decoravam o amplo salão, enormes janelas góticas com vitrais coloridos com imagens de criaturas que aparentavam trazer a morte consigo. Prova disso foi o vitral que identifiquei como sendo o de Jörmungand, com as lendárias presas venenosas à mostra.

            — Digamos que você esteja... Em um limbo. — Os fantoches dela, os outros dançarinos, não faziam nenhum barulho além de seus sapatos tocando o chão. Olhei para cima, havia uma enorme imagem de Yggdrasil no teto. Kitty sorriu ao notar o meu olhar e parou de dançar comigo. Seus fantoches pararam um segundo depois, junto com a música. Ela ergueu a mão, todas aquelas pessoas se transformaram em sombras e sumiram. Agora éramos só nós duas no centro do grande salão dourado. Contei as raízes de Yggdrasil na esperança de haver alguma outra desconhecida que não levaria à morte certa. Não havia uma quarta raiz.

            — Eu estou morrendo. — Constatei, depois de observar calmamente aquele lugar. Era como uma cópia barata dos grandes salões de Valhalla, eu tinha certeza. Kitty se aproximou, ficando ao meu lado, e colocou afetuosamente sua mão sobre meu ombro.

            — De fato, está. Esse é meu primeiro e último presente para você, Katherine. Cometi um erro ao subestimá-la. Diria que você foi uma rival digna. Conseguiu conter minha alma e meu poder dentro de si mesma por bem mais tempo do que eu havia planejado. — Ela sorriu para mim. Respirei fundo e coloquei as mãos dentro dos bolsos da calça social. Eu nunca cumpriria meu destino, afinal? Jamais saberia como minha vida terminaria de verdade?

            — Pensei que a minha própria morte seria escolha minha. — Ela ergueu uma sobrancelha, curiosidade brilhava em suas orbes negras. — Você havia dito que eu teria até meu aniversário de dezoito anos para me decidir, lembra-se? — Qualquer resquício de doçura e leveza se esvaiu de seu rosto. Ela arregalou os olhos, sua expressão revelava seu desespero interno.

            — Não está aqui por escolha própria? — Sussurrou ela, alarmada. Franzi o cenho:

            — Sabe que não, Kitty. Você viu o que aconteceu, consegue ver através dos meus olhos. Eu estava perto demais quando o carro de Henry explodiu. — Ela trincou os dentes e fechou as mãos em punhos. Saiu andando irritada, os saltos estalavam com força sobre o piso. A segui, andando ao seu lado. — Tem alguma coisa que eu precise saber?

            Assim que saímos do salão, parecia que andávamos no completo vácuo. Lembrei-me do filme “Coraline”. A Outra Mãe não havia se dado ao trabalho de construir nada além da casa e do jardim, assim como Kitty havia criado somente aquele palácio com o grande salão dourado. Fora isso, não havia nada. Kitty parou por um momento e respirou fundo. Ela voltou a olhar para mim e indicou o nada à nossa frente, como se tivéssemos chegado a um ponto de referência.

            — Abra. — Franzi o cenho, confusa. Ela suspirou e revirou os olhos. — Estamos na sua mente. Agora você está... Diferente e não consigo mais ter total acesso a ela. Você terá que aprender a controlá-la se quiser sobreviver. Agora abra.

          Estiquei a mão, ainda receosa pelo que Kitty poderia fazer comigo. O que havia acontecido? Então ela não conseguia mais ter acesso total à minha mente, como sempre fizera? Tateei o nada, como se fosse encontrar alguma coisa. Respirei fundo, até que senti uma superfície dura à minha frente. Empurrei levemente a superfície invisível. A luz quase me cegou, ergui o braço para não incomodar os olhos e me ajustar à claridade.

            — Vamos logo, temos que salvar este corpo. — Segurei o braço de Kitty e a puxei em direção à luz. Eu tinha um trabalho a fazer e precisaria da ajuda de Kitty com urgência.

            {Loki, God of Mischief}

            Horas haviam se passado. Fomos informados sobre o estado de Katherine, felizmente ela sobrevivera. Havia a possibilidade de sequelas aparecerem. Olhei de soslaio para o maldito verme Vingador, que segurava um buquê de flores em suas mãos. Enquanto John era acolhedor para com ele, Elise o olhava como uma leoa prestes a dilacerar seu pescoço. Os pensamentos na cabeça da mãe de Katherine gritavam que ela apenas tinha sofrido o acidente devido ao seu envolvimento com Pietro, já que os Vingadores tinham inúmeros inimigos.

