O Clã de Descendentes - A Ascensão da Magia escrita por Isaque Arêas


Capítulo 10
O Escritório




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Já fazia quatro dias que o grupo não recebia um sinal e nem tinha ideia de como encontrar a Fada Azul, ou Merlin, ou qualquer traço de magia. Num primeiro instante Bernardo sugeriu que as fadas lançassem outro feitiço como o que usaram para chegar ao Gênio. Elas, porém, recusaram. Primeiramente por não terem um rastro mágico concreto podendo causar uma grande probabilidade de falha. Em segundo lugar, todas foram bem firmes ao dizer que “a mágica sempre vem com um preço” e seja lá qual fosse o preço nenhuma das fadas ou mesmo o Gênio estavam dispostos a pagar naquele momento. Precisavam de mais alternativas, de mais planos e em última instância usariam magia. E por isso permaneceram lá por mais algum tempo.

Ao quarto dia Amanda sentiu um incomodo muito grande enquanto dormia. Acordou diversas vezes na madrugada. Não era problema da cama, ou do quarto, muito pelo contrário, pois seu quarto fora criado especialmente para ela assim como de todos os hóspedes. Sua cama estava macia como uma pluma e o travesseiro parecia uma nuvem, já sua cabeça trovejava. Sentou-se na cama e tentou cantarolar uma de suas músicas. Acabou perdendo o sono. Levantou-se e ia até o grande salão, em um dos corredores havia uma fonte natural onde ela poderia beber água e quem sabe relaxar de sua dor de cabeça.

Andou pelo palácio escuro. Atravessou o corredor dourado parando para observar mais uma vez a decoração de tapeçarias. Ela era fascinada por aquele emaranhado de linhas que formavam desde flores a edifícios. Era simplesmente lindo. Continuou em direção à fonte. Ao chegar, se sentou em seu entorno e levou as mãos para um grande tigre de ouro que se erguia “cuspindo” a água. Levou as mãos à água e à boca. Repetiu o movimento por mais duas vezes. Nada. Molhou a nuca. Repetiu o movimento por mais duas vezes. A dor parecia aumentar. Uma enxaqueca sem comparação.

Levou as mãos à testa e encolheu a cabeça entre os joelhos. Gemia em voz baixa, rezando para que aquela dor fosse embora. Em um movimento rápido levantou a cabeça e à sua frente estava parada a figura sinistra. Os olhos dourados cintilantes. O corpo que parecia feito de gás, mas que ela tinha a sensação de poder tocar. O barulho de sua respiração ofegante. Estava bem à sua frente um lobo fantasmagórico de quase dois metros.

Amanda não expressou reação alguma, apenas seu suor se tornou gelado. Ela não sabia o que dizer. Perdera todos os sentidos naquele momento. O lobo, porém, adquirira todos e alguns mais, pois continuava rosnando em frente a menina que agora assimilava a situação e começava a chorar. Em um movimento rápido correu para um dos cantos do salão da fonte sendo rapidamente seguida pelo lobo.

Atravessou o corredor de onde viera. Tentou olhar para trás para ver se continuava sendo seguida e lá continuava o animal amedrontador. Quando chegou ao grande salão onde costumavam comer e conversar, a menina começou a gritar por ajuda e imediatamente as luzes se acenderam.

O lobo pareceu recuar. Na verdade era como se a luz o ferisse e agora ele estava preso no salão. Tombou para o lado e uivava em agonia se contorcendo. Amanda se afastou e o olhava bem à distância. E de repente o lobo lança um último uivo em agonia e se desfaz em uma nuvem de fumaça.

— O que houve?! — Disse o Gênio chegando ofegante e trajando pijamas.

Amanda ao vê-lo correu para abraçá-lo e não conseguiu dizer nada. Apenas o abraçou e desabou em prantos. O Gênio sem entender o que se passava apenas fez o mesmo. E lá permaneceram abraçados por algum tempo até que Amanda adormecesse no peito do Gênio que a levou para o seu quarto em segurança.

***

Ao acordar no dia seguinte, Amanda seguiu em direção ao grande salão e lá encontrou todos. Espantou-se ao ver que todos olhavam para ela como se ela tivesse acabado de sofrer um acidente. Tomou seu lugar à mesa e pegou uma pêra.

