Os Cânticos de Prime escrita por MMenezes


Capítulo 7
O Arauto II [1.0]


Notas iniciais do capítulo

Gostou? Não gostou? Comente, sua opinião é importante para essa história ser contada da melhor maneira possível.

;)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/637156/chapter/7

Quando criança lhe diziam que qualquer um poderia servir ao Principiador, qualquer um seria apto a ser um pai para o mundo órfão. Mas agora ninguém o aceitava, nenhum Pai-mor aceitava que ele pudesse se dar à causa de curar as feridas da terra; ao menos não sem se abster das canções que soavam em seu peito.

Caminhava pelo condado tocando uma canção melancólica em seu alaúde, com a cacofonia do cotidiano misturando-se à suas notas… uma mulher que gritava para o filho descer de um telhado, um homem que tentava irritado negociar a compra de um cavalo, uma briga em uma taverna, carroças transitando pela ruas irregulares, cães latindo; barulho, barulho, barulho.

Seus dedos dançavam sobre as cordas, indiferentes a balbúrdia ao seu redor. Entoava uma melodia triste e delicada, que mesmo sem superar os barulhos ao seu redor, era tudo que precisava para envolver-se em seu próprio mundo de calmaria.

Darsmar era sua sétima parada, a sétima vez que cruzara terras e montanhas a procura do sacerdócio. A sétima vez que fora rejeitado pelos homens alvos.

Possuía o talento para o celibato, para a servidão, para o sacerdócio… e para a música. “Todos os talentos provém dele e são para ele”, dizia seu antigo Pai, mas para os sacerdotes de branco, a música revelava o pior que poderia haver em um homem. “Olhe para as tavernas e bordéis, sempre há um bardo nestes lugares!”, disseram-lhe certa vez como se fosse ele o responsável das pessoas preferirem cervejas e meretrizes à seguirem o Caminho da Alvura.

Como eu poderia ser culpado? Essas pessoas sequer me querem por perto, pensou em desalento.

Sentia dores no joelho, no quadril e no lombo, então sentou-se sobre um tosco pedaço de madeira junto a porta de uma estalagem. Colocou o alaúde de lado e massageou o próprio joelho. A dor não sumiu, mas ficou por um momento mais suportável, logo se levantou com um pouco de dificuldade e voltou a sua passeata.

As ruas de Darsmar em nada cooperavam, eram ruas de pedras antigas e irregulares que só dificultavam o seu andar trôpego. O lugar também mais parecia um canil, com gatos e cães se digladiando pelo caminho, avessos as carroças e transeuntes que passavam pelas ruas. Teve um momento que Jaoam teve que se jogar para um canto para não ser atropelado por um grande cão negro que perseguia aos latidos um hábil gato de pelo alaranjado. Em outro momento não conseguiu ser tão perspicaz e quase caiu ao tropeçar em um macilento cão peludo que insistia em andar entre suas pernas. Não chegou a cair, mas em sua tentativa de desvencilhar-se do animal, pisou em uma poça de água lodosa que encharcou sua alparca. Bufou de descontentamento e diferiu um olhar censurador ao cachorro; que pouco parecia se importar com sua reprimenda.

Darsmar era um condado a beira mar localizado bem a noroeste de Frevor, um lugar pouco amistoso e muito barulhento, ao menos para o que Jaoam considerava como deveria ser um condado. O cheiro de mar era abafado pelo cheiro de pães, peixes, suor e estrume dos animais que transitavam por ali. Se parasse para contar, tinha quase certeza que contaria mais gatos, cães e cavalos do que pessoas, concluiu, subindo uma longa e larga rua que se inclinava como um arco.

