Um Estudo em Fanfictions escrita por Mrs Neko


Capítulo 1
Lanche da Tarde


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo se passa algumas semanas após os acontecimentos de Study in Pink.

(E é apenas uma tentativa de imaginar uma cena caseira para acalmar meu coração amargurado com o fato de que a 4a. temporada da série só sai em 2017. :( )



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Um rapaz loiro, baixo e de aspecto simpático, caminha pela Baker Street com a expressão e os movimentos leves de alguém cujo contentamento exala pelo ambiente como um perfume. Trajava-se de maneira simples e casual, com tênis de camurça, bastante usados, jeans escuros, e uma jaqueta de sarja verde, e carregava um pacote envolto no papel típico de embrulhos usados por padarias ou confeitarias.



John Watson não sabia se ficava contente ou admirado, depois da experiência infernal da guerra, por voltar a ter um emprego "comum" e um salário fixo. Sua vida tornara-se uma completa loucura, imprevisível e totalmente desprovida de rotina, depois de, numa visita ao hospital St. Barts, conhecer o exótico Sherlock Holmes, o único detetive consultor do mundo.



Que atualmente estava há quase um mês sem nenhum caso complexo o bastante para entreter seu intelecto, tão inacreditável quanto a própria infantilidade. Os imbróglios trazidos pelo infeliz Greg Lestrade, inspetor de polícia, eram resolvidos sem que o moreno sequer levantasse da poltrona de couro preto da sala ou largasse a bagunça homérica do laboratório improvisado na cozinha. O rapaz jogava insultos, deduções e objetos no aflito homem da lei, e queixava-se de tédio mortal tão logo Gregory ia embora.



O bom doutor Watson tinha a sorte de não presenciar estes chiliques, enquanto trabalhava fazendo plantões num hospital. E já que tinha acabado de receber o salário, e de pagar as despesas do apartamento, lhe ocorreu que trazer uma pizza recém-saída do forno, além de ser uma ótima forma de comemorar uma folga do trabalho, talvez serviria também para animar o companheiro, ultimamente mais mal-humorado que um velho rabugento convalescente.



E parecia que a dama da Sorte realmente tirara a tarde de começo de outono para sorrir, dourada e tranquila, ao paternal ex-médico militar, com uma pequena e prática gentileza. Watson sequer precisou pensar em equilibrar o embrulho enquanto procurava pelas chaves; o movimento repentino da porta de madeira maciça, pintada de verde, logo deu lugar à presença discreta, esperta e bem-vinda da senhoria.



- Oh, olá, docinho. Voltou mais cedo do trabalho?



Diminutivos inadequados à idade e sorrisos maternais pintados de batom nunca eram desagradáveis, vindos da sra. Hudson. Enternecido com as boas vindas, e pensando que o clima quase frio e a hora próxima do anoitecer talvez não fizessem muito bem à saúde da senhoria se ela saísse à rua, John resolveu convidá-la a compartilhar do lanche que ele trazia, para variar um pouco.



- Graças a Deus, nenhum paciente piorou, nem tivemos novos casos para dar muito trabalho... Então passei pelo caminho e comprei uma pizza. Quer subir e comer com a gente?



- Obrigada, é uma ótima ideia!! - o sorriso colorido de bordô cresceu um pouco, com sinceridade e simpatia, acompanhando o brilho travesso dos olhos escuros. - Vou arranjar um chá para acompanhar. Ou quem sabe um vinhozinho. Combina mais, não é, querido?



Enquanto a pequena senhora entrava em casa à procura das bebidas, o médico subiu o lance de escadas até o apartamento 221B e deparou-se com uma cena inusitada e digna da descrição de um bom ilustrador.



Seu colega de apartamento, deitado no sofa, de cabeça para baixo, com as pernas quase intermináveis envoltas em moletom, os dedos dos pés descalços inconscientemente brincando com os buracos de bala na parede, os braços longos e pálidos estendidos no chão frio, e o torso magro protegido apenas pela camiseta do pijama.



Apesar da posição estranha, o rosto emoldurado pelos cachos escuros espalhados pelo chão demonstrava a sossegada preguiça de um gato gloriosamente esparramado em algum lugar muito confortável.



