Rua Augusta escrita por Isabelle Reis


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/637015/chapter/1

Rua Augusta. Já passava das 2 da manhã e tudo parecia funcionar como se fosse dia. As pessoas gritavam enquanto faziam seus brindes e as músicas, completamente diferentes umas das outras, misturavam-se formando um som único: a desordem.
Alheia àquele mundo de excitação, uma menina, completamente diferente das outras que estavam em sua situação, estava deitada no chão tomando conta de seu pote que um dia guardara paçocas, mas que hoje, lhe servia para pedir esmola. Era loura, com o cabelo na altura dos ombros, branca, mas suja demais para se fazer ser vista, o cabelo quase podia ser confundido com um preto e o rosto era escondido pelas camadas de pó que ali se acumulavam.
Seus olhos estavam abertos, mas não olhavam nada em particular, só estava com medo de dormir e alguém pisar nela. Podia muito bem dormir no beco que dava para o depósito de bebidas do bar ao lado, mas algum casal apressado gemia escandalosamente, impedindo da mesma ter algum lugar “seguro”, para dormir.

Enquanto contava quantas lingüiças fritas tinha no prato dos Policiais Militares que paravam para fazer uma boquinha, ela escutou o barulho de moedas cair no seu pote. Coincidentemente, a música se tornou mais baixa, a multidão menor e alguém sentou displicentemente ao seu lado. A menina olhou desconfiada, não queria correr agora pois havia achado uma ótima posição para dormir, mas se sentiu estranhamente segura com o que vira a seguir. Um rapaz bonito, com seus 30 anos, usava um terno cinza e gravata chumbo, tinha um sapato que poderia lhe comprar várias porções de lingüiça e usava um relógio com mais números do que os doze que normalmente eram necessários.

Ela deu uma espiadela no pote novamente e viu que ali tinha uma nota de R$ 100 e algumas moedas antigas que nada lhe serviriam. “Obrigada”, ela conseguiu murmurar.

— Não agradeça, meu dinheiro provavelmente vai te matar enquanto você come aquela lingüiça. – Disse ele, sorrindo-lhe sem deixar que a mesma visse seu bom humor. —

— Do que está falando? — Ela perguntou, sem querer muita conversa, já que sua fome falava mais alto. —

— Nada em particular. Tome, essa pipoca pode enganar seu estômago um pouco. – O saco era verde, bem parecido com os de “São Cosme e Damião”, mas ela tinha certeza que era do Seu Nelson, o pipoqueiro da Avenida Paulista que sempre lhe dava o que sobrava de sua carrocinha. —

Ela pegou e experimentou o bacon crocante que acalmava seu doloroso estômago. Enquanto comia, notou o chapéu bonito na mão do senhor, era grande e alto, parecia ser algo como um policial, mas mais importante.

— Que chapéu é esse? – Ela perguntou enquanto chacoalhava o saco molhado pela gordura da pipoca recém feita. —

Ah, isso, me cara, se chama cartola. Era muito usada quando eu costumava caminhar entre vocês, mas eu ando um tanto ultrapassado, devia ter pesquisado mais. —

Ela riu.

— E o que te faz pensar que somos diferentes de você? – A pergunta o pegou de surpresa, mas ele sorriu de volta. —

— Não são tão diferentes, se isso te ajuda, mas com certeza, não somos iguais. – Ele tirou um cigarro do bolso e o acendeu, sem ajuda de nenhum isqueiro. —

A menina ficou impressionada.

— Um mágico! Você é um mágico! – Ela pulou enquanto deixava alguns milhos de pipoca cair. —

Foi a vez dele rir.

— Não, eu sou o Diabo. – Ele simplesmente disse, olhando o sinal da Rua Augusta fechar mais uma vez. —

Ela parou imediatamente, sentou-se no meio fio junto com ele e deixou o medo transparecer.

— Você está me visitando porque eu sou má? – Mais uma vez ele se impressionou, normalmente, quando visitava alguém, era sempre chamado de mentiroso ou desafiado a provar que falava a verdade, mas naquele momento, era apenas curiosidade de criança. —

Ele negou com a cabeça.

— Eu estou te visitando exatamente pelo contrário. Sabe por que eu não venho muitas vezes aqui, Serena? — Ela arregalou os olhos. —

— Quem é Serena?! – Perguntou alarmada. –

— Você. – Ele respondeu sorrindo. –

— Então você se enganou, seu Diabo, pois eu não tenho nome. – Ela disse coçando a cabeça. –

— Sua mãe antes de morrer quis te batizar como Serena então, esse é o seu nome. –

Ela queria chorar, lembrar que tinha uma mãe não era a parte favorita do seu dia, mas como sempre fora forte, engoliu o bolo na garganta e resolveu, inteligentemente, mudar de assunto.

— Por que não vem mais aqui? – Questionou coçando os cabelos sujos. –

— Porque vocês não precisam mais de mim. – Ele disse ligeiramente triste. –

— Como assim? – Ela perguntou com o olhar confuso. –

— Vocês humanos já fazem o mal que o mundo precisa, já são ruins demais, quase não precisam da minha ajuda...isso é ruim para os negócios, entende? – Ele disse um pouco sem graça. –

Como se Serena fosse sua psicóloga e ele o paciente, decidiu desabafar.

— Guerras, miséria, massacres, ignorância, imprudência....não foi assim que as pessoas foram criadas. Eles colocam a culpa em mim! Vejam só – Ele bateu no peito. – Mas eu não sou tão poderoso assim! Posso convocar um surto de peste, sussurrar algumas maldades nos ouvidos dos fracos, mas esse tipo de absurdo, queria eu ser capaz! – O senhor passou a mão nos cabelos e deixou a cartola no meio fio. –

— E o que eu tenho a ver com isso Seu Diabo? – Ela questionou olhando-o interessada. –

— Você é minha esperança Serena. – Com um simples toque, fez com que uma garrafa de água aparecesse nas suas mãos e entregou a menina. –

Serena bebeu avidamente.

— Seja tão boa quanto é hoje e ajude os outros, quanto mais pessoas como você existirem, mais o bem se espalhará e eu poderei voltar aos meus trabalhos. – Ele sorriu “diabolicamente”. –

— Mas como vou mudar o mundo? Eu sou uma garota de rua, não tenho nada...- Ela disse, demonstrando a tristeza que lhe invadia todos os dias. –

— Isso você deixa comigo, só faça o bem, que o mau eu propago. – Ele sorriu e levantou a mão. –

Serena deixou um sorriso escapar e bateu na mão suspensa do senhor.

— Apenas seja humana, Serena, como todos os outros devem ser. – A voz foi ouvida apenas como um sussurro e assim como veio, o senhor desapareceu. –

E anos depois, naquele dia em que todos gritavam a sua volta, comemorando sua vitória, Serena lembrou-se do velho senhor. Ela havia se tornado Presidente do Brasil e jurava, que no dia de sua posse, uma cartola antiquada rondava a cerimônia.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

comenteeeem haha o/bjos e até a próxima