Tocava sua música e tropeçava, tocava e tropeçava, uma hora se deu por vencido e jogou seu alaúde de volta para o ombro em um gesto displicente, e seguiu caminho ouvindo a canção barulhenta do lugar. Três pescadores ofertavam diferentes preços pelos mesmos peixes, um bêbado xingava a mãe do taverneiro que o enxotara para fora de seu estabelecimento e cães latiam caçando gatos que rosnavam quando cercados. As pessoas pareciam envolvidas demais em suas próprias vidas, isso, ou sequer se prezavam a dirigir os olhos a alguém com uma aparência tão desalinhada. Jaoam vestia uma camisa de veludo amarelado — que a este ponto mais lembrava a um marrom escuro —, corroída por suas viagens e fedendo a terra e suor, a barra de seu calção estava dobrada na altura da canela; onde sua perna diminuta exigia menos tecido do que a irmã. Seu alaúde era um instrumento rústico e mal acabado, muito diferente dos alaúdes chiques que bardos e trovadores ostentava. Era uma coisa velha e retorcida pelo sol e pela chuva — sem um estojo é difícil preservar um instrumento, mesmo um instrumento já velho e retorcido —, mas ainda assim era seu bem mais valioso. Na verdade era tudo que tinha no mundo além da própria vida, e da solitária torre e seus sete torretes; mas dinheiro é só dinheiro, ao peso de que música é vida, e vida é música.

Alguns pedintes se espalhavam pela rua como vira-latas, e para olhos desatentos, Jaoam poderia ser facilmente confundido com eles. Um — uma mulher que supôs ter quase sua idade — veio em sua direção, mas recuou com um olhar de asco assim que notou sua deformação.

Causo pena e repúdio até nos que nada tem. Talvez ainda me dêem uma moeda, isso sim seria uma boa irônia.

Se havia algum conde de Darsmar, tal senhor sequer parecia se importar com a situação daquelas pessoas, talvez por isso, Jaoam pensou consigo, o Principiador teria erguido uma Casa Alva naquelas bandas.

— Uma moeda irmão de carne? — ouviu uma voz grave lhe pedindo.

Era um homem esfarrapado sentado junto a parede de um casebre, tinha os olhos semi-cerrados e barba grisalha. Meia dúzia de cães o cercavam como guardas e dois gatos aninhavam-se em seu colo.

— Não tenho nada, me desculpe — mentiu, o pouco que tinha era para seu próprio sustento.

— Oh, tudo bem — disse ele com um sorriso torto e recolhendo a mão estendida. — Poderia ao menos tocar para nós uma música? Meus amigos aqui adorariam, e eu ainda mais. Ah não ser que você também não tenha um alaúde — pediu ele em tom irônico.

Isso Jaoam não tinha como negar e esconder. Ninguém nunca lhe pedia para tocar, então também não tinha como não se sentir satisfeito com o pedido. Puxou o instrumento para junto do peito.

— O barulho desse lugar não ajuda muito — comentou ajustando a cravelha.

— Oh, sim sim — disse o homem por trás da barba suja. — Esse condado vive agitado, talvez sua canção o acalme.

Jaoam duvidava muito, por mais que tocasse bem, ainda não aprendera uma canção que silenciasse todo um condado.

— Você ou seus amigos tem alguma preferida?

O homem virou o rosto para seus animais.

— Acho que não, se tem não acho que vão pedir — disse com um sorriso amarelado. — Cante aquilo que lhe aprouver.

Está bem.

Levou os dedos aos trastos superiores, marcando a posição da nota. Era incômodo tocar em pé, seu corpo não ficava perpendicular, então agachou-se sobre os tornozelos, ficando na altura dos olhos de seu público. Dedilhou algumas cordas, incerto do que agradaria um público tão peculiar. Começou a cantar a primeira que viera em sua cabeça tentando não ser abafado pela cacofonia trazida pelo vento.

 

As terras do oeste de onde histórias vem

As árvores pranteiam e os gamos também

Terra do oeste, onde o sol não é tão quente

Onde as videiras crescem contentes

Talvez você nunca tenha conhecido

A terra que um homem já nasci aprazido

Onde os velhos não tão envelhecem

E campos e rios nunca se esquecem

Yo ho ho ho ho

As terras que o Principiador nos mandou

Yo ho ho ho ho

Céus azuis são nosso cobertor

Yo ho ho ho ho

Yo ho ho ho ho

 

Repetiu estes versos mais duas vezes antes de concluir que já bastava. Seu alaúde era feio, velho e torto, mas era bem afinado, e sua voz também não era de tanto mal. O estardalhaço não havia se extinguido, e ninguém além de seu pequeno público parecia tê-lo ouvido; infelizmente não tinha mesmo a capacidade de acalmar todo um condado.

— Muito bom — elogiou o homem. — Meus amigos aqui adoraram, e eu mais ainda — os bichos pareciam indiferentes. — É bom ouvir uma melodia nesse lugar de estrondo e baderna. Infelizmente não tenho uma moeda para pagar pelos seus serviços.