E, em vez de cumprimentá-lo, como a meiga idosa, ele apenas desviou os olhos azuis, com uma preguiça ainda mais absurda que o desinteresse e a desilusão, como se o gesto demandasse muito esforço, ao confirmar que a porta de casa se abria para o companheiro, ao invés de Lestrade ou um cliente em potencial. O rapaz mais baixo resolveu apenas ignorar a usual falta de educação do detetive consultor, enquanto colocava o embrulho da pizza sobre a pia.



- Oi, Sherlock.



- ...



O jovem investigador virou-se de costas para John, enroscando-se no tapete da sala, numa curva estranha que lembrava ainda mais a postura de um felino.



- Levante o traseiro daí e venha tomar um lanche com a gente, eu trouxe uma pizza, e a sra. Hudson está subindo - convidou o loiro, enquanto tentava não perder a paciência diante do medonho laboratório improvisado na mesa da cozinha. Felizmente a ausência de casos impedia que partes avulsas da anatomia humana cohabitassem o apartamento, mesmo assim, a bagunça assustadora que o jovem Holmes deixava na cozinha daria inveja a um filme trágico de ficção científica, ou a imaginação psicótica de algum cientista maluco. Era melhor jogar todas aquelas substâncias estranhas no lixo, antes mesmo de tentar descobrir seus componentes.



- Ora vamos, deixe de criancice, e vamos comer! - chamava o doutor, enquanto limpava a mesa com uma esponja e um pano úmido.



O interlocutor fechou os olhos claros, para apreciar melhor o efeito da voz baixa, rouca e doce, mesmo com o plano de fundo do barulho de pratos, gavetas e talhares mexendo. Não havia problema algum em perder aquelas amostras, o marasmo insuportável daquele dia o fez repetir a mesma experiência, por vezes sem conta. Logo sentiu a aproximação do pequeno amigo.



- O que você tem? Aposto que não comeu nada hoje.



- Não estou com fome. - Sherlock finalmente respondeu, com a mesma lentidão com que voltava a estender as pernas sobre o sofá. - Meu único mal é tédio.



- Achei que estaria bem entretido, já que passou o dia todo bagunçando a casa.



- Qual é o seu problema, John?! Você não é minha mãe! - Sem sucesso, o rapaz de cabelos cacheados apenas tentou intimidar o outro com um olhar azul-esverdeado de ira, malfadado pelo beicinho de zanga infantil.



Watson se abaixou diante do amigo, e aproveitou-se inconscientemente de que, ao menos uma vez, não seria prejudicado pela diferença de altura.



Ter a certeza de que chegaria em casa e encontraria seu companheiro são, salvo, e absolutamente distante de assassinos, terroristas, redes criminosas internacionais e outras hordas de malucos que costumavam ameaçá-lo, era uma paz inestimável em sua vida. Por outro lado, era lamentável ver que a inatividade, quando não tornava o detetive num histérico raivoso, deixava-o tão triste quanto uma criança abandonada.



O pobre ex-combatente não era nenhum titereiro do Serviço Secreto, tampouco um gênio do crime; então não dispunha de nada que pudesse chamar a atenção do jovem desanimado... Nada além de um pouco de apelação. Preocupou-se, além da melancolia, com a magreza do rapaz moreno. Até que com um pequeno movimento do quase felino deitado no chão da sala, a camiseta de algodão deixou à mostra um ótimo alvo, e ele brincou com sua vítima, com um delicioso sorriso.



- Já que você continua fazendo birra, vai levar castigo!



E antes que o entediado detetive pudesse sequer pensar numa reação, um certo soldado o atacou com... cócegas na barriga.



John saboreou a pequena vitória da surpresa do amigo, que chegava aos olhos de azuis mesclados com o dobro do tamanho, e às altas e ossudas maçãs do rosto tingidas de rosado. Curvou-se sobre o corpo esguio do mais jovem, e segurou-o com cuidado e firmeza, apenas o suficiente para que ele não tentasse escapar de seu toque. Mas quem terminou surpreendido foi o próprio médico. Ao contrário da usual misantropia, que o levava a detestar contato físico, Sherlock não ficou revoltado, não o repeliu, nem tentou escapar.



Sherlock estava rindo, como um garotinho deliciado. Um som inesperadamente doce, espontâneo e delicioso, com uma leve nota de ingenuidade infantil, que parecia impossível à voz profunda, mas subia da alma ao riso cheio de dentes e às lágrimas das gargalhadas que escapavam dos olhos fortemente fechados, traços faciais coloridos, graciosamente corados; e emoldurados por várias covinhas assimétricas. E era a primeira vez que seu amigo lhe mostrava todas elas.



