Cinza escrita por Gerome Séchan


Capítulo 1
Cinza


Notas iniciais do capítulo

Este não é um conto de fadas com um final feliz.



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Desde que se entendia por gente, Luminäe sabia que não era uma fada comum.

Ela nascera da magia imbuída no sorriso de um bebê, assim como todo espírito luminoso que encarnava neste mundo. No caso das fadas, as protetoras das crianças eram uma mescla de inocência e bondade materializadas em carne e osso. Os pares de asas as classificavam dentre os raros espécimes do mundo mágico capaz de voar. Seu tamanho diminuto as tornavam invisíveis aos mortais, como toda fada deveria ser permitindo-lhes esconder-se do mal natural que espreitava este mundo.

Dentre as fadas, Luminäe era a única que quase nunca sorria. E ao alcançar a idade adulta, dentre todas as cores que ela poderia escolher para confeccionar suas roupas, ela optara pelo tom comumente rejeitado por suas irmãs: cinza. Nem ofuscante como o branco, nem obscuro como o crepúsculo; uma cor intermediária, capaz de tornar-se mais clara ou mais escura dependendo da quantidade de luz que nela se despejasse.

Durante a infância, Luminäe demonstrara a alegria típica de uma fada. Seu fascínio por tudo que era novo ecoava os sentimentos de suas irmãs. E seu amor pela criação e sua rica diversidade lhe rendera seu nome: Luminäe, a luminosa, pois seu sorriso era o mais radiante de todos que as Fadas Superioras já viram em seus muitos milênios de existência.

Mas desde que atingira seu primeiro centésimo de vida, a idade em que se entrava na vida adulta e se assumia as primeiras responsabilidades como guardiã das crianças, Luminäe passou a ser observada de perto devido à sua personalidade peculiar.

Seus gostos não eram os gostos das suas irmãs. Seus hábitos eram estranhos para uma fada. A estação preferida de suas irmãs era a primavera. Até a chegada do verão, Luminäe se recolhia durante o desabrochar das flores e se refugiava nos espaços ocos das árvores, esperando o outono chegar. Com suas folhas cor de fogo e os galhos quase secos, ela celebrava a sobriedade da estação, que demarcava o fim da alegria da juventude e o início da maturidade do espírito.

As fadas trajavam-se com tecidos multicoloridos, ostentando matizes que refletiam os tons do arco-íris, uma celebração da diversidade da vida. Luminäe enroscava uma simples echarpe vermelha ao redor do pescoço, a cor menos preferida de suas irmãs, para quebrar a monotonia do cinza e do marrom, as cores de seu sobretudo e de seu vestido. Vermelho, a cor do sangue que os homens derramavam em batalha, que as mães expeliam de seus corpos ao dar à luz, a cor que precedia a violência, a ira e a revolta; vermelho, a cor maldita, que prenunciava a morte; o fim da vida, o fim de tudo.

Luminäe logo se enjoava da companhia festiva e espontânea das amigas e encontrava uma maneira de se afastar. Em seu íntimo, ela julgava suas irmãs como ingênuas, com seu jeito irritante de rir das coisas mais insignificantes como se as conhecessem pela primeira vez. Certo, um dia ela também fora inocente. Mas não se podia permanecer uma criança para todo o sempre. Essa era a verdade que Luminäe bem conhecia, e que muito lhe angustiava, pois no mundo acima das nuvens, onde as fadas viviam, ela não tinha com quem compartilhá-la.

Reclusa, hermética, indecifrável. Não demorou muito tempo para Luminäe ganhar a alcunha de fada cinza de suas amigas, não somente pelos trajes que vestia, mas pela sua melancolia e introversão naturais.

