Sussurros do Vento escrita por Yann Livramento


Capítulo 4
Gelado, mas quente


Notas iniciais do capítulo

Este texto é uma releitura da música Sweater Weather, da banda The Neighbourhood.



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Ela ainda é só uma garota feliz, que vê todas as coisas ao seu redor cheias de cor. Eu tenho o passo um pouco mais lento, e meus olhos estão mais acomodados quando estão no escuro. Ela vive com a mãe, está se preparando para o vestibular e vai para o aquário todo sábado. Eu vivo sozinho, sou graduado e arrumo meu arquivo toda sexta-feira, antes de fechar o escritório. Ela é muito quente. Eu sou muito gelado.

Mas as coisas não foram sempre assim.

Na infância e no começo sua adolescência, nós costumávamos passar muito tempo juntos e o calor dela, naquela época, tomava conta de mim. Não era preciso que ela sequer me tocasse. Bastava que sua imagem viesse à minha mente, concretizada quando eu abria os olhos e pronto. Quentinho e confortável.

Hoje ela vive longe de mim. Foi embora quando eu estava no terceiro ano da faculdade; e ela, no primeiro ano do colegial. Sua mãe, por motivos profissionais, precisou deixar Florianópolis e a levou junto, já que o pai dela, infelizmente, não existe mais sobre o chão. É realmente uma pena. Primeiro porque é uma cidade bastante quente, combina com ela. Segundo porque quase todo dia eu sinto saudade dela e das sensações que ela sempre causou em mim. Nossa ligação sempre foi forte e a despedida não foi nada graciosa.

Já faz três anos.

Demorou três anos para que ela me ligasse. Para que dissesse que queria muito me ver, que morria de saudade. Sua voz ao telefone ainda era a mesma: cheia de vida e alegria — apesar de sutilmente mais madura, agora. Disse que sua vida estava ficando pacata e precisava de uma aventura e, portanto, viria me visitar. É bem possível aceitar que a vida, em São Paulo, fique pacata. Apesar da constante movimentação das pessoas, tudo é meio engarrafado por lá.

É começo de agosto, não estou de férias, mas obviamente aceitei recebê-la em casa. Jamais perderia uma oportunidade de vê-la. Fiquei feliz por ela ter ligado. Se fôssemos esperar por mim, esperaríamos para sempre, provavelmente. Minhas emoções acabaram congelando junto comigo, eu acho — embora eu possa jurar que, quando atendi a ligação dela e ouvi sua voz, senti algo rachar dentro de mim, e não era meu coração.

O gelo dentro de mim entrou em colapso ao vê-la, aqui, na minha frente. Seu corpo, como sempre, dançante sobre os pés delicados, bagunçando a areia da praia. Eu sei que ela estava louca para pular na água, mas ela não o fez. Seus olhos deixaram claro que ela esqueceu de um detalhe muito importante. Esqueceu porque é algo que não combina com ela.

Ela esqueceu que, em Florianópolis, faz frio em agosto.

Apesar do frio, vestia um top e um daqueles shorts de cintura alta — que fica perfeito nela, diga-se. Não entendo muito disso, mas acho que seus cabelos compridos amenizavam um pouco a sensação gelada, além da dança desenfreada na areia, é claro.

Bastou fechar os olhos por um segundo, um instante de distração, para lembrar o quanto minha vida tinha se tornado um perfeito desencontro. Depois que ela foi embora, eu me dediquei aos estudos ainda mais que antes. Passei cinco anos brigando por notas exímias na faculdade, com a ambição de ter o mundo em minhas mãos. Mas em algum lugar do caminho, a definição do mundo que eu quero conquistar se perdeu. Foi só quando eu abri os olhos e vi aquela pele bronzeada e olhos claros que comecei a recordar do que realmente é importante pra mim. O que eu queria alcançar.

Vê-la fez com que um turbilhão de sensações implodisse em mim, me enchendo de vontade de passar a tarde dançando com ela, na areia, e depois passar a noite inteira acordados vendo filmes e rindo de bobagens. Infelizmente, eu não posso. Sou um homem adulto, responsável e amanhã é dia de passar a manhã trabalhando. Engaiolado num escritório abafado, com o ar-condicionado ligado. Não consigo sequer imaginá-la numa situação dessas.

O cessar da dança dela me dispersou dos devaneios e me fez prestar atenção em seu rosto. Ela deu um meio sorriso, abaixou muito sutilmente a cabeça, me olhou de baixo para cima e veio andando em minha direção. Seus pés, um na frente do outro, vagarosos. O tipo de atitude que me fez perceber que hoje ela consegue sentir coisas que, quando estava entrando no colegial, não conseguia.

