Finitamente perfeito escrita por Oceansoul


Capítulo 1
Capítulo Único




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É triste de ver como os humanos superestimam a imortalidade. Você pode pensar que é fácil para eu dizer, uma vez que vivo através dos séculos desde os tempos em que a areia sob nossos pés eram nada menos que impetuosas rochas sólidas. No entanto, ao contrário do que imaginam, ser imortal não é escapar das garras do tempo. É estar à mercê dele mais do que qualquer outro, sentir a pele perfurada por sua fúria e continuar curando-se e se arrastando para o futuro desconhecido. Não irei mentir, pois quando jovem a ideia de permanecer na terra enquanto observava a vida esvaindo dos corpos alheios parecia um presente divino. Viver para sempre. Quem não tem tal desejo? Sendo em corpo e alma ou com seu nome escrito nas páginas da história. Vi tantos homens sucumbirem nessa aflitiva busca por reconhecimento e vi tantos que o alcançaram e ainda assim sentiam-se incompletos, por terem sacrificado tanto de si para chegar lá. Com igual tristeza compareci a tantos funerais de pessoas que nada mais queriam do que aproveitar o tempo que tinham, e que deixaram um buraco nos corações e vida dos que ficaram para trás. Nesses momentos, eu me sentia sortuda pelo dom da imortalidade e cheguei a carregar tal pensamento comigo durante algum tempo, até conhecer Isaac.

De todos os humanos que conheci e amei Isaac foi o mais mortal. Mortal, pois sua vida haveria de esvair-se um dia e mortal para si mesmo, pois gastava cada instante que tinha para sentir tudo o que lhe fosse possível. Ao mesmo tempo também foi o ser mais vivo com quem tive o prazer de estar e essa é a única forma de expressar o que sentia ao observa-lo. É claro, não há como alguém estar mais vivo do que outro. Enquanto respira, enquanto seu coração está a bater você está tão vivo quanto qualquer um. Porém, Isaac vivia cada respiração. Vivia e sentia em excesso cada gota de sangue que fluía por seu corpo e se derramava na terra em suas inúmeras batalhas. Ele era a vida em si. A vida ardente e reluzente como fogo, como o brilho do suor sobre sua pele quando nos amávamos. A vida cortante e fria como gelo, como o seus olhos azuis cheios do brilho finito das estrelas.

Eu gostaria de dizer que Isaac esteve comigo durante muito tempo. Gostaria também de dizer que o dia que nos conhecemos foi algo magnífico e místico assim como o meu viver, não fosse pelo fato de ele ter caído em mim de cima de uma árvore na qual tentava pegar um fruto para impressionar outra mulher. Mas isso não importa, uma vez que estou aqui para contar-lhes sobre o fim e nada mais.

Era uma noite quente e abafada que começou numa grande correria, pois estávamos quase a perder o barco que desceria o rio e nos levaria ao centro da cidade. Havíamos percorrido alguns quilômetros para assistir ao show que aconteceria por lá, e não podíamos perder por nada. Naqueles tempos as pessoas tinham medo de coisas desconhecidas, eram tempos sombrios e qualquer um que fosse diferente podia ser considerado inimigo. Isaac e eu sabíamos as verdades sórdidas por trás de tudo, portanto pouco nos importávamos de entrar numa grande tenda para assistir a um homem que cuspia chamas e sua filha destemida que dançava entre elas. A verdade é que perseguíamos aqueles dois com alguns dias de atraso por muitas cidades, e finalmente chegamos a tempo de fazer parte da diminuta plateia.

Quando chegamos ao rio, o barco já estava distante do píer. Acenamos e chamamos, mas aparentemente não tinham nos escutado. Eu vacilei por um instante, mas Isaac continuou a correr e me puxou consigo. Dei-me conta somente quando estávamos sobre a madeira da passarela final que deveria levar ao barco quando encostado lá. Só que ele não estava, e íamos direto para a água.

— Pula! – Foi o que ele me gritou, tarde demais para que eu pudesse reagir.

Assim, Isaac alcançou o barco e eu caí no rio ficando molhada até os ossos. Tiveram a decência de diminuir o ritmo e escorregar uma escada de corda para que eu pudesse subir a bordo. Já no barco, tropecei no meu vestido molhado até Isaac que me olhava com um riso bobo no rosto. Ergueu as mãos em sinal de rendição e eu o puxei para um abraço. Por um instante ele pareceu confuso, mas quando minhas vestes encharcadas o molharam também Isaac me afastou rindo.