Durante o cair da noite, os poucos espíritos de luz que espreitavam nos recônditos da floresta assistiam a fada cinza descer dos céus feito uma estrela cadente e repousar em uma árvore distante onde pudesse ficar com seus pensamentos. Nesses momentos solitários, muitas coisas passavam pela cabeça de Luminäe, e cada pensamento conduzia a perguntas sem resposta. Por que as fadas viviam para sempre e os humanos morriam passadas poucas décadas? Por que a magia havia sido separada do mundo dos mortais? Por que a eles era tão difícil conseguir qualquer coisa nesse mundo, enquanto que para uma fada, bastava acreditar que seu desejo se tornava realidade?

Uma vez, sua melhor amiga lhe perguntou no que tanto refletia. Pois Luminäe costumava manter-se calada a maior parte do tempo.

— Porque eu não tenho certeza de nada. E isso me deixa aflita. –ela respondeu em voz sincera- Diga-me, Myrna, você não estranha que nós sejamos tão diferentes dos mortais? Aqui no mundo acima das nuvens, tudo é perfeito. Temos tudo de que precisamos. A magia se garante de atender a todos os nossos desígnios. Mas lá embaixo, os homens se matam pela menor das necessidades. Basta um pequeno detalhe de suas vidas dar errado que eles se desesperam e se voltam uns contra os outros, feito animais!

— Esta é a ordem do mundo. Não entendo o que há de preocupante nisso. –ela respondeu com naturalidade.

— E por que a ordem tem de ser assim? Por que não é de outro jeito?

— E de que outro jeito seria?- ela indagou com igual indiferença.

Naquele momento, Luminäe sentiu sua garganta travar.

— Porque...porque...talvez não era para ser assim. –foi tudo que ela conseguiu responder.

— Mas do que você está falando? Do que você tanto duvida? Ora, vamos, Luminäe. Pare de perder tempo pensando nestas coisas. Celebre sua existência e a beleza da vida. Não desperdice seus pensamentos com as atribulações daquele mundo transitório.

Mas para onde quer que olhasse, Luminäe via o contrário da beleza. Imperfeição, caos, injustiça e corrupção manchavam o quadro da realidade. Abaixo das nuvens, o mundo estava em um perpétuo desequilíbrio.

Ela se castigou por não conseguir expressar o que seu coração sentia e passou os próximos dias tentando colocar em palavras tudo que via de errado na ordem natural das coisas.

...

Muitas vezes a Grande Fada ordenava a Luminäe que cumprisse determinada tarefa e a aprendiza lhe fazia perguntas incômodas, querendo saber o por que, quem, onde e como sua missão afetaria os mortais. E muito embora a Grande Fada lhe explicasse com toda paciência do mundo, ainda assim a Luminäe lhe parecia que as respostas não eram convincentes, como se a fada cinza desconfiasse de que lhe escondiam uma informação vital de propósito.

— Não cabe a uma fada questionar as ordens de suas superioras. – disse a Grande Fada com gravidade - Tudo que fazemos é por uma razão. Um dia, se você for considerada elegível para comandar outras fadas, então a você serão revelados meus motivos.

A chance de ser promovida pareceu acender uma faísca em seu espírito e Luminäe prosseguiu viagem sem pronunciar mais uma única palavra. Pois a Grande Fada via potencial em Luminäe. Se ao menos ela conseguisse desvendar o segredo que havia convertido uma fada tão luminosa, cheia de promessa em um espírito fechado e distante.

Enquanto cumpria suas ordens, os pensamentos da fada cinza sempre se voltavam para os mortais e sua breve existência, permeada de pequenas alegrias entremeadas com longos períodos de sofrimento...

Quantas vezes a Grande Fada lhe avisou que não interferisse nos assuntos dos mortais? O mundo deles não é como o nosso, ela dizia.

— Nossa magia pertence ao nosso reino, e os poucos que tentam invocá-la, contrariando as leis da natureza acabam tendo um final trágico.