            Me concentrei discretamente na mente de Mercúrio, com calma tentei desvendar o mecanismo de seus pensamentos. Como previsto, eram rápidos demais para que sequer pudesse compreendê-los. Trinquei os dentes. Seria bem mais trabalhoso se quisesse arrancar informações do babaca. Sigyn se aproximou de mim e cravou as unhas compridas no meu braço, o que me desconcentrou.

            — Ai. — Seus olhos percorreram a minha face, me fuzilando.

            — Nem pense nisso. — Revirei os olhos e soltei meu braço de suas mãos agressivas.

            — Não vejo um bom motivo para não fazê-lo. — Ela cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha:

            — Então invadir a privacidade de Katherine não é um bom motivo para você? — Me calei. A ruiva respirou fundo e observou as pessoas que estavam ali, seus olhos atentos se fixavam constantemente em Lucas.

            — Que tipo de sequelas ela pode ter? — Murmurei, olhando distraidamente para um tal de Nikolai. Ele e Elise estavam perto um do outro, conversando baixo sobre toda essa situação. Os dois eram amigos de longa data.

            — Perda de memória de curto prazo, dissociação, mais algum sintoma característico de ansiedade ou estresse pós-traumático. Fisicamente, ela se recuperará com o tempo. — Franzi os lábios e as sobrancelhas, pensativo. — Por que a pergunta?

            Fiquei em silêncio por um instante, olhando para John. Seu desespero parecia menor, mas ele estava ansioso demais.

            — Prometi ao pai dela que ela se recuperaria totalmente.

            — Você fez o quê? — Sibilou entredentes. A deusa ergueu as mãos e balançou a cabeça, incrédula. — Quer saber? Que se dane. Que se dane essa promessa. Não será a primeira vez que você não cumpre sua palavra, não? Não vai cumprir mesmo, de qualquer maneira. — Inclinei levemente minha cabeça para o lado, com o olhar fixo no dela. Não estava familiarizado com a ideia de Sigyn, de todas as pessoas, desdenhar de mim e de minhas habilidades. Bastou um relance de telepatia por minha parte para que eu compreendesse que a ruiva estava genuinamente preocupada com Katherine e não queria que ela piorasse, a ideia de que eu machucaria Kohls era insuportável para a deusa da fidelidade.

            — Eu cumprirei com a minha palavra dessa vez. Me encarregarei pessoalmente disso. — Sigyn fechou os olhos e correu a mão direita por seu rosto, suspirando com frustração. Ao ser convencida de minha resignação, olhou mortalmente em meus olhos:

            — Não me interessa o que fará, contanto que seja discretamente. Desta vez, estará sozinho. Não estrague tudo.  — Sorri ironicamente para a ruiva:

            — A fidelidade não vale mais nada nos dias de hoje, não é mesmo? — Seu olhar se tornou sombrio. Sua voz parecia ressoar em minha mente como cacos de vidro arranhando mármore: “Se alguma coisa der errado e Katherine acabar gravemente ferida ou coisa pior, tomarei você como único responsável por seu erro”. Assenti levemente, engolindo em seco. Uma figura me chamou a atenção, entrando pela porta do hospital. Usava uma calça social preta e sapatos sociais, uma camisa vinho com as mangas dobradas até os cotovelos. Bruce Banner seguiu até o lado de Pietro e se apresentou apressadamente a John, apertando sua mão. Franzi o cenho e me virei para Sigyn. — Descubra o motivo de ele estar aqui. — Sigyn revirou os olhos, suspirando. Ela se virou e seguiu até onde John estava, pronta para fazer o mesmo papel de sempre.

            Eu estava prestes a entrar na mente de Banner quando uma enfermeira se aproximou e passou a conversar com Elise sobre o estado de Katherine, John se apressou em ficar ao lado de sua esposa. A cirurgia para retirar os estilhaços que estavam em seu torso fora bem-sucedida, a situação de sua cabeça e de seu cotovelo fora resolvida mesmo depois de algumas complicações. As queimaduras em seu corpo estavam sendo tratadas e não eram tão graves. Ela estava sedada e sua médica estava monitorando-a pessoalmente enquanto esperava que ficasse estável durante a noite. Ela passaria o dia seguinte em observação e, caso seu estado progredisse de maneira estável, Kate poderia receber uma breve visita dos pais à noite.