— Amanda... Você está bem? — perguntou Flora.

— Sim... Bem, por que vocês estão me olhando assim?

— Você lembra de ontem? À noite... De madrugada mais precisamente — disse o Gênio.

— Ah sim, nossa, eu tive um pesadelo horrível! Você até estava...

Amanda então caiu em si de que aquilo não havia sido um sonho. O lobo foi real. O ataque que sofrera era real. Tudo aquilo realmente aconteceu.

— Meu Deus... Você estava lá não é?

— Sim, estava — respondeu o Gênio.

— O meu sonho... Vocês lembram? — disse Amanda olhando para as fadas.

— Os lobos? Sim, o que tem? — respondeu Fauna.

— Um dos lobos apareceu ontem. Eu não conseguia dormir de jeito nenhum, então eu fui até a fonte. A dor de cabeça começou a aumentar, então eu levantei os olhos e na minha frente estava um dos lobos do meu sonho. — Amanda fez uma pausa para tomar um gole do café — eu corri e quando cheguei na sala gritei por ajuda e o Gênio apareceu.

— Quando eu cheguei não tinha lobo nenhum... Ele fugiu? Ainda está aqui?!

— Não... Um pouco antes de você aparecer as luzes se acenderam e ele meio que queimou... A luz queimou ele. Foi horrível...

— Você disse que a luz o queimou? Isso não me parece bom... — retrucou Madrinha.

— O que isso significa? — perguntou Khalil.

— Bem, geralmente criaturas que queimam à luz do sol são criaturas das trevas... Espíritos das sombras. Se conseguiram entrar aqui é porque estão rompendo o bloqueio mágico que há no palácio. Talvez aqui já não seja mais um lugar seguro — disse Flora.

— Mas espera, não havia magia na Terra, como esse lobo surgiu? — perguntou Bernardo.

— Está perguntando pra pessoa errada... Lembre-se que eu sei tanto quanto você sobre a magia terrena. Estávamos sem contato com a Terra há cem anos. Não faço ideia do que possa ter acontecido — respondeu Flora — apenas sei que são criaturas malignas.

— Ta e como a gente pode fazer pra fugir deles? — perguntou Amanda enfática.

— Não faço ideia querida... Se eles quebraram a barreira mágica do Gênio com certeza quebrarão a nossa... — disse Madrinha.

— Isso é muito estranho. Ninguém consegue quebrar bloqueios mágicos facilmente. Muito menos criaturas das sombras — disse o Gênio preocupado.

— Então isso nos leva a pensar que ou alguém quebrou o bloqueio ou essa criatura em específico era mais forte — retrucou Primavera.

Ficaram em silêncio por alguns minutos. Comeram e beberam. Na verdade estavam cansados. Não fisicamente, mas daquela situação. Em cinco dias já haviam enfrentado mais problemas do que já haviam enfrentado em toda sua vida... Pelo menos Amanda e Bernardo que estavam há quatro dias longe de casa e de toda a vida que de uma hora para outra deixaram para trás. Apenas estavam exaustos e quando paravam pra pensar nisso ficavam em silêncio; sem reação alguma.

— Ei! — exclamou Primavera rompendo o silêncio — Se lembram da vez em que Aurora caiu do cavalo? Como era mesmo o nome do cavalo?

— Acho que era Sansão. Não me lembro disso... Melhor, qual das vezes? Ela caiu várias vezes — riu-se Fauna.

— Ah, aquela em que ela caiu no riacho. Aquilo foi hilário! Ela acreditou que conseguiria pular por sobre uma rocha que estava à frente. Nós avisamos “Aurora, isso vai dar errado”, mas ela era teimosa. Resultado: caiu dentro do lago. Phillip saiu com ela de dentro do lago e ela ria até perder o fôlego!

— Esse dia só não se compara ao dia em que Phillip tentou fazer uma surpresa pra ela, mas sem querer a Primavera linguaruda contou para ela? Nossa! Tivemos que inventar mil desculpas pra fazer Aurora acreditar novamente que Phillip não escondia nada! — Contou Fauna.