Mas Luminäe se cansava das mesmas explicações batidas, que no fundo não esclareciam nada, apenas cerceavam seu pensamento. Pois quanto mais ela viajava para o mundo dos mortais, mais a fada cinza se convencia de que a certeza que ela e suas irmãs detinham sobre como o mundo era feito e as verdades que elas cresceram ouvindo das Fadas Superiores traduzia muito pouco a respeito do que suas viagens à superfície do mundo lhe diziam.

E foi durante uma de suas buscas por um lugar isolado que ela testemunhou uma das transitoriedades do mundo mortal e que terminou por mudar seu destino.

...

Do alto das nuvens, enquanto retornava ao reino das fadas ao voltar das Terras Ermas, Luminäe avistou uma estrela cadente descer à superfície, tão minúscula que só poderia ser uma de suas irmãs. A não ser que seus sentidos lhe enganassem, o diminuto astro possuía um distinto brilho dourado, como só poderia haver um no mundo...

Decidida a solucionar aquele pequeno mistério, a fada alterou seu plano de voo e deixou-se planar até ficar embaixo das nuvens, rumando em seguida numa viagem ao mundo mortal. E com isso, violou a primeira regra dourada do código das fadas: jamais visitar outros planos sem ordem direta da Grande Fada.

Escondida no interior de um tronco, Luminäe espionou um pedaço do diálogo entre a fada e o que ela reconheceu pela voz cansada e o timbre grave como sendo um homem já na meia idade, talvez um dos camponeses, que envelheciam mais cedo devido a uma vida de incessantes trabalhos braçais.

— Bem sabes que não posso fazer mais do que convencer o duque a adiar a idade de recrutamento. Sinto muito; deves se preparar para a hipótese de seu filho ser obrigado a combater na guerra.

Luminäe observou a Grande Fada se distanciar e deixar o homem para trás, que lutava para não chorar, apoiado em seu cajado. A visão daquela figura solitária aos prantos, arfando e soluçando na vastidão da noite lhe causou uma pontada de dor no coração. Por um instante, à fada pareceu que a Grande Fada havia sido de uma indiferença cruel com relação ao problema do homem.

Luminäe se aproximou daquele retrato do abandono e revelou sua presença. O homem reagiu esperançoso, pensando que a Grande Fada havia retornado, mas o brilho de seus olhos diminuiu quando ela revelou ser outra fada.

Ao terminar de contá-la de sua miséria, o homem implorou que ela o ajudasse. Luminäe prometeu retornar dentro de dois dias, quando a Grande Fada haveria conversado com o recrutador do duque.

Eis que no prazo determinado ela obteve sua resposta e assistiu o homem sucumbir a uma tristeza inconsolável enquanto despedia-se do filho no último dia em que passariam juntos.

...

Nos dias que se seguiram, a fada sugeriu um plano.

As crianças eram mantidas em um acampamento militar, não muito longe do vilarejo. Se os pais partissem de tarde, alcançariam o local de madrugada, quando os soldados estariam dormindo. Com um pouco de magia do sono, ela neutralizaria aqueles que mantinham vigília e as crianças seriam libertadas.

Um grupo de homens e mulheres reuniu toda a coragem que possuía e pelas trilhas da floresta eles seguiram, deixando-se guiar pelo pequeno ponto de luz. Como previsto, havia somente uma vigília nas altas horas da madrugada. Um por um, Luminäe depositou seu pó do sono na fronte dos soldados insuspeitos, fazendo-os sucumbir a um doce sono. As crianças foram localizadas, mas quis o destino que um destacamento do exército visitasse o acampamento naquela mesma hora.

Ao se deparar com o crime em andamento, o general ordenou a prisão imediata dos camponeses. Impotentes contra o representante do duque, eles se deixaram capturar e foram amontoados em jaulas. Seus olhares acuados se moveram em direção à fada, que assistia com horror a partida das carroças, conduzindo os inocentes à prisão.

...