            — Ela nunca reagiu bem a sedativos... Ela tem pesadelos terríveis. — Anunciou a mãe, com preocupação.

            — Não será uma administração a longo prazo, senhora. Assim que sua filha começar a responder de forma favorável, poderemos suspender os sedativos. É apenas para que ela não se prejudique em relação aos pontos, caso se sinta incomodada pode coçá-los acidentalmente. Trago mais notícias logo que puder. — A castanha assentiu para a enfermeira.

            — Muito obrigada. — A enfermeira se retirou, John suspirou com alívio e beijou a testa de Elise.

            — Ela vai ficar bem. Tenha fé, Lise. — Elise suspirou. Henry se aproximou de mim, obstinado:

            — Se precisar de ajuda, conte comigo. — Fiquei confuso por um instante, porém, ao ler a mente dele, compreendi do que se tratava. Respirei fundo e tirei o minúsculo alfinete que Henry havia colocado em minha roupa para que ouvisse minhas conversas. O entreguei para ele.

            — Confesso que não esperava truques como esse vindos de você. — Wright sorriu de lado e pegou o pequeno aparelho de volta.

            — Quando se trata de sobrevivência, truques como esses são necessários. — Ele suspirou e cruzou os braços, os olhos fixos nos dois Vingadores. — Se o envolvimento dela com a SHIELD é secreto, esses idiotas estão fazendo um ótimo trabalho arruinando tudo.

            — Tentarei obter mais informações sobre o estado de Katherine através de meus próprios métodos. Preciso de um lugar mais calmo para conseguir fazê-lo, então estarei lá fora. — Henry assentiu uma única vez, seus olhos brilhavam com determinação:

            — Te aviso se houver mais notícias. — Assenti brevemente e segui para o pátio do hospital, onde havia algumas poucas árvores com bancos debaixo delas e diversos tipos de flores perto da calçada. Uma fonte de pedra relativamente grande estava no centro, coloridos peixes koi nadavam nela. Sentei-me em um banco de pedra debaixo de uma árvore com magnólias roxas, respirei fundo, endireitando a coluna e fechei os olhos. Senti o aroma das flores, a leve brisa vinda do Leste, a energia vital de todos os seres que estavam naquele hospital. Vaguei de mente para mente, procurando qualquer informação ou vislumbre de Katherine, tentando ser o mais breve e preciso possível, já que não poderia demorar muito tempo ou acabaria levantando suspeitas. Para a minha infelicidade, tratava-se de uma troca de turno de médicos e enfermeiros.

            Impaciente, resolvi tentar uma projeção astral para conseguir observar o estado de Katherine. Me recostei no banco, me certificando que meu corpo estivesse bem imobilizado para não se ferir, em seguida apoiei minhas mãos nas coxas com as palmas para cima e deixei que uma parte discreta de minha magia se apoderasse de mim, sem deixar que a aura verde fosse percebida por ninguém. Relaxei, pronto para me livrar de minhas correntes físicas e assumir minha forma astral, quando senti um forte impacto em meu terceiro olho que me paralisou. O ato me surpreendeu tanto que abri os olhos. Não havia nada à minha frente.

            — ... Terceiro olho... — Congelei. No canto da minha mente, ouvi a voz de Katherine. Ela estava tentando se comunicar comigo!? Fechei os olhos mais uma vez, porém, ao invés de tentar me projetar, foquei em toda a energia que estava ao meu redor, incluindo energia espiritual. Um calafrio desagradável percorreu meu corpo quando senti uma presença mais poderosa e sombria... Que eu não sentia há mais de cinco décadas. Quando agucei ainda mais meus sentidos, consegui ouvir mais claramente.

            — LOKI! DÁ PARA VOCÊ ME OUVIR? EU ESTOU GRITANDO COM VOCÊ FAZ MAIS DE MEIA HORA AQUI! QUANTAS VEZES TENHO QUE CUTUCAR SEU TERCEIRO OLHO PARA VOCÊ ME VER? — Abri os olhos e, em um movimento rápido, segurei sua mão, que já estava pronta para dar um peteleco na minha testa. Trinquei os dentes e a olhei com irritação:

            — Já chega. — Katherine engoliu em seco e franziu o cenho para a mão que eu segurava antes de puxar de volta para si. Eu conseguia enxergá-la nitidamente, tal era o poder que a cercava. Era como vê-la em seu próprio corpo, não apenas sua alma. A única diferença mais discrepante era o brilho em seus olhos, que pareciam ainda mais verdes.