— Eram bons tempos. Tempos de “Felizes para sempre”. Não que fossem felizes sempre... Aurora e Phillip brigavam bastante. Ele gostava de cavalgar e ela era muito melosa — retrucou Primavera.

— Ah, ela era uma amante normal. Só queria atenção — rebateu Flora.

— Que adotasse um cão — Deu de ombros Primavera.

— Às vezes sinto tanta falta dela... Dentre todas as gerações Aurora foi inesquecível — disse Fauna cabisbaixa.

— Tudo bem minha amiga... Eu sinto falta de Ella tanto quanto você — disse Madrinha consolando Fauna.

— E eu de Aladdin — disse também o Gênio.

— O tempo é o amigo mais cruel que um ser eterno pode ter — disse Flora reflexiva.

Os três jovens permaneciam em silêncio em respeito aos sentimentos das fadas e do Gênio.

— O tempo... O tempo... O tempo! — exclamou Flora tendo mais uma de suas ideias.

— O que há com o tempo? — assustou-se Primavera.

— O Gênio voltou a ser o que a natureza dele sempre foi após esse bloqueio se romper! Não percebem?!

Todos olhavam para Flora ainda sem entender onde ela queria chegar.

— Argh! Paciência! — reclamou a fada — Queremos achar Merlin não é? Se o Gênio voltou à sua antiga natureza podemos presumir que Merlin voltou também e qual era sua natureza? Os estudos de magia! Merlin deve estar em seu antigo escritório nesse exato momento!

— Você está deduzindo isso — disse Primavera descrente.

— Você tem ideia de onde ele está? Não. Então eu prefiro arriscar na minha ideia — respondeu Flora firme.

— Acho que é uma boa ideia e pensem bem, não temos mais pra onde ir... Aqui já não é mais seguro. Onde estivermos será melhor do que parados aqui — disse Madrinha.

— E onde fica o tal escritório do Merlin? — perguntou Amanda.

— Camelot! Na Inglaterra! — exclamou Fauna.

— É... Sinto desapontar, mas Camelot não existe... Pelo menos não mais... Eu meio que sou da Inglaterra e posso afirmar isso pra vocês... — disse Amanda cheia de dedos com medo de fazer com que as fadas desistissem.

— Ah, isso nós sabemos querida! Aurora veio depois de Arthur na linhagem inglesa. Camelot já não existe há séculos! Mas podemos ir até onde ficava o antigo escritório de qualquer forma — respondeu Flora.

— E como vamos sair daqui? Vocês tem dinheiro pro avião? — perguntou Khalil.

— Bom, eu até tenho, mas desde que fui levado pra Terra do Nunca estou sem carteira — respondeu Bernardo.

— Isso não será necessário... — Piscou o Gênio.

O Gênio levou os dedos à boca e assobiou. Nisso se escutou um barulho vindo de dentro de uma das salas do palácio e como uma bala um tapete voador surgiu pelos ares rasgando a atmosfera do salão.

— Senhoras e senhores, lhes apresento o Tapete Mágico — disse o Gênio no que o tapete se colocou apoiado em um de seus lados menores e fez uma leve reverência.

— Ai que demais! — gritou Amanda — Meu sonho sempre foi andar nessa coisa!

— Então suba! “Aperte os cintos. Permaneçam sentados com os braços e pernas para dentro” — disse o Gênio tomando a forma de uma aeromoça.

Amanda, Bernardo e Khalil subiram no tapete que começou a flutuar. Ficaram nervosos como se estivessem embarcando num avião pela primeira vez. As fadas começaram a voar juntamente. O tapete então voou tranquilamente pelo corredor até chegar à saída mágica do Gênio. Os três jovens estavam bastante empolgados. Quando a porta mágica se abriu revelando o deserto, o tapete decolou em grande velocidade. E como se estivessem em uma montanha russa os três gritaram fortemente. Voltavam a ser crianças em cima do tapete.

Após as fadas saírem, o Gênio trancou a porta fazendo com que o então palácio se transformasse novamente em apenas um casebre no meio do árido deserto.