Jaoam achou graça na hipótese de receber uma moeda de um pedinte.

— Não precisa senhor — respondeu devolvendo o instrumento para suas costas e se erguendo com um pouco de dificuldade.

— Talvez eu possa te pagar com outra coisa — insistiu o pedinte.

Jaoam não conseguia imaginar o que um simplório desafortunado como aquele homem poderia lhe oferecer, e também não havia nada que poderia querer.

— Não há necessidade, não há nada de que preciso.

O homem o olhou de cima a baixo com aqueles olhos cemi-cerrados como se estivessem se protegendo de ventos fortes.

— Você não parece muito diferente de mim meu filho. Não há nada que eu também precise, além é claro de comida para meus pequenos amigos — disse acariciando as orelhas de um dos cães. — Mas a todo homem é útil uma palavra de sabedoria.

O homem não tinha aparência de um doutor instruído, muito menos de alguém sábio, mas Jaoam não queria lhe dizer isso. Apenas anuiu com a oferta.

— E que palavra de sabedoria teria para mim?

O homem abriu bem os olhos e o fitou, os olhos dele eram brancos como nata. Cego.

— Escute irmão, existem homens pobres, muito pobres, tão pobres que ouro é tudo que eles possuem. Estes já possuem seus tesouros. Também existem homens que tem uma boa quantia de prata. Estes vivem para suprir suas próprias vontades e anseios. Há aqueles que possuem apenas o cobre, estes são mais felizardos, pois com o labor de seu trabalho conhecem a satisfação e a realização genuína — o homem suspirou umedecendo os lábios com a língua. — Mas não são destes que quero falar. São os sem nada filho, aqueles que não possuem um teto ou uma vala reservada, são estes que o Rei se compraz.

O rei Volken pouco se importava com seu povo, Jaoam bem sabia disso. O “rei bardo” como o chamavam, esse sim era um homem entregue ao hedonismo.

— Eu não acredito no rei — respondeu secamente.

— Não? — indagou o homem afagando o gato em seu colo.— Nem no Rei dos Céus?

Rei do Céus, era como alguns chamavam o Principiador.

— Sim, neste rei eu acredito — respondeu desconcertado.

— Então irmão meu, o Rei tem algo para nós, o Rei verdadeiro de quem digo, não estes passageiros — abaixou o rosto, respirou fundo como se recuperasse fôlego e voltou a olhar para ele.— Ele tem algo para nós, principalmente para você Jaoam.

Eu não lhe disse meu nome.

Era a segunda vez que um desconhecido o chamava pelo nome, agora se lembrava, a primeira fora a muito tempo, quando ainda era um garoto deixado para morrer. “Você vai viver Jaoam, vai viver e sua voz será ouvida.”

— Como sabe meu nome? — indagou curioso.

— Quer dizer, o nome da sua carne? Isso pouco importa irmão, é o nome da sua alma que tem relevância, e o Rei bradou por ele. O que é que você mais deseja nesta terra Jaoam?

Jaoam não tinha notado, mas estava com o corpo inclinado para o homem, próximo o bastante para sentir o odor de sua pele. O que eu mais quero? O que eu mais quero? Teria um desejo realizado? Havia uma só coisa que queria, e ela lhe fora negada sete vezes.

— Eu quero ser um Pai — disse, mal acreditando no que ousara dizer.

O homem balançou a cabeça em sinal de discordância.

— Não, não. Não é isso que o Rei quer para você irmão. Você nunca será um pai Jaoam, não importando o sentido da palavra.

Aquelas palavras o feriram como um gume.

O homem continuou, fitando-o com aqueles olhos cegos que pareciam ver mais do que aparentavam. Então completou:

— Mas será um Filho, e através de você outros Filhos virão.

Então os olhos do homem pareceram deixar a coloração albina — como um nevoeiro se dissipando — e aos poucos tomou o tom de verde esquálido. Os cães que estavam ao seu redor se dissiparam, achando mais interessante perseguir o par de gatos que saltava de seu colo.

— Uma moeda bom senhor? — lhe pediu o homem de olhos castanhos, cheios de expectativa.

Jaoam levou a mão ao bolso. Uma torre e sete torretes.

Deu à ele tudo tudo que tinha.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Os Cânticos de Prime" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.