Você aceita ser meu único amigo? escrita por snow Steps


Capítulo 4
Sabor Cereja


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem.
Beijinhos!



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Eu encaro seu olhar escondido por detrás dos óculos escuros, imaginando como poderia me tornar o portal de alguém para o mundo. Parece ser muita responsabilidade para uma pessoa que mal consegue alimentar o gato de estimação.

_ Nick, você deve ser um cara gente boa. Por isso vou logo o avisando que as chances de eu frustrá-lo são gigantescamente enormes...

_ Não me importo. – Ele interrompe, resoluto.

_ Ah... certo – Deixo escapar um arquejo, preocupada com o destino daquela conversa. – Mas como serei os seus olhos? Já deu para perceber que descrições não são a minha praia...

_ Talvez você não seja tão ruim quanto pensa. Quer ver? Vou lhe fazer uma pergunta fácil desta vez. – O garoto enfia as mãos nos bolsos e formula uma expressão pensativa. – Já sei. Descreva-me como você é.

Não consigo conter uma risada fanha diante do pedido. Talvez me descrever seja a pior narração de imagem que ele possa ouvir em toda sua vida. Como irei explicar minha face chupada? Os olhos castanhos comuns e com olheiras de nascença? Pelo menos não preciso mais falar que tenho uma pinta...

_ Como eu sou? Bem, nem sei por onde começar. Não que eu tenha muito a dizer, para ser sincera nada em mim chama atenção...

_ Mas chamou a minha. O que é algo bem difícil atualmente.

_ Por quê?

_ Porque sou igual ao Steve Wonder, só que não sei cantar.

_ Ah, claro! Dãã – Bato minha mão na testa, evidenciando minha desorientação. Não é todo dia que chamo a atenção de um cara bonito. Tudo bem que ele é quase cego, mas está valendo, né?

_ Vamos, inicie pela sua boca. Eu gosto de bocas. Femininas, é óbvio.

_ Você é mesmo inconveniente! – Brinco.

_ Eu diria que sou franco.

_ Minha boca é... uma boca, sei lá. Meus lábios são um pouco espessos, e preciso usar bastante gloss para mantê-los hidratados.

_ De qual sabor você prefere?

_ Eu gosto mais de cereja.

_ Hmm... seu beijo deve ser gostoso – Ele comenta, fazendo com que minhas bochechas peguem fogo no mesmo instante. Que atrevido!

_ Ah... talvez. Não posso afirmar porque eu... tipo... nunca me beijei – Contraponho embaraçosamente, aguentando o riso que me afrouxa.

Tenho vontade de mergulhar minha cabeça numa sacola e gritar bem alto de tanta vergonha! Como se já não bastassem os comentários indecorosos, o garoto ainda sorri todo cheio de si, sabendo o efeito que suas palavras surtem. Para me salvar dessa situação, Rebeca e outras duas amigas chegam à entrada do salão de jogos exclamando:

_ Finalmente achamos você!

Beca o abraça com vontade, e os dois se desequilibram e quase caem.

_ Vamos rápido, está quase na hora da missa! Se perdemos o início a dona Gina manda a gente ajoelhar no milho – Acautela uma das meninas.

_ Eu só estava batendo um papo com a minha nova amiga... desculpa, mas qual é mesmo o seu nome? – Nicholas me pergunta, passando o braço pelos ombros de Beca.

_ Liora, não é? – A cristã mais popular responde antes de mim, com um semblante de quem ainda tenta me reconhecer.

_ Sim.

_ Diferente, gostei. Vem com a gente, Liora? – Nicholas oferece, deixando-me sem muitas escolhas.

_ Tá – Apenas digo.

E assim vou para a minha primeira missa da noite acompanhada dos cristãos mais descolados do retiro JC. A sensação é de que sou uma estranha no ninho, pois cada palavra que eu fale pode ser um passo em falso, fazendo com que os outros do bando me rejeitem. Mas confesso que é legal andar ao lado da Rebeca: me sinto num papamóvel com o direito de acenar para qualquer desconhecido.

Sentamos na primeira fileira da igreja, praticamente de frente para o púlpito onde os pais da Rebeca finalizam os últimos preparativos para o começo da cerimônia. Nick está sentado à minha direita, e posso ouvi-lo murmurar:

_ Beca, você poderia me descrever como a luz do sol atravessa os vitrais?

Ouço Rebeca pigarrear, ganhando tempo para formular a resposta.

_ Bem, o sol bate nas cores dos vidros e elas refletem no chão, parecendo luzes de balada.

_ Obrigado.

Ele se vira discretamente para mim e sussurra:

_ O que eu disse?

Sem dúvida, esta foi a melhor missa da noite que já presenciei e isto se deve enfaticamente ao canto dessincronizado do Nick. Como ele não conseguia ler as letras das canções, sua estratégia se baseava em esperar os outros cantarem primeiro para depois repetir a frase. Obviamente ele aproveitou a situação para tirar sarro, soltando cada agudo estridente fora do ritmo que fazia a igreja inteira rir e a dona Gina se contorcer no seu lugar. A cara dela de ódio foi simplesmente impagável!

No entanto não consegui sentar ao lado dele durante o jantar, pois a mesa da Rebeca é bastante disputada. Acabei comendo uma sopa esquisita com gosto de fumaça numa mesa onde tinha somente caras viciados em vídeo-game. Depois nós fomos direto para os dormitórios, pois precisamos acordar bem cedo se quisermos chegar a tempo de tomar café da manhã.

Visto uma blusa antiga do Ramones e um shorts de flanela, mergulhando para debaixo do cobertor quentinho. Espero as luzes do alojamento desligarem, e de pouco a pouco o burburinho das conversas se rende ao sono. Como o de costume, ligo para mamãe antes de dormir e conto a ela sobre os acontecimentos do dia.

_ Oi mãe – Cochicho debaixo do travesseiro que abafa minha voz.

_ Oi meu amor! Como você está? – Ela indaga num tom sonolento do outro lado da linha.

_ Vou bem.

_ Leu bastante hoje?

_ Não muito...

_ Ai, que bom! Quer dizer, o que houve?

_ Nada demais. Eu tive um mal-entendido com um garoto, porém acabamos nos conhecendo e conversamos bastante. O nome dele é Nicholas, ele é bem maneiro.

_ Isso é maravilhoso!

_ E ele é cego.

_ Ah... oh, coitadinho.

_ Ele me pediu para ser sua narradora de imagens.

_ Uma o quê?

_ Narradora de imagens. Eu vou descrever o que ele não pode ver. Tipo, coisas que somente a imaginação pode captar.

_ Hmm... que bom filha, parece ser... interessante.

_ É. Não sei. Talvez a gente nem se fale mais.

_ Por quê?

_ Ele tem outros amigos mais divertidos do que eu.

_ Ei Liora, você precisa parar de se rebaixar tanto. Amanhã tente puxar assunto com o rapaz. Aposto que esse Nicholas lhe dará atenção, se ele for realmente maneiro.

_ Pode ser. Preciso desligar, mamãe.

_ Tudo bem, amor. Tenha bons sonhos.

_ Você também.

Desligo o celular e cruzo as mãos sobre o peito, encarando o estrado da cama superior do beliche. Penso em como o dia foi completamente surpreendente e em como gostaria de conhecer mais sobre o Nick. No entanto, preciso me conformar com a possibilidade de que amanhã poderá ser um longo dia de leitura à sombra do carvalho.

Olhando de um ângulo positivo, ao menos tive alguns minutos de fama ao lado da cristã mais querida do Retiro JC.


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