Procurando reparar o dano que causou, a fada não desistiu. Luminäe abrigou-se sob o manto de invisibilidade, conferido a toda fada desde seu nascimento e procedeu para as catacumbas, onde os camponeses eram detidos. Muitos recobraram a esperança ao ver que ela não os havia abandonado. Mas alguns reagiram com amargura à sua chegada, reclamando que fora a fada quem lhes condenara a um destino pior.

O homem a quem ela havia ajudado lhe perguntou sobre o destino de seu filho. Relutante, ela confessou que as crianças foram transferidas para um segundo acampamento, próximo da frente de batalha. O homem caiu em desespero novamente, lamentando-se de não poder trocar a própria vida pela do menino.

Seu pedido provocou uma segunda pontada de dor em seu coração. Mas o que uma simples fada poderia fazer? Mesmo sua magia era limitada...

Eis que a solução lhe sobreveio. Contudo, o preço do uso de sua magia teria consequências imprevistas. Se os camponeses traíssem sua confiança, o episódio teria uma conclusão desastrosa.

O pranto do homem e seu desejo de se sacrificar pelo bem estar do filho de peito aberto pesaram em sua consciência e Luminäe arriscou-se a libertar aqueles homens e mulheres, conferindo-lhes uma segunda chance para salvar seus filhos. E através de seus atos, ela violou a segunda regra dourada do código das fadas: jamais interferir nos assuntos dos mortais sem autorização das Fadas Superioras.

Luminäe enfeitiçou os guardas no caminho e conduziu os camponeses à sala das armas, onde eles trajaram armaduras e muniram-se de espadas, lanças arcos e aljavas. A seguir, eles foram levados aos estábulos, onde mataram os poucos guardas que estavam de vigia. Naquela mesma noite eles partiram para o novo acampamento, na esperança de impedir o pior de acontecer.

...

Ao chegar no acampamento, eles descobriram que as tropas já haviam marchado. Luminäe utilizou-se de sua visão superior e localizou seu paradeiro. Para seu medo, a primeira batalha já havia sido travada.

O camponês a quem ela havia se afeiçoado ainda a incitou a procurar pelas crianças. Elas estavam bem? Onde o duque as havia escondido? Luminäe fez de novo uso de seus poderes e desejou naquele momento nunca ter sido agraciada com o dom da visão.

Dezenas de cadáveres diminutos se amontoavam com o de homens adultos. A visão macabra estendia pelas planícies sem fim, misturando-se ao barro da terra e ao sangue que corria pelos sulcos.

Os camponeses, revoltados com a indiferença do duque às vidas de seus filhos, se rebelaram e voltaram suas armas contra ele numa tentativa de assassiná-lo. O bando cavalgou até a fronteira, decidido a confrontar o nobre.

Como os assuntos dos mortais nunca passavam despercebidos pelo mundo espiritual, as Fadas Superioras vasculharam a superfície atrás de Luminäe. Eis que a Grande Fada e mais duas irmãs desceram ao mundo e interceptaram o grupo armado minutos antes de um massacre ter início.

A Grande Fada foi até os camponeses com suas irmãs, tentando convencê-los a buscar uma solução pacífica. Ela exigiu de Luminäe que a ajudasse a falar com eles, que os despertasse de seu estado de ira. Mas a fada achava isso de uma hipocrisia sem tamanho que se recusou a colaborar. Sob o olhar incrédulo de suas irmãs, ela se afastou e planou acima das cabeças dos homens e mulheres e despejou o restante de sua magia sobre suas figuras. Agora, eles teriam uma maior chance na batalha.

E com a ação quer seria sua última antes de suas irmãs a encontrarem e a impedirem de realizar seu sacrifício, ela violou a terceira regra dourada do código das fadas: jamais subverter a magia para dar poder a um mortal.

