Ascensões & Quedas escrita por Deschain


Capítulo 2
Capítulo 0 - II




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/635940/chapter/2

Capítulo 0

Parte 2 – Liberdade

O velho sempre lhe dirigia um sorriso estranho, como se fosse a coisa mais engraçada que já vira. Aquilo o irritava, por isso abaixava sempre a cabeça quando o velho andava pelo pátio e colocava-se a varrer com mais força, descontando sua frustração nas folhas no chão. Aquele humano era o único que poderia (e estava disposto) a ajudá-lo, mas isso não significava que devia aceitar ser tratado como uma criança. Se comparadas as idades, o bebezinho ali era o único que se arrastava lentamente, os ossos frágeis demais devido à idade avançada.

Parou o trabalho por um momento, analisando a vassoura de madeira com irritação. Concordara com o velho quando este disse que se passar por um funcionário do templo era o melhor disfarce, mas não gostava de ser tratado como empregado. Algo lhe dizia que o humano se aproveitava de sua situação e por isso mantinha aquele sorrisinho de deboche. Cerrou os dentes e aumentou a pressão sobre a vassoura, a raiva fluindo como ondas por seu corpo.

O estalo de madeira se rompendo, no entanto, o fez voltar a si. Observou frustrado a vassoura quebrada. Era a quarta vez naquela semana que quebrava algo por descontrole. O velho com certeza lhe passaria um sermão...

Virou-se com agilidade, segurando a bengala no meio do movimento. O velho não o acertaria desprevenido.

— Forte demais para um humano, rebelde demais para um templo. Seu disfarce não durará muito tempo deste modo.

Relutante liberou a bengala do velho e desta vez não se mexeu para impedir o golpe.

— Aceite sua condição, seja subserviente. Ignore quem você foi antes de chegar aqui.

— É fácil para você falar, velho. Não é você que recebe bengaladas na cabeça.

Mais uma vez viu o movimento da bengala com clareza e mais uma vez não se moveu para impedir.

— Se veste como nós, come como nós, mas não quer ser um de nós. Um século se passará antes de ser apto a sair daqui.

Fitaram-se por alguns momentos, o velho com o mesmo sorriso de sempre, ele com as sobrancelhas curvadas. Suspirou.

— Desculpe-me, mestre.

A pequena reverência pareceu satisfazer o homem, que acenou em concordância.

— Muito bem. Vá visitar Hana.

A ordem não foi bem recebida: o desconforto do demônio era visível. Apesar disso ele curvou a cabeça em uma reverência e encaminhou-se para a pequena construção anexa ao templo principal.

Tinha uma vaga lembrança da última vez que pisara naquele lugar: móveis antigos cobertos por lençóis encardidos, camadas espessas de pó, iluminação precária. Fora-lhe oferecido como moradia, mas antes mesmo que pudesse se apropriar do local o idoso, nessa época não tão velho assim, viera com a brilhante ideia do disfarce [o pensamento sempre lhe vinha com a sombra do antigo sarcasmo]. Então o anexo deixou de ser de seu interesse até o dia que decidiram trancar a garotinha.

Lembrava-se do impulso que o levara até ela da última vez.

...

Quando a vira encolhida na pequena sala não conseguiu dissociar a imagem que tinha de anos atrás. Ela ainda era pequena, negra e, acima de tudo, inocente. Seus cachos chegavam-lhe até a metade da cintura fina, os olhos continuavam tão grandes como antes. Contudo o vestido que usava revelava os contornos de uma mulher. Uma mulher bela, porém doente.

A succubus mais doce que tive o prazer de colocar os olhos.

Não era a toa que haviam trancado-a naquele anexo pequeno e sujo. Mesmo ele sentia o poder da garota; uma mistura pecaminosa de inocência e sensualidade. Pobre criatura.

Ela o fitou demoradamente. Seus movimentos eram suaves e lentos, se causados pela doença ou por sua natureza ele não sabia.

— Seu rosto é o mesmo de minhas memórias.

Concordou, acenando para ela.

— O seu também.

A risada dela era melodiosa e contagiante, mas não foi o suficiente para aquecer o âmago demoníaco.

— Seria essa uma prova do seu galanteio ou de sua desatenção?

Os olhos da mulher brilharam estranhamente, o sorriso mantinha-se no rosto, mas algo em sua expressão mudou. Nada que pudesse prender a atenção dele. Ela estava encolhida em uma poltrona, vagamente familiar. No chão um velho tapete manchado, vagamente familiar. Não se encontrava mais no anexo, estava perdido em uma visão antiga, onde uma garotinha falava a uma sombra no meio da noite.

— Quantos anos um demônio pode viver?

A mulher ergueu-se. Não era tão pequenina quanto lembrava.