            — Por que de repente eu consigo encostar em você? Estou tentando falar contigo já faz um tempo.

            — Não importa. Agora sente-se ao meu lado e me explique como você está aqui agora. A energia que eu sinto vinda de você é... Distinta. — Katherine cruzou os braços e se sentou ao meu lado, olhando para a água da fonte.

            — Se com “distinta” você quer dizer “bizarra”, então estamos de acordo. Não era exatamente o que eu queria, mas precisava avisá-los, todos vocês, antes que fosse tarde demais.

            — Eu estava prestes a protegê-la aqui, assim como ajudá-la com sua recuperação. Cuidarei disso, prometi ao seu pai. — Ela lançou um olhar gélido para mim.

            — Fique bem longe de John e Elise. Não os quero envolvidos com quem pode lhes trazer problemas.

            — Tarde demais. Estou decidido a cumprir com minha palavra. Quero atender às preces de seus pais. — Um sorriso sinistro surgiu nos lábios de Katherine e uma risada amarga escapou deles.

            — Enquanto alguns rezam para seus deuses em busca de milagres, outros são mais inclinados a fazerem pactos com demônios para terem as preces atendidas. — Não precisei de muito para entender. Com a energia que sentia emanando dela, sabia que ela havia tomado alguma decisão que poderia prejudicar aqueles com quem se importava. Uma magnólia roxa se soltou da árvore e caiu entre nós dois. Os olhos da garota se fixaram na flor. — Magnólia... Símbolo da saúde, espiritualidade e lealdade. As púrpuras são relacionadas à realeza e honra. — Ela esticou a mão e tocou na pétala da flor. Um instante depois, a flor se transformou em cinzas negras com cheiro de morte. Naquele momento, pude compreender o que havia acontecido com ela. De alguma forma, ela e Kitty ficaram confinadas à mente de Katherine. O que quer que tivesse acontecido entre as duas, fora algo alarmante se ela abandonara o próprio corpo à mercê de sua nêmesis apenas para tentar se comunicar comigo. A garota engoliu em seco. — Que tipo de honra há nisso? Em ceder e libertar um monstro apenas para salvar a própria pele? Um verdadeiro herói se sacrificaria por um bem maior, não aceitaria acordos perversos com criaturas cruéis e sombrias.

            — Um tipo de herói ingênuo e idiota o faria, com certeza. — Suas orbes verdes se voltaram para mim. Sorri de lado para ela. — Essa é a figura imaculada do herói aclamado. Ele tem que ser perfeito. Sua imagem tem que ser perfeita. Se ele usa mais o cérebro do que os músculos, é tido como um ser ardiloso e trapaceiro, no mínimo. Mesmo que, no fim, ele seja o responsável por salvar o dia, e não o brutamontes musculoso com complexo de... Deus. — Pisquei para ela, que riu de leve. — Não há nada de errado em colocar sua vida como prioridade. Fazemos o que fazemos para sobreviver. Não desperdice seu tempo e sua energia se lamentando das decisões feitas; foque em encontrar a solução para o problema criado. — A garota fez uma pausa, os olhos fixos nos meus. Era instintivo; eu sempre queria desvendar o que jazia em seus pensamentos. O que ela sentia? Como ela estava lidando com essas situações incomuns e perigosas?

            — Sua mente nunca descansa?

            — Com um alvo em minhas costas e minha cabeça à prêmio? — Balancei a cabeça em negativa. Kate franziu levemente o cenho com preocupação.

            — Quando... Tudo isso acabar... Acha que vai conseguir descansar enfim?

            — É o que gostaria de descobrir. Se o futuro for generoso para comigo, claro.

            Ficamos em silêncio por alguns minutos. Observei a natureza que nos rodeava enquanto sentia o peso das orbes de Katherine sobre mim, me avaliando, estudando avidamente, a curiosidade fazia com que brilhassem ainda mais fortes.