O que se seguiu foi um banho de sangue sem proporções. A vitória dos camponeses parecia possível minutos após o confronto começar. Porém, nenhum bando armado se comparava ao preparo de um exército treinado. Apesar de correr pelo campo, piscando pelo ar como um vagalume veloz, Luminäe era incapaz de curar todos os camponeses por conta própria. Aqueles que caíam não voltavam a se levantar. E os que resistiram até os instantes finais não aguentaram e terminaram se entregando ao destino inevitável.

O camponês de meia idade que fora o primeiro a falar com ela lhe agradeceu por tudo que a fada fez e lhe deu um sorriso sincero antes de dar seu último suspiro.

O duque deu as costas ao campo encharcado de sangue e cavalgou para longe. Na mesma hora, as fadas voltaram sua atenção para Luminäe, que chorava perante a figura inerte do falecido.

O olhar de decepção da Grande Fada foi respondido por ela com um de indignação. Como poderia a Grande Fada nada ter feito pelo camponês quando ele a procurou? Mereciam aqueles infelizes assistirem seus filhos morrerem pela ambição de um homem igual a eles em carne e espírito? Mas a vergonha se seguiu e Luminäe baixou o olhar, temendo em seu íntimo ter se condenado com seus atos.

A fada se deixou conduzir de volta ao mundo acima das nuvens, ciente de que sua pequena aventura violara os três preceitos sagrados da ordem das fadas. Mas o maior crime de Luminäe ainda haveria de ser julgado.

...

Trancafiada na copa de uma árvore em uma cela feita de mithril que magia nenhuma no mundo poderia abrir, ela aguardou dias e noites em solidão pelo dia do julgamento. Nenhuma de suas irmãs veio visitá-la. Ninguém veio prestar-lhe o menor dos consolos.

Após dias que se arrastaram feito semanas, sua cela foi finalmente aberta e a fada cinza, conduzida ao tribunal. De cada galho espreitavam as fadas com olhares acusatórios e hostilidade velada. Um pensamento reconfortante a acometeu ao se dar conta de que a árvore era a mesma onde ela costumava meditar.

Ela se deparou com os membros do Conselho Jurídico e teve um momento de dúvida; teriam as Fadas Superioras escolhido aquela árvore por saber que era seu esconderijo favorito? Se sim, Luminäe não podia deixar de comparar tamanha crueldade à perversidade que elas acusavam o pior dos humanos de cometer.

A Fada Mestre se pronunciou, fitando Luminäe com ar acusatório.

— Na terceira passagem da lua minguante pelos céus deste fim de outono, o Conselho se reúne para julgar as ações de Luminäe, acusada de transgredir as três leis sagradas da ordem das fadas.

A Fada Mestre então enumerou os crimes para os presentes, e suas palavras causaram consternação geral. Luminäe mantinha os olhos baixos, sentindo aquele olhar acusatório penetrar-lhe o campo astral feito uma agulha, que se multiplicava pelos rostos da multidão sentada nos galhos e a alvejava de todas as direções.

— Partiste ao mundo dos mortais e conversaste com um humano, fazendo-lhe promessas que não lhe cabiam fazer. Induziste mais humanos em seguida para tomar ações que os colocaria em perigo e usaste tua magia para seguir adiante com teus planos. Ainda sem medir as consequências de teus atos, interferiste em um conflito entre mortais do qual tu era a causa principal e incitaste a matança de inocentes sob o pretexto de ajudá-los.

Um burburinho correu entre a multidão e Luminäe sentiu pela segunda vez a indignação crescer dentro de si, convertendo-se em revolta e depois em raiva. Mas ela nada declarou.

A Fada Mestre prosseguiu seu relato.

—E como se não bastasse, te voltaste contra a Grande Fada quando ela tentou apaziguar um derramamento de sangue. Teus atos foram impensados, tuas ações contradisseram os princípios de toda a filosofia de nosso mundo. Luminäe, o que tens a dizer sobre isso?

A fada mal conteve um tremor involuntário quando ergueu o rosto em desafio. Suas mandíbulas pareciam coladas, de tão difícil que era falar sob intenso escrutínio. O milagre de palavras saírem de seus lábios se deu graças ao seu coração revoltoso.