— Já lhe disse, não se trata de quantos anos ele pode e sim quantos anos ele quer.

O som abafado do tapa preencheu o recinto. A mão dela ainda mantinha-se elevada, paralisada. Ele a fitava com atenção sentindo o lado do rosto arder. Os olhos dela estavam marejados, os lábios tremiam.

— Como pôde dizer isso a uma criança? Como pôde?

Escondeu o rosto entre as mãos. Os ombros tremiam levemente.

Descontrole...

A mão correu pelos cabelos, bagunçando-os. Suspirou. Por que estava ali? Por que fora atrás dela quando soubera de sua transferência? Por que se incomodava com aquela doce criatura?

Descontrole...

Hana era como ele. O ódio que sentia por ela, era o ódio que sentia por si mesmo. Era frágil como ela, odiado por humanos e demônios como ela. Descontrolado como ela.

— Você ainda... Ainda pode sair daqui, não pode?

A pergunta saiu entrecortada, devido aos soluços. A pergunta que se negara a responder anos atrás. Voltou-se para a saída e, com passos longos, chegara à porta. Segurou a maçaneta sentindo o olhar odioso em suas costas.

— Mais uma vez, a pergunta não é se posso e sim, se quero.

Ao fechar a porta atrás de si pode ouvir o som de algo se chocando e quebrando. Não voltaria ali se pudesse.

...

No entanto cá estava ele. Parado em frente a essa mesma porta, graças ao velho.

Abriu a porta com cuidado, como se a qualquer momento algo fosse jogado em sua direção, como se o intervalo de anos entre aquele encontro e este não houvesse existido. Mas nada ocorreu. O anexo mantinha-se como antes: movéis velhos, lençóis encardidos e pó. Nenhum sinal dela. Nenhum sinal de que havia alguém morando ali.

Seguiu o som de tosse seca, chegando então ao quarto. Apenas um criado-mudo, uma cama grande demais e um corpo mirrado. Ela.

— Olá.

Ela lhe sorriu, não sem dificuldade. O sorriso desdentado era doce. Ele acenou a cabeça em reconhecimento ao cumprimento, mas nada disse. Permitiu-se um momento para fitá-la.

— Meu rosto ainda se parece com o que se lembrava?

Endireitou-se na cama, ajeitando os travesseiros sob as costas.

— Não.

A velha riu.

— Percebo que se esqueceu do galanteio.

Algo dentro dele revirou-se, sentia-se tonto. Hana estava magra demais, frágil demais, doente demais. Os belos cachos castanhos haviam sumido substituídos por um emaranhado branco e sujo. Os olhos doces não possuiam mais o mesmo brilho, estavam menores e lacrimosos.

A decadência humana, huh?

— Pena é a última coisa que eu esperaria receber de você.

Ela ainda sorria, mas havia um “quê” de tristeza no tom dela.

— Sinto muito.

A velha talvez não ouvisse, mas mesmo assim fitou as próprias mãos, desconfortável. Não se arrependera, no entanto. Algo lhe dizia que faltara com aquela mulher.

— Foi meu irmão que lhe mandou aqui, não é mesmo?

Viu quando ela estendeu a mão para a dele e a segurou carinhosamente. Quando finalmente a fitou ela chorava. Mas o sorriso nunca saiu de seu rosto.

— Sim.

Percebia a dor dela. Mas o que poderia fazer?

Mentir.

— Quantos anos um demônio pode viver?

O olhar que ela lhe lançou era seguro. Preparou-se para uma discussão quando a respondeu. Mas ela apenas concordou tristemente.

— Eu deveria ter morrido há muito tempo atrás, mas me agarrei a essa miséria.

Sacudiu a mão debilmente, fazendo menção aquele lugar sombrio e velho.

— Você esteve certo o tempo todo...

— Não.

Os olhos da velha abriram-se em surpresa.

— Não?

— Não.

Soltou-se da mão dela enquanto se levantava. Deu-lhe as costas.

— Você ainda pode sair daqui?

— Posso.

— Mas não quer.

Era uma afirmação. Não tinha que respondê-la, mas respondeu.

— Não, não quero.

— Venha aqui.

Virou-se para ela com a sobrancelha erguida. Era uma ordem o que ouvira?

— Venha.

Ela chamou-o novamente, dessa vez impaciente. Algo brilhava em seus olhos, algo familiar. Talvez por isso atendeu à sua ordem. Sentou-se novamente ao lado dela. Hana o abraçou.

Não correspondeu ao abraço. Estava surpreso. Os olhos arregalados em assombro.

— Você se tornou muito ousada, pirralha.

A velha riu e o modo como ela tremia o levou a envolver a cintura fina. As tremedeiras pioraram e não foi com surpresa que sentiu a roupa molhar onde ela apoiava o rosto.