Quando chegou perto o suficiente, tocou as mãos no meu pescoço e sussurrou algo que eu, sinceramente, não entendi. Seus olhos simplesmente me hipnotizam. Só consegui perceber que ela tinha dito algo quando seus olhos se cerraram, no momento em que ela tocou os lábios nos meus. Ela com certeza estava na ponta dos pés, o que deixava a situação ainda mais adorável.

Eu não estava mais acostumado a esse tipo de sensação. Eu sempre vi, na minha mente, essa situação. Sempre desejei que se tornasse verdade, mas não imaginei que me sentiria assim.

Eu simplesmente peguei fogo.

Eu a juntei ao meu peito e a abracei na altura da cintura enquanto nossos lábios, trêmulos, permaneceram juntos. Tudo bem, não há motivo para mentir: os meus lábios tremiam; os dela, não. Apesar de eu ser a pessoa com responsabilidades, ela é a pessoa segura.

Ela estava me derretendo inteiro.

***

Depois de assistir o pôr do sol sentados na areia e jantar num restaurante perto da praia, chegamos em casa. O céu já estava escuro e, olhando pela janela, não consegui ver a lua nem as estrelas. É uma pena. Seria um complemento maravilhoso para o cenário que aquela casa estava para se tornar.

Eu a perguntei se queria tomar banho primeiro e ela me respondeu que antes queria arrumar suas coisas, já que ficaria por uma semana. Eu assenti e, no guarda-roupa, peguei uma camiseta e um moletom velho, de um número visivelmente maior do que eu realmente uso — conforto era a chave para aquela noite. E para as seis seguintes.

Eu nunca me demorei no banho, e hoje não foi exceção. Eu sabia que ela não iria a lugar nenhum, mas ainda assim tive pressa de tê-la ao alcance dos meus olhos de novo. Talvez devesse tê-la convidado para vir comigo ao chuveiro, mas estávamos na primeira noite. Com certeza isso seria um ato apressado demais. Apesar de ela me deixar com a cabeça nas nuvens, preciso manter meu eixo firme.

No fim do banho, me enxuguei bem para que as gotas d’água não gelassem na minha pele. Depois de vestir a camiseta e o moletom, fui até a sala avisá-la que o banheiro estava livre e, depois de vê-la sorrir mais uma vez, caminhei até o quarto.

Ela também não demorou nada. Quando a ouvi bater na porta do quarto, levantei a cabeça do travesseiro para olhá-la. Ela estava com os cabelos soltos, secos, e vestia uma camisola curta. Vendo aquilo, tive, imediatamente, duas certezas: a primeira era de que suas intenções não eram nada boas (na verdade, eram boas demais). A segunda era de que ela iria passar muito, muito frio.

Se eu não estivesse aqui, é claro.

Ela deu de novo aquele meio sorriso, veio para a cama e engatinhou até o meu lado. O silêncio tornou-se estranhamente intenso. Ela realmente não disse nada — e eu também não. Só me olhou bem de perto por alguns segundos e deitou de bruços. Ela fechou os olhos e permaneceu em absoluto silêncio. Eu, sinceramente, não ligo para o silêncio. Há vezes em que o silêncio diz mais do que muitas palavras, e, naquele momento, realmente estava dizendo. A nostalgia me queimava, mas de um jeito diferente, pois agora não estava mais de frente para aquela menina que conheci anos atrás.

Ela era uma mulher, agora.

Tenho certeza que se passaram muitos minutos até o momento em que ela disse, num murmúrio, que estava com frio. Ela não parecia murmurar por causa do frio, mas porque estava triste. Provavelmente estava pensando que sua tentativa de me provocar, vestindo aquela camisola, tinha sido frustrada. Tsc. E eu cheguei a pensar que sua inocência tinha ido toda embora.

Engano meu.

O murmúrio dela foi a única coisa a romper nosso silêncio. Eu não disse nada. Ao invés de responder qualquer coisa para ela, simplesmente cheguei mais perto e passei meu braço por cima da cintura dela. Eu pude sentir o corpo dela se arrepiar.

Aquele calor dela realmente me contagiava. Desde sua chegada, sinto que as coisas dentro de mim só esquentavam cada vez mais e a situação vinha chegando num ponto em que era difícil, pra mim, manter o controle das coisas. Como se um trem fosse descarrilhar.

E aquilo que eu imaginava, aconteceu.

O trem descarrilhou.

Eu cheguei ainda mais perto dela, mas não só: eu subi sobre o corpo dela. Mesmo assim, ela não disse nada. Eu tirei seu cabelo da frente do seu pescoço. Ainda assim, ela não disse nada. Eu toquei os lábios na pele macia daquele pescoço e senti o corpo dela tremular sob o meu. Ela não disse uma palavra. Naquele momento, não consegui pensar em nada senão no quanto amava aquela mulher e o quanto esperei para tê-la, o meu mundo, em minhas mãos.