***

O tapete estava no ar há algumas horas e os três podiam ver o oceano bem ao longe. Alguns minutos atrás haviam passado por cima de um avião e acharam aquilo maravilhoso, por mais que o frio na barriga os consumisse e várias vezes houvessem apertado as barras do tapete com as mãos. O tapete era retangular e tinha dois metros por um o que fez com que um de cada vez conseguisse se deitar um pouco para descansar. Quando se deitavam sobre a extensão do tapete sentiam o linho macio tocando sua pele e as ondulações que o tecido fazia por conta do vento, no fim das contas era como deitar sobre uma nuvem.

As fadas voavam atrás cochichando sobre antigas histórias e relembrando momentos que viveram com Leah, Aurora, Estevão, Phillip, Ella, Adam, Bela e todos os seus outros afilhados descendentes dos príncipes. Lembraram de momentos bons e divertidos, mas também os conflituosos, como quando Flora encantou a espada de Phillip para que matasse a feiticeira Malévola no primeiro golpe ou quando Madrinha se lembrou de quando sua varinha foi roubada pela mesquinha Lady Tremaine. Mesmo com as más lembranças tentaram se dar esperanças ao pensar que após todas as tempestades surgiu a bonança.

O Gênio era o que ia à frente do tapete. De vez em quando virava para trás e fazia algumas caretas ou piadas que paravam qualquer assunto e davam lugar à gargalhadas, mas seu principal propósito era outro. Após ter seu lar invadido pelo lobo ficou bastante temeroso com a segurança dos outros. Ia à frente para que pudesse guiá-los e a qualquer sinal de perigo estivesse pronto. E também para garantir que nenhum jovem caísse do tapete, principalmente Khalil que costumava colocar a cabeça para fora da barra do tapete com frequência.

Pousaram após oito horas de viagem na cidade de South Cadbury no condado de Somerset na Inglaterra. Por mais que tivessem passado bastante tempo no ar não se sentiam cansados, estavam renovados por conta da emoção que havia sido voar no tapete.

— Agora, se me lembro bem... — disse Flora coçando a cabeça.

— Era por aqui não era? — disse Fauna confusa olhando para vários lados.

Estavam no meio de uma região com muitos campos verdes, um local realmente pacato. Entre todos o mais animado era Khalil por nunca ter visto nada parecido. Bernardo se mostrava mais interessado em procurar um local para ficarem e Amanda olhava em volta respirando o ar inglês que há dias não sentia mais.

— Bom, ali estão as ruínas do castelo — disse Flora apontando para um monte com o que parecia ser uma coluna de pedra arredondada no topo — O escritório de Merlin não deve estar longe.

— Acredito que se seguirmos a estrada encontraremos... O velho até 1910 havia permanecido no mesmo lugar pelo que eu me lembre — disse Primavera enfática — deve estar lá até hoje.

— A loja de velharias, tem razão. Acho que ficava há vinte minutos daqui — disse Fauna.

Antes de partirem, Madrinha os vestiu em novas roupas, agora de acordo com o ambiente. Amanda trajava uma calça jeans com um casaco de lã rosado e botas, pois fazia frio. Os meninos, cada um ganhou também uma calça jeans e blusas abotoadas; Bernardo uma azul e Khalil uma verde, além de um paletó que os deixava elegantes e aquecidos. O Gênio se vestiu com uma jaqueta esportiva e mudou de forma para que escondesse a pele azul, se tornando negro. As fadas se vestiram como velhas senhoras de alta classe, cada uma das três com vestidos de acordo com a cor que mais gostavam e com as quais eram identificadas e a Madrinha com um vestido e xale branco. O Gênio com outro assobio fez com que o tapete se enrolasse e entrasse em uma mochila que ele havia criado para carregá-lo sem levantar suspeitas. Estavam devidamente vestidos e agora poderiam seguir viagem sem chamar atenção.

Andaram até um antigo posto de correio que ficava ao leste. Pelo caminho sentiram a brisa do fim da tarde e admiraram a verde paisagem que cobria o horizonte. Seu destino se localizava em uma pequena estradinha no vilarejo de Compton Pauncefoot. Passaram por algumas casinhas de pedra que mais pareciam de bonecas até chegarem a um pequeno antiquário.