            — Sobre o acordo... — Me virei novamente para ela. — Kitty está cuidando do... Nosso corpo. Fazendo reparos, fortalecendo-o, deixando-o apropriado para conter seu poder. E é por isso... Que preciso de um favor seu. — A morena respirou fundo esticando sua mão e desenhou um símbolo no ar. O símbolo flutuava, negro, pequenos tentáculos de sombras saíam de suas bordas. Engoli em seco quando o identifiquei. De onde ela havia tirado aquilo?

            — O que a faz pensar que posso usar uma runa como essa? Tem ideia de quanto de minha magia seria necessário para criá-la e ativá-la com sucesso?  — Trinquei os dentes negando com a cabeça, minha mente tentava raciocinar levantando todas as hipóteses de Katherine ter mentido para mim sobre sua verdadeira natureza esse tempo todo. Como ela poderia saber sobre a Runa de Contenção? Asgard só a usava contra seus piores inimigos e maiores ameaças mágicas.

            — Não sei o que isso significa... Não sei o que é. Mas, quando prestei atenção nos pulsos de Kitty, mesmo com a minha aparência, notei que os dois pulsos tinham esse símbolo. Quando ela tentava usar demais a sua magia para fazer os reparos, essa runa brilhava e ela parecia sofrer por causa dela.

            — As Runas de Contenção foram criadas para penetrar fundo, até o espírito, como uma forma de punição para que o marcado não possa usar magia. Não anula a habilidade, é claro, é apenas uma forma de tortura. Usada pelos asgardianos contra um tipo especial de ameaça.

            — Então Kitty... É uma ameaça a Asgard? — Katherine se abraçou inconscientemente olhando para o céu, como se conseguisse enxergar o Reino Dourado através das nuvens. Ela respirou fundo e, contra todas as expectativas, riu de maneira relaxada. — O quão fodidos nós estamos agora? — Não consegui segurar o pequeno sorriso ao ouvir tais palavras. Para alguns, seria uma tragédia, sentir que seu tempo está acabando e que tudo desmoronaria. Kate parecia encarar isso como um desafio. Nada mais apropriado do que eu seguir seu exemplo, então. Franzi as sobrancelhas, refletindo sobre o que poderia ser feito.

            — Precisarei do poder de Sigyn. E de uma adaga cerimonial de prata. — Murmurei, pensativo. Katherine assentiu, seus olhos brilhavam com fascínio e admiração. Hesitei por um momento. — Isso pode ter consequências terríveis. Sua alma pode ser encarcerada para sempre, Katherine. Como... Como quando Tyler... A tocou.

            Ela me encarou, inexpressiva. Correu os dedos por seus braços, suas orbes acompanhavam o movimento lento. Estava claro que ela sentia a ausência de seu próprio corpo, sentidos como tato e paladar eram irrelevantes fora de sua forma física. Depois de confirmar isso, ela pareceu se recordar a que eu me referia e abraçou a si mesma inconscientemente, mesmo não sentindo seu próprio toque.

            — Não posso deixar que tantas pessoas morram por conta de minha covardia. Não posso ficar sendo um fantoche dela sem enlouquecer. — Ponderou, como se pesasse suas escolhas em uma balança. Suas orbes se voltaram para mim, um minúsculo sorriso e um olhar desdenhoso em minha direção foram suficientes para que eu ficasse alerta às suas próximas palavras. — É o meu dia de sorte, então. Poderei ver o deus da trapaça em pessoa tirando uma terceira alternativa da cartola. Será um coelho, um lobo ou uma cobra? Isso, só o Destino dirá. — Kohls se levantou do banco e ficou de frente para mim, se agachou levemente até que nossos rostos ficassem à centímetros de distância. — Farei o que puder para domá-la dentro do corpo. Conseguirei algum tempo para vocês resolverem isso. — Sorri cinicamente para ela:

            — Claro, não é como se a ameaça de sermos expostos a Asgard, capturados pelos Vingadores ou mortos por uma entidade mágica poderosa e anciã estivesse me pressionando, não é mesmo? — Revirei os olhos e me inclinei para trás, encostando minhas costas no banco.

