Você aceita ser meu único amigo? escrita por snow Steps


Capítulo 6
Milagres




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O café-da-manhã é a refeição mais gostosa do dia, pois não é feito pelas tias da cozinha do retiro. Eu entendo que preparar uma refeição para centenas de pessoas não é algo fácil, mas é impressionante como a comida sempre está:

muito salgada;

muito insossa;

mal cozida;

sabor e textura não identificados.

Quer dizer, estamos na décima oitava edição e a equipe da cozinha nem mudou tanto desde o início. Segundo a probabilidade matemática, eles já deveriam ter acertado alguma vez.

Após deliciar três pãezinhos com queijo e presunto, dou novamente meu braço para Nicholas e juntos deixamos o refeitório. Os alto-falantes já anunciam desesperadamente “primeira atividade será daqui a trinta minutos! ”, e pressuponho que já devamos ir para o salão de jogos, onde geralmente o pessoal se reúne.

_ Para onde vamos? – Nicholas pergunta.

_ Para a primeira atividade – Respondo, desviando uma pedra de seu caminho.

_ Como assim, atividade?

_ As atividades são jogos que os veteranos organizam para distrair os hormônios da gente. Basicamente nos dividem em grupos, nos obrigam a realizar exercícios físicos exaustivos e quem se sair melhor ganha o Prêmio Cristão.

_ Prêmio Cristão?

_ Sim, uma maravilhosa cesta de guloseimas borrachudas e com gosto de parafina. Porém, os adolescentes não participam das atividades visando ganhar o prêmio em si. Aqui há todo um sistema de castas. Caso o seu grupo ganhe o torneio, ele se torna o brama. Se for vice, o xátria, mais conhecido como “os recalcados”. Os que ficam em último lugar são os párias, grupo com qual eu mais me identifico.

_ Interessante. Quer dizer, não o torneio, mas a sua analogia com o sistema de castas. O que mais há para fazer além de alimentar o espírito competitivo?

_ Bem, a gente também reza, logicamente. Às vezes eu falto uma atividade para ler debaixo do carvalho, quando minhas pernas ficam muito doloridas. É o meu lugar favorito daqui.

_ Parece um bom lugar. Me leve até lá.

_ Mas a atividade começa daqui a meia hora...

_ E por acaso será um crime ao Senhor, meu Deus, um cego chegar atrasado por ter dificuldades de caminhar neste terreno acidentado?

_ A gente pode ir depois, não é um ponto turístico tão excepcional assim.

_ A última vez que deixei para “fazer algo depois” foi quando decidi que estava tarde demais para assistir Star Trek e resolvi dormir. No dia seguinte acordei com a visão zoada, e nunca mais poderei ver as orelhas pontudas do Spock. Sabe qual é a lição que tirei disso, Liora?

_ Nunca mais dormir?

_ Não, engraçadinha. Eu devo aproveitar o agora, porque talvez no próximo minuto eu fique mais cego, aleijado ou morto. Parece um pouco radical, mas é a verdade. O ser humano não faz ideia do quanto é vulnerável, do quanto é... feito de carne. – Ficamos quietos após o baque de suas palavras. – Então, você vai me levar até o carvalho?

_ É, acho que sim.

_ Nossa, eu nasci para ser político!

Com o braço dele atravessado em meus ombros (toque que ainda me gera arrepios porque nunca estive tão próxima de um rapaz bonito), caminhamos para o tão adorado carvalho. Subimos o leve declive e alcançamos o topo do terreno, onde o carvalho sacoleja seus galhos de acordo com a brisa que sopra forte. Eu sempre vi o carvalho como o carvalho, mas ao levar Nicholas até ele, tenho a frustrante sensação de que na verdade não passa de uma árvore.

Nick dá alguns passos sozinho, e olha para a paisagem em volta com as mãos enfiadas nos bolsos. Cerro os punhos como um ato de autoflagelo, imaginando o que ele deve estar pensando. “Lugar idiota” ou “não consigo ver nada” são as prováveis opções.

_ Descreva a vista para mim, narradora de imagens. – Ele solicita, e tal pedido ainda me pega de surpresa.

_ Uhum – Afirmo, postando-se ao seu lado. – Bem, devo confessar que esta é um pouco fácil para mim. Venho aqui desde que me entendo por gente... tomara que concorde com a minha opinião.

_ Eu sou obrigado a concordar, já que não sou capaz de dar a minha...

_ Ah, claro – Meneio a cabeça, constrangida.

Explico para ele o modo como me sinto infinita ao estar rodeada por toda aquela imensidão de montanhas. Falo também da sensação de liberdade no espaço, igual ao de um pássaro ou astronauta. Ao final da descrição, Nicholas franze o cenho e anui devagar, pensativo.

_ Por que você vem aqui, Liora?

Novamente outra pergunta desprevenida. Poxa, eu jurava que ele iria me elogiar e bater palmas outra vez!

_ Ué, porque é um bom lugar para se ler um livro.

_ Não, não aqui. Por que você vem ao retiro?

Hesito antes de responder e solto um arquejo. A complexidade da pergunta é muito maior do que supus. É óbvio que já me questionei sobre isso antes, mas eu nunca soube a resposta ao certo. Tudo bem que meu primo Guga chato está se apoderando da minha casa, porém no fundo sei que este motivo não é suficiente.

Talvez seja porque o retiro é um meio de quebrar a minha tediosa rotina, de experimentar algo novo mesmo que esse novo não seja tão bom assim. Talvez eu esteja esperando que em alguma edição algo surpreendente me aconteça, nem que seja uma pessoa que me diga “olá, sempre quis conhecer você! ”

E de repente, estar ali com Nick no meu metro quadrado mais precioso do retiro, me faz pensar que ele é a pessoa quem eu estava esperando inconscientemente por tanto tempo. Mas é óbvio que não irei falar isso para ele.

_ Sou uma pessoa bastante religiosa.

_ Hmm. Bem, antes que me pergunte, só estou aqui por causa da minha mãe. Ela é meio fanática, então acredita que essa doença aconteceu comigo por um motivo divino. Então estou aqui atrás de um milagre, que absolutamente não irá acontecer – Ele fala com um quê de desdém, chutando o terreno e fazendo buracos.

Fico em silêncio, pois não faço ideia do que argumentar. Também não sou muito adepta às crenças miraculosas, no entanto acredito que as coisas não acontecem por acaso.

_ Cacete. Eu tinha tudo, Liora, tudo. Eu era o tipo de cara que as pessoas invejavam. E de um dia para o outro... – Ele solta uma risada fanha e sarcástica. – Me torno alguém que precisa de um ombro para andar.

_ Ei, não menospreze seu ombro – Retruco, em tom de brincadeira.

_ Jamais! Sem você nunca conseguirei voltar – Ele brinca de volta. – Quer saber, vamos checar como anda essa primeira atividade. Meu lado competidor despertou em mim.

_ Mas...

_ Mas o quê?

_ Você não pode... jogar.

_ Ah, mas você pode lindinha.


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