— Eu visitei o mundo mortal; não nego. Venho fazendo-o há muitas noites, como forma de fugir da luz ofuscante do nosso mundo. Pois é nesses momentos de solidão que consigo escutar minha consciência e adquirir um pouco de sabedoria, o que me é impossível nas conversas com minhas irmãs. – ela começou, admitindo seus hábitos reclusos.

— Mas eu nunca interferi no mundo dos mortais. Quando segui a Grande Fada, não sabia o que encontraria. A visão de uma fada conversando com um humano atiçou minha curiosidade... e preocupação.

— Eu...ouvi o diálogo. Eu ouvi a Grande Fada ignorar seu clamor por ajuda. E a visão daquele homem aos prantos por seu filho, certo de que o perderia na guerra... ele estava sozinho. O duque havia levado seu filho. Ele não tinha mais ninguém a quem recorrer. Eu não podia abandoná-lo.

O Conselho ouvira tudo no mais absoluto silêncio.

— Por que você não retornou e trouxe o problema ao Conselho? Por que agiu sozinha?

Luminäe encarou a Grande Fada, por quem ela nutria pouca simpatia após o episódio sangrento.

— Porque você havia recusado o pedido do homem. Você escolheu dar as costas ao problema dele.

Um burburinho percorreu os vultos que espreitavam encobertos pela sombra dos galhos.

— E não lhe ocorreu que havia uma razão por trás da minha recusa, Luminäe? –a Grande Fada perguntou, e havia um leve tom de reprovação em sua voz.

— Que razão há em deixar um homem perder seu filho ainda criança para uma guerra? –ela argumentou.

— Não cabia a uma fada ajudá-lo naquele momento. Aquele homem não seria o único a sofrer pela decisão do duque. A ajuda devida teria vindo em um momento posterior, quando o duque pedisse proteção espiritual antes da batalha. Naquele momento, eu teria interferido e o aconselhado que poupasse as crianças e evitasse um massacre ainda maior.

A ideia soava a Luminäe como irresponsável.

— E o que lhe dá tanta certeza de que o duque lhe daria ouvidos?

— Os homens sempre ouvem sua consciência nos momentos mais incertos. – a Grande Fada respondeu. De sua parte, Luminäe mal acreditava no que estava ouvindo.

— Você é uma fada. Não um demônio poderoso, capaz de garantir-lhe a vitória na guerra. Se o duque não tivesse a intenção de sacrificar os filhos dos camponeses, então jamais teria os recrutado em primeiro lugar!

Novamente um burburinho correu pela multidão.

— A solução que você ofereceu aos camponeses não os conduziu a um destino melhor. A atitude correta seria ter esperado a decisão do duque render frutos e então aconselhá-lo a fazer justiça para os camponeses, e não incitá-los à revolta, Luminäe. Muito menos matar para conseguir o que queriam. – a Grande Fada disse do alto de sua sabedoria.

Mas para a acusada, suas palavras continham o inverso da sabedoria.

— Mas que justiça é essa que condena um homem a sofrer por tentar reparar um crime que outros cometeram contra ele? Acaso foi ele o causador de toda essa injustiça? Não! Mas ele sofreu pelos atos cometidos em nome do amor! O amor pelo filho! Deveria eu como fada ignorar seu pleito de ajuda e dar-lhe as costas? Caberia a qualquer uma de vocês aqui? – Luminäe se virou para a multidão com expressão aflita.

— Silêncio, Luminäe! Não cabe a ti questionar a sabedoria do Conselho! Te precipitaste ao tomar uma decisão sem consultar suas irmãs. Acaso não sabes que uma fada não é mais do que uma emissária de um desígnio superior? Que todas as nossas ações não devem interferir na ordem natural das coisas?