Flora os alertou para não tocar em nada, pois caso Merlin estivesse ali, costumava ser metódico e muito cuidadoso. Todos se calaram e foram entrando em silêncio. Quando Flora abriu a porta um pequeno sino tocou anunciando a chegada de todos. Ao fundo podia-se ouvir uma leve risada e gritos de “Eu sabia! Eu sabia!”. Permaneceram parados esperando que o dono da voz se manifestasse e de trás do balcão se levantou um velho com uma longa barba branca e óculos de sol.

— Eu sabia! Eu sabia que viriam! Por Deus! Por Zeus! Por toda a magia! Eu sabia! — exclamava Merlin saindo de trás do balcão e correndo para abraçar Flora.

— Meu velho amigo! Há quanto tempo!

— Cem anos exatos! — disse Merlin à Flora.

— Que lhe fizeram muito bem... Está cada vez mais jovem — disse Flora corando as bochechas.

Merlin engasgou.

— Não tão bem quanto a você... — disse gaguejando.

— Esses dois não são fáceis — disse Primavera debochada para Amanda que levou a mão à boca para que não a vissem rindo.

— Primavera, Fauna, Madrinha! Há tempos e... Gênio... — disse Merlin variando do harmonioso para o seco.

— Merlin — respondeu o Gênio de ombros.

Os três humanos se entreolharam sem entender a rispidez entre os dois.

— E esses? Quem são? — disse Merlin olhando os três jovens.

— Meu nome é Bernardo. Estes são Amanda e Khalil e...

— Ah sim! Vocês são os próximos! Os descendentes que vão acabar com tudo isso, claro! Um velho como eu que já participou de mais de milhões de histórias deveria saber do que se trata a ilustre visita... E na verdade sei do que se trata!

— E continua falando nada com nada — disse o Gênio áspero.

— A conversa não chegou na lâmpada — rebateu Merlin virando as costas — Agora sigam-me.

O antiquário era bem pequeno. Estavam praticamente amontoados ali entre quatro longas mesas que expunham desde relógios antigos a abajures rústicos. Havia muitas peças de madeira e também muitas peças em ouro envelhecido. O piso de madeira e as paredes de pedra completavam o charme da loja e a bandeira inglesa que se erguia atrás do balcão iluminada pela leve luz da tarde fazia o local parecer realmente aconchegante.

Os visitantes acompanharam Merlin passando para trás do balcão. No piso havia uma pequena porta de madeira, assim como a porta do casebre do Gênio. Todos puderam ver o momento em que um raio brilhante escorreu pelos dedos de Merlin e percorreu o entorno da pequena porta fazendo com que ela se abrisse de vez.

Desceram uma escada caracol de pedra por alguns minutos até chegar a um grande escritório redondo coberto de livros e estantes com uma pequena mesa no canto e ao centro um púlpito iluminado por um lustre de velas. O cheiro da sala lembrava a de uma antiga biblioteca e a poeira fez Bernardo espirrar diversas vezes.

— Quando você ia me avisar que eles chegariam?! — gritou uma voz dentro de uma pilha de livros — Eu teria arrumado tudo!

— Ora Arquimedes! Eu disse que eles viriam, mas não sabia quando.

Da pilha de livros saiu uma velha coruja marrom que voou e pousou nos ombros de Merlin.

— Claro que sabia velho idiota! Você sabe de tudo!

— Uma ova! Sei de muitas coisas, mas não de tudo.

— Deixe pra lá, não vale a pena mais. Sejam bem-vindos visitantes — disse a coruja para todos.

A essa altura do jogo, Bernardo, Amanda e Khalil já não estranhavam mais os acontecimentos fantásticos como “animais falantes”, já haviam visto de tudo. Merlin então juntou as mãos e estalou os dedos. Ao levantar as mãos os livros do chão levantaram junto e como um grande maestro ele começou a guardá-los nas estantes da parede. Os livros flutuavam pela sala e iam um a um para seus lugares devidos revelando um assoalho de madeira e um sofá com uma mesinha de chá e algumas cadeiras.