            — Sabe... Ainda me lembro das palavras de um cara muito inteligente que conheço... — Franzi levemente o cenho, me atentando ao leve sorriso encorajador que a garota tinha em seus lábios. O que aquela peste tinha em mente? — “Raiva e histeria não são sentimentos adequados para dar origem a um bom plano”. — Ela se inclinou um pouco mais sobre mim, fiquei boquiaberto ao ver um leve brilho dourado faiscar por trás do verde de suas orbes. — Então procure fendas, brechas e exceções. Você é o estrategista mais esperto que eu conheço. Me mostre do que você é capaz, Homem-Muralha. — Ela aproveitou a deixa de minha distração e deu um peteleco em minha testa, rindo de leve. Trinquei os dentes, prestes a cobrar mais respostas sobre o que ela sabia sobre “Kitty”, quando ela desapareceu em pleno ar, deixando apenas uma leve fumaça negra para trás.

            {Thor, The God of Thunder}

            Eu estava andando pela Torre dos Vingadores saboreando algumas guloseimas midgardianas quando senti uma brisa suave vinda do Leste. Respirei fundo enquanto os pelos de meus braços e minha nuca se arrepiaram ao mesmo tempo. Trinquei os dentes, ciente do que aquilo significava. Deixei o saco de batatas chips cair no chão e estiquei o braço, chamando o Mjölnir. Quando o arrepio ficou mais intenso às minhas costas, me virei rapidamente. O martelo chegou à minha mão.

            — Alteza, trago-lhe notícias alarmantes. — Uma silhueta feminina se materializou a um metro de mim, seu longo cabelo loiro estava trançado às suas costas. Trajava sua armadura de Bruxa, o couro asgardiano continuava impecável com suas cores; verde claro e verde escuro. Estava sem seu elmo, que mais parecia uma tiara extravagante. Um canto de minha mente sibilava “VÍBORA TRAIÇOEIRA”. Enterrei tais palavras, ciente de que Amora tentaria ler minha mente. Em tempos passados, ela fora uma aliada de Loki. Depois que coloquei a cabeça de meu irmãozinho à prêmio, Encantor fora esperta o suficiente para jurar lealdade à Asgard ao invés de fugir com o trapaceiro. Joguei o martelo para cima, ele voltava para minha mão num piscar de olhos. Continuei fazendo esse mesmo movimento enquanto a olhava nos olhos, uma antiga porém eficiente tentativa de intimidação por minha parte. Outra tão eficiente quanto essa era ameaçar esmagar o crânio daqueles que não cooperassem, claro.

            — Espero que seja sobre o paradeiro do traidor. — Minha voz era grossa, firme. Os olhos verdes da feiticeira se voltaram para os meus. Segurei o martelo mais uma vez, apertando o cabo com um pouco mais de força do que o necessário. — Então...?

            — Encontrei vestígios... De um antigo inimigo de Asgard. Ele ainda vive, mas está encarcerado. Trata-se de uma questão de tempo até que seja libertado mais uma vez. — Franzi o cenho:

            — Selamos magicamente e prendemos todos os nossos inimigos mais letais, sem exceções. Quem escapou da justiça asgardiana?

            — Por onde passava, trazia vingança e destruição para com toda a nossa espécie... Tortura e retaliação, junto com gritos e ameaças que faziam os Nove Reinos estremecerem... — Ela engoliu em seco por um momento. — Minha professora quis se vingar pessoalmente de Balder, então tirou o monstro de Hellheim. Aquela alma desprezível que, em vida, ficara conhecida como Valquíria Louca. — Arregalei os olhos:

            — Azryn? — Ela assentiu. Meu rosto se tornou inexpressivo, pensando em quantas vidas asgardianas haviam sido perdidas cada vez que falhamos em detê-la. Seu poder era tão grandioso que era comparável a uma força cósmica inabalável, quase indestrutível. Por que raios Karnilla quereria se vingar usando um ser como esse?!

            — Não posso lhe contar mais do que isso, Alteza. O Destino já tecera sua teia, um pequeno deslize de minha parte arruinaria o futuro. Um pequeno erro pode ter consequências terríveis. As Bruxas já o alertaram disso, não? — Franzi os lábios. Por um instante, me recordei de Frigga em mais uma de suas aulas sobre magia. Às vezes, ela ensinava tanto a mim quanto ao Loki, principalmente quando se tratava de técnicas de defesa e prováveis brechas e pontos fracos a se procurar quando lidássemos com magos, feiticeiro ou Bruxas.