Mas quanto mais a Grande Fada se pronunciava, menos Luminäe conseguia conter as palavras que queimavam em sua garganta, palavras que haviam aguardado a chance de serem proferidas.

— É da ordem natural das coisas deixar um homem bom morrer? É necessário assistir seu sacrifício sem fazer nada para que o mundo recupere seu suposto equilíbrio perfeito?

— De um ato de sacrifício nascem atos de bondade. O mal é combatido de muitas formas, as quais muitas delas os mortais desconhecem, e continuarão a desconhecer até que tenham reencarnado neste mundo e aprendido sobre o grande mistério da existência. – a Fada Mestre se limitou a dizer — E se ele fosse um homem bom, como você o vê, Luminäe, não teria recorrido à morte de um inocente para se salvar. – ela complementou.

— Um homem desesperado o faria. Pois as coisas que eu vi nesse mundo quebrariam o espírito até do mais puro dos homens. – argumentou Luminäe.

Fez-se uma pausa e a Fada Mestre se pronunciou uma segunda vez.

— Chega. Essa discussão perdeu o sentido. Não aceitas a sabedoria do Conselho, Luminäe. Não admites que podes estar errada. Ao contrário do que crês, não somos cegas. Sua concepção de mundo não é superior à nossa. É uma pena que não alcances esta verdade. Talvez a sua pouca idade lhe impeça de enxergar a distinção da natureza do bem e do mal com clareza. Mas o fato permanece que cometeste um crime imperdoável.

Foi com profundo pesar que a fada cerrou os olhos e caiu em silêncio, baixando o rosto. Ninguém queria ouvir sua versão dos eventos. A Luminäe não restou alternativa senão aceitar o julgamento e ouvir sua sentença.

— É com pesar que o Conselho das Fadas chega à conclusão de que não há nenhuma maneira de reparar os danos que você cometeu, Luminäe. Seus atos causaram um desequilíbrio no plano espiritual que repercutirá no mundo mortal; neste mesmo instante, os efeitos já estão sendo sentidos, de maneiras que somos incapazes de prever. É da opinião deste Conselho que não resta sombra de dúvida da culpabilidade da acusada, que agiu de forma leviana e impulsiva, sem pensar nas consequências de seus atos, um erro que ela se recusa em admitir. O Conselho ordena o cumprimento das três sanções a Luminäe pela violação de nossas leis.

A estas palavras, Luminäe ousou erguer olhos acusatórios à Grande Fada, mas nada disse. Pois por bem ou por mal, a experiência no mundo mortal havia lhe concedido maior sabedoria e Luminäe agora entendia por que era impossível às fadas compreenderem plenamente a natureza de suas ações.

A primeira guarda avançou em sua direção e lhe tomou a varinha da mão com um gesto brusco.

A segunda avançou em seguida e arrancou o brasão da Ordem das Fadas de suas vestes com força, rasgando suas roupas.

A terceira, ela nunca viu se aproximar, mas sentiu a dor de ter suas asas arrancadas com dois puxões violentos.

Luminäe manteve o rosto abaixado, sentindo a essência que circulava em sua frágil forma jorrar pelas feridas. Ela cerrava os dentes, controlando-se para não gritar e lutava para não sucumbir à dor.

— Você não é mais uma fada. Não é mais um espírito de luz, não possui mais lugar em nosso mundo. Seu banimento durará até que sua nova casca mortal expire e sua essência encontre o portal das almas. De agora em diante, Luminäe, deves procurar o exílio e trilhar o mesmo caminho daqueles a quem admira tanto em busca do seu próprio destino. Quanto a nós, caberá às fadas trabalhar daqui para frente para desfazer os danos que causaste por conta de tua teimosia.

...

Sinto o vento correr pelos meus cabelos e eles se agitam em frente ao meu rosto, acariciando minhas faces. Minhas mãos se agitam em um gesto fútil, procurando algum galho para se segurar. Mas não há mais nada nesse mundo capaz de impedir minha queda.