— Sinto muito. – Declarou, tentando conter um riso. É claro que não sentia.

Sentamos nos bancos da proa onde a corrente de ar parecia ser mais forte e ficamos a observar a cidade passar ao nosso redor. Ou pelo menos foi o que ele fez, pois eu apenas o olhava. Estávamos viajando juntos há alguns meses, e ainda assim Isaac continuava a me surpreender. Havia um corte na sua clavícula que ele fizera no dia anterior ao impedir um assalto na estalagem em que estávamos hospedados. Depois que o questionei sobre sua atitude, ele disse simplesmente “Você viu a faca dele? Era aço Tecca. Eu não poderia deixar alguém continuar usando aço Tecca daquela forma”. Os Tecca são um clã conhecido por forjar as melhores armas em muitas gerações. Sua fama se estendia também pelo fato de somente venderem seus artefatos a pessoas dignas que as usassem para fins honráveis. Poucas eram as pessoas que prestavam atenção nisso, na verdade, uma vez que não havia mais tantos homens com vontades honráveis no coração. Porém, lá estava Isaac sempre reparando em pequenos detalhes.

Notou que eu o olhava e fez uma careta com a língua e sobrancelhas. Retribui com uma expressão parecida, e nos encaramos por um momento antes de darmos risada. Ao passarmos pela torre de uma igreja, notei que estávamos alguns minutos atrasados, mas fui impedida de avisar Isaac ao ver que ele se levantou de repente, assim como todas as pessoas que estavam no barco conosco. O próprio barco diminuiu o ritmo, então me levantei e olhei na direção que todos pareciam olhar.

Havia fumaça erguendo-se no céu, ofuscando as estrelas e cobrindo a lua. Era uma coluna enorme e quase negra, que começava a emanar cheiro de plástico e borracha queimada. Não foi preciso muito tempo para saber que se tratava da tenda do Sr. Fuur e sua filha Ada. O barco encostou-se ao píer mais próximo, pois fora impedido de seguir uma vez que a área em frente estava sendo evacuada devido ao perigo de incêndio. Isaac saltou pela amurada antes mesmo que eu pudesse impedi-lo e tive de puxar a barra do meu vestido anil para segui-lo.

Acontece que Ada era ninguém menos que uma antiga amiga de Isaac, a qual durante muito tempo ele quis rever e não pode devido às viagens que a moça fazia com sua trupe. Portanto, ele não hesitou em empurrar a guarda que tentou barra-lo ao avançar para os arredores da tenda. Procuramos por ela e ela não estava entre a multidão que escapara.

— Fique aqui. – Ele me disse apenas. Seu tom de voz era tão firme como quando ele me seguiu e disse “Eu vou com você”, na noite em que deixei sua vila. Tão firme como o aperto de suas mãos quando me segurou no arco de pedra sobre um lago congelado, onde não me deixou pular para a eternidade fria. E lá estavam em seus olhos aquelas fortes emoções as quais eu tinha tanto fascínio de observar, e mesmo naquele último momento Isaac era a vida em si. O medo de perder, a esperança e a força para acreditar que ele podia mudar algo.

Assim ele se foi. Encontrou um caminho livre pelas chamas que logo depois que ele passou se fechou. Quando digo que imortais estão também a mercê do tempo, devo ressaltar que isso se aplica não somente no que se trata da vida contínua, mas também da espera. A dor de esperar e não poder fazer nada para mudar o que há de acontecer. Porque diferente dele, eu vivi demais e sei onde essas coisas acabam. Não há um final feliz, no qual ele iria irromper das chamas com Ada e entrega-la ao seu pai em prantos. Ele não iria me abraçar e jamais voltaria a dizer “está tudo bem” com aquele sorriso bobo no rosto de quem não faz ideia do risco que está correndo.

Eu poderia facilmente ter o impedido de ir, mas volto a dizer que Isaac foi o mortal mais vivo que conheci. Se eu o impedisse, estaria o impedindo de viver quem ele era. Impedindo-o de ser. Tão mortal e tão finitamente perfeito.


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Notas finais do capítulo

Eu escrevi esse conto com muito carinho para um trabalho escolar de língua portuguesa e no fim me vi simplesmente apaixonada por ele. Espero que tenham conseguido captar a mensagem que tentei passar. Comentem para que eu possa entender seus sentimentos ao ler. ♥



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