Fiquei quase a noite inteira acordado, pensando no cheiro de pêssego e creme. Ele era delicioso.

Queria sentir aquele cheiro de novo, eu sentia uma sensação estranha sem ele, como se estivesse faltando algo em mim.

Pêssego em creme.

Esse cheiro não sai da minha cabeça!

Sei que é impossível sentir aquele cheiro de novo. Deve ter sido o cheiro de alguma criança, e eu nunca mais vou senti-lo, pois daqui a alguns dias vou estar em outra cidade. Pensar isso me deixa triste e deprimido.

Como é possível eu me sentir mal por causa de um CHEIRO que só senti uma vez na vida?!

A porta do galpão em que eu fico se abriu e, para minha surpresa, o cheiro de pêssego e creme o invadiu.

Enquanto eu ficava lá parado, sem reação, o Sr.Davis se aproximou e disse para alguém:

– Kelsey, quero que conheça Dhiren. Venha aqui. Vou lhe mostrar uma coisa.

Ergui a cabeça e vi uma menina junto com ele. Ela era linda, e então percebi que o cheiro vinha dela.

Ela tinha o cabelo castanho, cacheado e estavam presos em uma trança com uma fita, o que me dava vontade de brincar com a trança; era magra e pequena, e eu quis abraça-la e mantê-la em segurança, mas ao mesmo tempo, parecia ser forte e saber se cuidar.

Eu estava curioso para descobrir mais sobre ela, então fiquei olhando-a enquanto o Sr. Davis me dava água e aquelas vitaminas horríveis. Quando ele terminou disse para Kelsey ir buscar minha comida, explicando como deveria fazer. E ela se foi.

Alguns minutos depois ela voltou, puxou a alavanca que me separa da porta e colocou a carne na minha tigela, sempre olhando para mim e eu para ela.

Estava comendo (e a observando) quando ela disse:

– Sr. Davis, esse tigre é macho ou fêmea?

O QUE? COMO ELA OUSA PERGUNTAR ISSO?

Eu rosnei, querendo mostrar a ela que eu era macho. Como ela não percebeu isso? É claro que sou macho! Que ultraje!!!

Ela olhou para mim e disse:

– Por que está rugindo para mim?

Porque você me insultou, menininha! Onde já se viu, sequer pensar que eu sou fêmea!

O Sr. Davis riu e explicou para ela que eu era sensível, que fiquei ofendido e que era macho.

Quando terminei de comer era hora do meu treino, eu estava com preguiça (como todo dia), então fiquei deitado; mas quando o Sr. Davis me chamou pela segunda vez , tive que levantar, mas antes de sair me espreguicei o mais demoradamente possível (esticando cada pata).

Ouvi uma risada e vi que foi de Kelsey, o Sr. Davis deixou ela assistir o treino, mas ela tinha que ficar no mezanino, para eu não machucá-la.

Como se eu fosse machucar aquela menina linda, que mais parecia uma princesa!

Começamos o treino. O Sr. Davis tem sorte por ser eu seu tigre, se fosse outro animal selvagem acho que ele nem estaria vivo ainda, pois era frequente ele ficar perto das minhas garras e pisar em mim, sem contar que nenhum outro tigre o deixaria colocar a cabeça em sua boca.

Alguns minutos depois o treino terminou e voltei para minha jaula. O Sr. Davis disse para Kelsey descer e ir ajudar Matt a preparar o espetáculo. Para minha surpresa, ela disse:

– Tudo bem se eu trouxer meu diário até aqui para escrever de vez em quando? Quero desenhar o tigre.

Deixa, por favor! Me vi implorando mentalmente para ele deixar, eu queria vê-la de novo.

Quando ele disse que ela podia voltar, eu tive vontade de sorrir.

Kelsey saiu correndo, agradecendo ao Sr. Davis por tê-la deixado assistir ao treino. Assim que ela saiu, ele disse:

– Pelo visto você ganhou uma fã. Acho que ela gosta de você, Dhiren.