Minhas costas colidem com força contra o solo. As folhas de outono amortecem o impacto e me protegem do pior. Ainda sinto minhas mãos e pés. Bom. Elas não conseguiram me quebrar.

As folhas prendem em meu cabelo e tento afastá-las com um feitiço, mas a magia não reage ao meu comando. Ativo o feitiço de novo. Nada acontece.

— Até minha magia, meu dom de nascimento, foi tirada de mim? – murmuro assustada.

Ergo-me do chão estremecendo. Eu só conhecia o mundo dos mortais da perspectiva de uma fada; protegida pelo meu poder dos males que os atormentavam. Fome, tristeza, sofrimento, perda, morte. Todas essas coisas agora fariam parte da minha vida, do meu dia a dia.

Que outros terrores me aguardavam no caminho?

Lanço um olhar angustiado à copa da árvore, onde espero ver o mundo que deixei para trás uma última vez. As luzes se apagaram; o galho está vazio. A mim me é negada até mesmo uma despedida final.

Resta-me dar meu último adeus à arvore que me acolheu em meus momentos mais solitários. Este será o único consolo que levo comigo em minha jornada desconhecida.

Com um suspiro e sem nada para me proteger dos primeiros ventos do inverno a não ser meus braços, ouço o estalar das folhas de outono enquanto caminho, como se elas também se despedissem de mim. Abandono a floresta e sigo em direção incerta, não tendo nada além de minha consciência imperfeita para me guiar.

Mas na realidade, eu não tenho nada a temer.

Pois eu vi a verdade deste mundo, e ela é colorida com uma paleta composta somente de escalas de cinza.

Como poderia um guardião da luz proteger os habitantes deste mundo? A sobrevivência em um mundo marcado pela dualidade, onde bem e mal são relativos, em que o olhar do interlocutor capta somente a superfície da realidade, é ameaçada por uma moralidade orientada somente pelo bem e pela verdade.

Como pode haver justiça para os inocentes, os verdadeiros inocentes, da malícia que se traveste de verdade? Como protegê-los da perversidade daqueles cuja busca da própria vantagem é seu único princípio de vida?

Uma missão impossível para uma fada, que só conhece a pureza das crianças. E enquanto resguardam sua inocência, os homens crescidos carecem de proteção. Pois aos homens não é designado nenhum guardião espiritual. Somente a fé em um poder superior mantém as Trevas afastadas e salvaguarda o sono dos justos.

Talvez O Grande Criador tivesse essa intenção para mim. Talvez ele tenha me concebido diferente para eu melhor cumprir meu dever. Ou talvez eu deva descobrir sozinha a verdade. Até o último de meus dias, eu nunca saberei ao certo.

O homem é o lobo do próprio homem. Para que o mundo não vire uma terra habitada somente por feras, eu protegerei os mais fracos, os mais honestos, os mais ingênuos, os mais crédulos. Ensinando-lhes não a crer que a realidade seja um conto de fadas, mas que para sobreviver, eles devem conhecer o bem e o mal em igual proporção, e no fim, aprender a proteger a si mesmos e seus semelhantes.

Se o custo de lutar pelos inocentes em um mundo com uma moralidade cinza é perder minhas asas, então que assim seja. Pode levar anos, décadas, séculos, mas um dia, quando eu tiver iluminado um número suficiente de homens e o amor possa prevalecer nesse mundo imperfeito, uma voz em meu interior me diz que eu finalmente encontrarei um novo jeito de voar.


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Notas finais do capítulo

O nome da fada, Luminäe, deriva de luz em latim. Assim como Lúcifer, ela é portadora de um tipo diferente de luz – no sentido de conhecimento e sabedoria, ou fogo do espírito, como o esoterismo chama -, que não condiz com a luz do mundo das fadas. E por seguir sua própria filosofia de vida, sua própria luz, ela é condenada, assim como Lúcifer foi banido dos céus.



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