Ao finalizar, Merlin se sentou em uma das cadeiras e pediu que todos tomassem seus lugares. Com outro gesto fez com que a chaleira flutuasse até a mesa juntamente com um conjunto de xícaras. Enquanto servia cada um, Flora contou o motivo de estarem aflitos e sobre como a Fada Azul havia sido sequestrada.

— Mas só podia mesmo ser o Gênio, não é? — disse Merlin entre os dentes.

— Repita isso na minha cara velho! Se é que pode... Ou já está gagá? — disse o Gênio irritado.

— Ora seu!

— Senhores. Parem com a discussão imbecil! Enquanto vocês discutem nossa amiga está desaparecida! — gritou Primavera.

— Tem razão, mas receio não lhes dar boas notícias — disse Merlin tirando seu cachimbo do bolso de sua camisa — Bom... a história é um pouco longa, se preparem.

Acendeu o cachimbo e começou a falar:

— Há cem anos, acredito que assim como o Gênio eu pressenti uma perturbação nos planos da magia. Para quem não lida com magia — disse para os três — imaginem um lago estável e imóvel. Toda vez que uma pedra de fora do lado toca a superfície, ondas são geradas. O lago deixa de ser o mesmo. Aquelas pequenas ondas podem não parecer, mas geraram um movimento que fez com que partículas mudassem de lugar. Mesmo que visivelmente pareça que nada mudou, tudo já não é mais o mesmo. As pequenas mudanças muitas vezes são as mais significativas. Assim foi no plano da magia. Algo aconteceu cem anos atrás que alterou toda a história. Ao pressentir isso eu consegui conjurar um contra-feitiço que manteve meu escritório a salvo, ou seja, eu e Arquimedes ficamos imunes a seja lá o que aconteceu. Quando tudo passou eu comecei meus estudos e ainda não parei. Observei todos os sinais seguintes.

Merlin pegou mais uma xícara de chá e depois de colocar três colheres de açúcar continuou:

— As pessoas nas ruas continuavam as mesmas. Nada parecia haver mudado, mas como eu disse: Tudo estava diferente. Eu sentia isso. Eu sentia algo vazio. Depois de alguns meses fui perceber que o vazio era causado pela falta que as fadas e a magia no geral faziam ao mundo. Eu estava só no mundo, só eu tinha conhecimento do que era a magia. Num primeiro instante eu tentei contar para todos sobre a magia. Inclusive para Rita, a descendente principal de Arthur, mas ela estava mudada. Se lembrava de mim como um amigo da família, mas eu era seu professor e me chamava de John. O segundo evento estranho foi quando ao visitar as livrarias e bibliotecas vi um grande livro chamado “Lendas do Rei Arthur” e vi toda a minha história escrita em formato de conto e a de Aurora, e Ella, e Branca de Neve, e todos os que conhecíamos.

Flora, Fauna, Primavera e Madrinha levaram as mãos ao peito com uma expressão de dor.

— As memórias haviam se acabado. Eu não passava de uma lenda. Estava sozinho no mundo. Rita e seus familiares dormiram em um dia e em outro acordaram como se a magia nunca houvesse existido, talvez isso tenha afetado o Gênio de maneira diferente o tornando o antigo Rei maligno que fora, mas sei que foi um choque para mim. Tentei me comunicar com a Terra do Nunca ou com qualquer outro reino extraterreno, mas não consegui resultado algum. A última vez que havia sentido essa perturbação foi quando Peter Pan veio da Terra do Nunca naquele mesmo ano e levou Wendy e seus irmãos, mas já estavam todos bem.

— Pan é um travesso — disse Primavera balançando a cabeça.

— Sim, mas ele não tem capacidade de fazer isso... Pan, assim como eu é um humano que foi moldado pela magia. O que aconteceu foi obra de um ser totalmente mágico, mas voltando às minhas observações... A magia havia se extinguido da Terra. Eu era o único humano com capacidades mágicas. Tentei milhares de feitiços e nada, meu próprio poder começou a se enfraquecer, mas de alguns anos para cá isso tem acabado... Foi como se essa barreira que impedia a magia de chegar a Terra caísse de vez.

— Sim, percebemos isso também! Tanto que estamos aqui! Até procuramos os descendentes dos antigos humanos com potencial mágico para ver se sabiam de algo — disse Madrinha.