E então ela disse, num sussurro:

— Eu também te amo.

É engraçado como ela parece ler minha mente.

Ou talvez eu simplesmente tinha dito em voz alta, sem perceber.

E foi logo depois de ouvir as palavras que eu esperei por três anos que o trem, além de descarrilhar, caiu no oceano.

Eu desci as mãos até a altura de nossas cinturas para tirar da frente o que nos impedia de ser plenamente felizes, naquele momento. Eu não podia ver seu rosto, pois estávamos de bruços, mas eu tinha certeza de que ela estava de olhos fechados e seu rosto estava pegando fogo, rosado.

Sua boca soprou um gemido no instante em que percebeu que seu corpo não era mais só seu. E, naquele momento, começamos uma dança bem lenta. Assim mesmo, com meu corpo sobre o dela. Ela se segurava com força no lençol da cama, escondendo o rosto no travesseiro. Ele abafava seus discretos gemidos.

Senti vontade de estar ainda mais perto dela, então desci meu rosto até o travesseiro, ao lado do dela, para que ficássemos ainda mais próximos. Naquele momento, ela levantou o rosto e seus olhos encontraram os meus. Eles estavam recheados de lascívia. Quando fechou os olhos, arrastou a língua pelo meu rosto, devagar. Ela realmente não havia mudado nada, ainda era viciada em descobrir o sabor das coisas. Apesar de eu saber que seu desejo, ali, não era sentir o sabor da minha pele, mas o sabor daquilo que estávamos sentindo. E eu, sinceramente, também estava louco pra descobrir.

Seus gemidos tornavam-se cada vez menos discretos conforme nossa dança ganhava ritmo. Eu mordia o lóbulo da sua orelha e puxava devagarinho. De vez em quando, eu roçava a língua em seu pescoço, o que a fazia se encolher inteira. A cada passo da nossa peça, o volume do delírio dela crescia, o que me fez entender que nosso espetáculo estava próximo do fim.

Ela enfiou o rosto no travesseiro para abafar o que já eram quase gritos. Conforme seus ruídos ganhavam volume, nossa melodia ficava mais agitada. Tão agitada que me obriguei a morder seu ombro para suportar as sensações maravilhosamente incontroláveis que me tomavam, por dentro.

E de repente, silêncio.

Aquele silêncio significava que, para ela, o nosso concerto tinha terminado. Meu corpo discordava veemente, mas meu coração, agora quente, tinha certeza que assim já estava bom.

Sai de cima dela, devagar. Deitei ao seu lado sem fazer movimentos muito rudes. Ela parecia tranquila, em paz; mas eu estava muito ofegante e ainda tenso. Meu corpo e cérebro me lembraram de que eu não havia tido o suficiente, mas meu coração insistia que assim já estava bom.

Ela deitou a cabeça no meu peito, sem dizer nada, e logo caiu no sono. Eu tinha certeza de que não conseguiria dormir. Não naquela noite.

Não com meu mundo em minhas mãos.

Depois de três anos sem notícias, ela estava ali; entregue nos meus braços, como se tivesse esperado tanto por aquele momento quanto eu. Eu espero que ela se lembre de tantas coisas quanto eu.

Espero que ela se lembre dessa noite.

Era realmente impossível dormir. Eu sabia que ela ainda ficaria por mais seis dias, comigo. Mas depois disso, ela iria embora. De novo. A dor da perda já me doía. Ela estava ali, deitada em mim, nos meus braços, mas já doía. Eu precisava fazer com que essa semana fosse simplesmente incrível.

Quem sabe ela resolvesse ficar.

Ou, quem sabe, pelo menos se lembrasse.

Quando o sol, nada tímido, começou a se mostrar no horizonte, deitei a cabeça dela, gentilmente, no travesseiro e me levantei. Estava realmente muito frio. Tomei um banho e vesti o terno para ir ao escritório. Porém, antes de ir, não havia como não ficar alguns minutos sentado, olhando para ela. Eu a assisti dormir e, quando a hora começou a apertar, fui até o guarda-roupa e tirei de lá um suéter que, com certeza, ficaria grande nela. Ri imaginando a reação dela ao vestir algo bem maior do que ela.

Deixei a peça aos pés da cama para que vestisse quando acordasse e torci para que, quando eu voltasse, ela não tivesse ido a lugar nenhum. Fui para a porta, aflito por saber que passaria a manhã toda e um pedacinho da tarde longe dela. Longe do meu mundo. Mas não importa. Assim que eu voltasse, ela ainda estaria lá, me esperando. Mesmo que só por uma semana.

Mas ela vai adorar estar aqui.

Ela vai se lembrar.


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Notas finais do capítulo

Mais um sussurro. Aproveite!



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