Ele saiu e fui dormir um pouco, antes da apresentação.

O espetáculo foi tranquilo, os espectadores eram todos idosos, então eles dormiram a maior parte do tempo.

Estava deitado quando a porta se abriu e Kelsey entrou. Ela acendeu as luzes, sentou em um monte de feno perto da minha jaula e começou a escrever em um diário. Depois de alguns minutos ela pegou um lápis e acho que começou a me desenhar, pois ficava me olhando de tempo em tempo.

Fiquei a observando o tempo todo, até que ela percebeu e perguntou:

– Oi, está olhando o quê? - e voltou a desenhar.

Ela começou a conversar comigo:

– Como é mesmo o seu nome? Ah, Dhiren. Bem, vou chamá-lo apenas de Ren. Espero que não se importe. Então, tudo bem com você? Gostou do café da manhã? Sabe, para uma coisa que poderia me comer, você tem um rosto muito bonito.

Ren? Ela quer me chamar pelo meu apelido, como todos me chamavam antes de ser transformado em tigre? Tive vontade de dizer a ela que não me importava, muito pelo contrário, eu ia amar ela me chamar assim.

– Você gosta de ser um tigre de circo? - perguntou depois de um tempo - Não deve ser muito emocionante ficar preso nessa jaula o tempo todo.

Você nem imagina! É horrível ser um tigre de circo, ficar aqui preso o dia inteiro e fazer as mesmas apresentações todos os dias.

Ela ficou quieta enquanto se concentrava no desenho. Quando voltou a falar disse:

– Gosta de poesia? Vou trazer meu livro de poemas e ler para você um dia. Acho que tem um sobre gatos que você vai adorar.

Se gosto de poesia? Eu amo poesia, sou um poeta!

Ela falava comigo como se me conhecesse, como se soubesse quem eu era, que não era só um tigre, mas um homem.

Me levantei para observá-la melhor. Ela olhou para mim e continuei a observando fixamente, tentando descobrir se ela sabia quem eu realmente era.

Então o Sr. Davis entrou e eu me deitei novamente, mas sem parar de observar Kelsey. Ele a cumprimentou, e ela disse:

– Tudo certo. Ah, tenho uma pergunta. Ele não se sente só? Vocês já tentaram encontrar uma namorada para ele?

Ah, não! Essa história de novo!

Meu domador riu e começou a contar a história de quando tentaram me cruzar em um zoológico. Aquilo foi constrangedor! Eu tive que parar de comer para me tirarem de perto daquela tigresa louca no cio.

Kelsey foi embora, dizendo que tinha que ajudar no jantar.

Estava quase dormindo quando a porta foi aberta e, para a minha alegria, Kelsey entrou. Ela acendeu a luz perto da minha jaula e se sentou no monte de feno (o mesmo que sentou antes).

– Oi, Ren. Quer que eu leia um pouco para você? Bem, não existem tigres na história de Romeu e Julieta, mas, quando Romeu subir em uma sacada, você pode se imaginar subindo em uma árvore está bem? Espere um segundo. Vou criar a atmosfera adequada.

Ela apagou a luz, se deitou no feno e começou a ler, com a iluminação da lua.

Kelsey lia muito bem e era maravilhoso ficar ouvindo sua voz. Quando ficou com sono, ela fechou o livro, suspirou e disse:

– Ah, não se fazem mais homens como Romeu. Talvez um homem assim nunca tenha existindo. Exceto pela minha presente companhia, é claro. Tenho certeza de que você é um tigre muito romântico. Shakespeare sabia mesmo escrever sobre homens sonhadores, não é?

Então ela dormiu. Fiquei vendo ela dormir. Kelsey era linda, a mulher mais linda que já vi nos meus mais de 300 anos. Enquanto ficava ali a admirando, eu percebi uma coisa:

Eu estava apaixonado por Kelsey.