— Entendo, entendo, mas é o velho ditado “toda magia sempre vem com um preço” e nesse caso, nós vamos pagar uma boa parte da conta.

Todos se ajeitaram no sofá. Merlin se levantou e se colocou no púlpito iluminado. Levantou as mãos e gravuras iluminadas foram surgindo no ar enquanto ele explicava:

— No mundo mágico existem os seres luminosos e os seres das trevas. Eles vivem em uma estranha harmonia. Por mais que a luz sempre vença, as trevas não param de se erguer contra a luz e eles acabam coexistindo no mundo. Quando a barreira se ergueu as criaturas de luz como as fadas, as boas feiticeiras e tantos outros não conseguiram entrar, mas os seres de trevas também não conseguiram. Estavam todos presos por barreiras. A tendência das fadas é se preocupar, pois elas protegem os humanos dos ataques das trevas, mas a tendência dos seres das trevas é ficar famintos, pois se alimentam do medo humano.

Merlin se sentou novamente e acendeu mais uma vez seu cachimbo.

— A barreira começou a se enfraquecer aos poucos, tanto que nos anos 20 eu consegui detectar uma leve entrada de seres das trevas na região dos Estados Unidos, mas foi um evento tão rápido que acredito não ter feito grandes mudanças. Seis anos depois, Pan conseguiu romper o bloqueio e voltar à Inglaterra, mas novamente, um único evento isolado.

— Ah meu Deus! Então foi isso! Pobre Tinkerbell... — exclamou Fauna.

— O que houve com Tinkerbell? — perguntou Merlin.

— Ela desapareceu... Sabemos que ela vivia com Pan, ele era a criança dela, mas desde essa época não a vemos mais — disse Flora.

— Acredito que muito se perdeu com essas mudanças... — disse Merlin entristecido — Infelizmente muitas fadas ficaram presas na Terra no dia em que tudo aconteceu. Suas asas caíram e elas se tornaram humanas. Soube disso, pois encontrei Rosetta... Agora se chamava Rose e estava vivendo como uma humana no sul da Escócia.

As fadas abaixaram a cabeça e lágrimas escorreram do rosto de todas. Muitas amigas hoje estavam provavelmente mortas, pois humanos ao contrário das fadas não são imortais. Amanda, Bernardo e Khalil as envolveram com um abraço no sofá. O clima da sala se tornara infeliz e de verdadeiro luto.

— Receio ter que interromper o momento de luto, mas estamos chegando ao ponto crucial de nossa história... — disse Merlin.

As fadas foram se recompondo aos poucos.

— Quero que pensem agora em uma represa. A represa está segurando um rio. O rio, diferente do lago tem um fluxo. Ele corre livremente e está constantemente forçando a barreira. Assim foi também com a barreira da magia. Ela conteve todos os seres das trevas por muito tempo, eles estão famintos e quando a barreira se rompeu o desastre tem acontecido. Na Dinamarca há alguns dias um príncipe que parece ser um ser híbrido entre seres mágicos e humanos liberou potencial mágico de uma vez e não soube se conter. A magia está chegando à terra de maneira descontrolada e não somente isso, mas as criaturas das trevas também.

— Os lobos que eu vi em meus sonhos. O lobo que me perseguiu ontem de madrugada. São criaturas das trevas tentando vir atrás de nós... — disse Amanda para os amigos.

— Então já começou? Minha previsão era de mais alguns dias, mas parece que esse príncipe as atraiu. Precisamos nos preparar o mais rápido possível para a chegada deles. Podemos estar no início de uma guerra sem sabermos!

Merlin se levantou rapidamente. E abriu uma maleta que estava entre duas estantes do salão. Com um gesto das mãos vários livros flutuaram para dentro dela.

— Meus caros — disse se referindo à Amanda, Bernardo e Khalil — vocês talvez estivessem achando até agora que eram meros espectadores da história, apenas contatos das fadas no mundo humano, mas à partir desse momento vou prová-los que não. Começa agora o treinamento de vocês. Como eu disse assim que entraram por aquela porta lá em cima: “Os descendentes que vão acabar com tudo isso”.


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