            Bruxas, Nornas e Videntes que tinham acesso ao futuro raramente podiam comunicar certas coisas, caso contrário, um efeito borboleta poderia acontecer; Destino e Universo seriam afetados e as consequências seriam catastróficas, apocalípticas. E irreversíveis. Respirei fundo, avaliando a feiticeira asgardiana.

            — Eu, Thor Odinson, Filho de Odin, o Pai de Todos, e da Bruxa Vidente Frigga, Deus do Trovão, Príncipe Herdeiro e Futuro Rei de Asgard... — Eu sabia o que devia ser feito. Sentia o trovão dentro de mim, a energia quase liberada ao exterior do corpo, apenas forte o suficiente para invocar uma Norna. — ... Invoco Skuld, a Norna do Futuro. — O corpo escultural de Amora estava tenso enquanto a silhueta da idosa tomava forma diante dos nossos olhos. Ela prendeu a respiração quando os olhos de Skuld a encararam com pesar.

            — Lamento tanto, criança. — Murmurou ela. A loira direcionou suas orbes apenas por um segundo à mim; o suficiente para que eu vislumbrasse o puro temor em seus olhos. Sorri com escárnio. Encantor estava atada a mim, todos nos Nove Reinos sabiam. Se o trapaceiro resolvesse se tornar aliado da feiticeira, seria muito mais fácil e divertido ter sua cabeça decapitada como troféu. Skuld me reverenciou, ainda murmurando. — Vossa Alteza, o que o Futuro pode lhe oferecer?

            — Um inimigo antigo e um traidor, Skuld. — A Norna fechou os olhos, uniu as mãos à frente do corpo e respirou fundo, enquanto vislumbres de futuros distintos passavam por seus olhos.

            — Azryn Saringoshk... Seu corpo será resgatado... Sua alma... Ainda é incerto... Porém... S-Seu poder... — Ela fechou as mãos com tanta força que as unhas curtas se cravaram na própria pele. O cheiro metálico de sangue preencheu o ar enquanto ela o derramava no chão. — É absoluto, tão antigo quanto os Astros. E o trapaceiro... — Ao mencionar Loki, um enorme arranhão fez com que uma poça de sangue surgisse no chão. Se a retaliação de uma Norna fosse o preço para partir o crânio de Loki com o meu martelo, que assim fosse. — V-Vejo... Luta... Esperança... Um... Glorioso propósito. — Um suave sorriso e uma expressão de alívio cobriu o rosto de Skuld. Uma lágrima solitária correu por seu rosto enrugado. — Quanto a ti... — Ela abriu os olhos, estavam completamente brancos. Engoli em seco. Ela avançou sobre mim, suas unhas foram cravadas em meu braço direito. Gritei, sentindo sua magia estraçalhando o trovão, comandando-o a me atacar de dentro para fora. O Mjölnir caiu aos meus pés. — O PRIMOGÊNITO CAUSARÁ A MORTE DE ASGARD!

          Skuld sumiu no ar. Trinquei os dentes, me virando para Encantor. Ela estava pálida, observando meu braço ensanguentado. Quando observei, notei que era um desenho rudimentar de olhos e presas. Feito pelo trovão.

            — Jörmungand. — Sussurrou Amora, com lágrimas nos olhos. Minha expressão de fúria se desfez enquanto estiquei a mão para o martelo. — A Morte é a maldição do nosso povo. — A feiticeira desapareceu, como a Norna. Tudo desapareceu.

            O mundo se tornou cada vez mais escuro, meu corpo se tornou cada vez mais pesado. Caí. Minha consciência... Enevoada... O inimigo... Próximo. Tentáculos de sombras se remexiam em minha mente, através de meus olhos, tentando me enlouquecer. Azryn.

            Minha única esperança era o Sono de Odin. Só assim ela não teria acesso à minha mente, às minhas memórias e aos segredos descobertos por mim. Azryn jamais me teria como uma marionete, jamais faria de mim um traidor de meu próprio povo. Eu sabia que o Sono de Odin protegia o Pai de Todos, apesar de seu corpo se tornar vulnerável. Suas barreiras mentais se fortificavam, seu espírito se tornava mais intuitivo e vigilante.

            Engoli em seco, lutando contra os tentáculos de sombras que queriam entrar em minha mente. Respirei fundo, alcançando o limbo em minha mente que até então fora inexplorado por mim.

            Pela primeira vez em toda a minha existência, me permiti entrar no Sono de Thor.


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