— Pare de chorar.

Mas ao contrário dele, ela não atendeu a ordem.

— Quando você chegou há 80 anos, eu estava assustada. Muito assustada. Mas também estava feliz.

Ela se soltou dele. Hana levou a mão até seu rosto, acariciava-o enquanto o olhava carinhosamente.

— Pela primeira vez pensei que teria alguém para mim. Um sonho egoísta de uma criança. Um sonho egoísta de uma mulher.

As lágrimas ainda rolavam, mas ele agora se obrigava a secá-las.

— Quando você saiu por aquela porta, anos atrás, fiquei louca. Não havia mais ninguém para mim. Nunca houve.

— Não. Está errada.

A velha sorriu tristemente, ignorando-o.

— Vivi esperando meu corpo sucumbir ao meu sangue. Escondi-me por trás da faceta de demônio, porque era difícil e cruel demais lutar por algo melhor. Culpei-te. Odiei-te. Porque você podia fugir disso, mas não o fazia. Como te odiei...

Ela se escondeu atrás das mãos velhas, como havia feito há muitos anos atrás. Os ombros tremiam descontroladamente.

— Uma mistura de humano e anjo. Eu teria lugar fora daqui?

Não.

Hana o fitou sorrindo, a expressão sonhadora.

— Eu percebi alguns anos atrás que eu tinha um lugar. E meu lugar é esse.

Não.

— Passei minha vida toda rejeitando o que eu sou, culpando todos por me tratarem diferente, por me manterem presa como um animal. Odiava-me por ter uma vida miserável. Mas eu sou um ser miserável.

Não.

A velha sorria tristemente.

— Mas apesar de saber tudo isso, por que enquanto eu falo meu coração grita “não”?

Pela primeira vez sentiu necessidade de abraçá-la e não se negou esse capricho. Segurou-a com delicadeza.

— Seu lugar não é aqui.

Com o maior cuidado, passou um braço sob as pernas finas enquanto o outro segurava as costas curvadas. Levantou-a da cama sem dificuldade, prova da perda de peso exagerada que ela sofrera. Caminhou em direção à saída. Hana não aguentaria por muito mais tempo, conseguia sentir, conseguia ver, mas ao menos uma vez faria algo de bom para ela.

Derrubou a porta com um chute, sentindo na boca o gosto maravilhoso de seu poder. A aura demoníaca não se libertou aos poucos como imaginara. Foi como uma grande onda, cobrindo-o, envolvendo-o, saindo dele sem limites.

Livre.

Sorriu diante do pensamento. Hana estava encolhida em seus braços, rindo e chorando. Seu poder provocava o sangue que corria no corpo dela e por um momento pareceu que fitava a mulher provocante, depois a menina inocente. O riso era o de uma criança, não o de uma velha, os olhos brilhavam como haviam brilhado para ele quando se viram no anexo pela primeira vez.

— Você está sorrindo...

A voz doce o despertou da análise, fitou-a curioso.

— É a primeira vez que te vejo sorrindo...

A mão dela passeava por seu rosto. Ele via a adoração nos olhos dela e aquilo o excitou. Puxou o rosto dela e selou seus lábios com doçura. Um momento depois corria em direção à parede do templo, saltando-o com facilidade.

Hana o abraçava e ria. Mais e mais se parecia com a pequena garotinha negra. O vento agitava os tufos sujos, mas o que ele via eram os belos cachos castanhos. O sorriso desdentado brilhava com os dentes que outrora tivera. Os olhos cansados cresciam e brilhavam para ele. Enxergava-a completamente pela primeira vez.

Você apagaria a memória dela se eu tivesse permitido.

Durante muito tempo ele correu. Quando finalmente chegou à campina, Hana estava tossindo, cada vez mais forte. Ele a pousou com delicadeza e viu a velha segurar sorrindo uma das flores.

— Lindo...

Fitava pela primeira vez o mundo que se escondia por trás do vale. Deitou-se.

— Obrigada. Muito, muito obrigada.

Os olhos ardiam vermelhos, mas não impedia que as lágrimas continuassem vindo. Sentia-se livre. Sentia-se...

— Sem limites.

Hana o observou assustada, mas ele apenas sorriu compreensivo. Ela riu. Fitou o céu.

— Saia de lá.

Eles se olharam por um momento.

— Sairei.

— Bom...

Ela sorriu enquanto fechava os olhos.

— Eu sempre desejei morrer em um campo florido.

Ele sorriu tristemente, mesmo sabendo que ela não veria. Sentou-se ao lado dela, fitando o por do sol. Horas mais tarde, de volta ao templo, banhou-a, penteou-a, vestiu-a e só então levou o corpo até o altar onde o velho daria-lhe um enterro decente.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!