E John percebeu que nunca tinha visto Sherlock rir com tanta sinceridade e prazer. Sherlock jamais sorria, se não houvesse um propósito para fingir, atuar uma expressão sorridente. Uma postura de certeza arrogante para convencer um júri indeciso; um apetite psicótico e predatório pela desgraça, durante o interrogatório de um suspeito; um esgar de desprezo para quem não reconhecesse ou não compreendesse o alcance de suas deduções; o prazer zombeteiro após um caso encerrado com sucesso... Ele apenas curvava um lado, se muito uma ou duas covinhas da boca bem esculpida, e conseguia fingir uma riquíssima variedade de emoções. Com o mesmo controle férreo que dominava sua mente, ele manipulava o corpo e suas expressões, como um ator talentoso.



Por uma única vez, no dia em que se conheceram, ele havia saboreado o pequeno riso cúmplice do companheiro, afável e agradavelmente fora de hora, como a expressão de uma criança travessa... Fora de hora era uma expressão modesta para a conduta mais do que suspeita de ambos, rindo à vontade enquanto se afastavam da cena do crime que o próprio John tinha acabado de cometer.



Nunca, porém, o doutor se arrependeria de ter atirado no taxista que "suicidava" os passageiros. Pois o alívio de ter o amigo, são, salvo e alegre ao seu lado, levou embora qualquer sombra possível de arrependimento; no desejo de ouvir mais daquele riso brincalhão e ingênuo, que não combinava em absolutamente nada com o homem misterioso que ele tinha conhecido há tão poucas horas.



O que mais ele esconderia sob a capa de seriedade invencível e sobrehumana?



O bondoso soldado preocupou-se em saber o motivo que isolava seu amigo naquela clausura triste, tanto quanto desejou dar-lhe atenção e afeto, e fazê-lo sentir-se acompanhado e alegre, e rir daquele jeito sincero e delicioso. Não era nenhum exímio na análise das expressões e sentimentos alheios, mas sempre identificava frieza e solidão no palácio mental que o detetive construiu para analisar o mundo e servir-lhe de armadura, um lugar para se esconder e se sentir seguro.



Só por um pouco de tempo, John queria ter o deleite de ver seu colega despido daquela armadura inútil; não pedia algo irrealizável ao amigo, queria apenas brincar com ele, e agradar a ambos com um pequeno momento normal de sossego e descontração. Na vontade de ouvir mais daquele agradável som do riso recém-conhecido, o loiro continuou a afagar o companheiro com cosquinhas... Até o instante em que sua atenção foi capturada por um pequeno suspiro feminino, e o rapaz virou-se para a porta da cozinha.



- Sra. Hudson!!! - admirou-se o loiro.



- Vejam só, meninos, que vinho mais delicioso que eu achei! - a senhoria entrou erguendo uma garrafa de vinho do Porto, com um sorriso fino que, além de doçura maternal, continha um divertimento maroto, diante do moreno que fazia um movimento sinuoso para sentar-se no chão, com a coluna reta e a atenção fixa na idosa, e do loiro à procura de um esconderijo adequado para morrer de vergonha. - Ora, John, não há nada do que se envergonhar, vocês ficam tão fofinhos juntos!



- M-ma-mas, quantas vezes tenho que dizer?! Nós não somos um casal!! - o pobre rapaz baixinho, desesperado, estava mais vermelho que um tomate maduro.



Sherlock riu em silêncio, com o seu típico meio sorriso, e levantou-se tranquilamente, enquanto terminava de arrumar a mesa e ignorava os dois amáveis bobos corados que discutiam sem noção nem necessidade; John, ainda em busca de um canto para se enterrar até o dia seguinte, e a sra. Hudson na epifania açucarada de uma mocinha que se emociona com o final de uma comédia romântica. Diante daquela situação que lhe parecia tão ridiculamente engraçada, o detetive apenas serviu-se de um copo de vinho e uma fatia generosa da pizza morna, e voltou a sentar-se no chão da sala, admirando a quase briga de sua adorável família disfuncional.



Já fazia tanto tempo que não experimentava aquele estranho combinado de constrangimento, conforto e ternura! Era uma emoção que povoava suas memórias distantes da infância, quando podia brincar com Mycroft, antes que o primogênito vigiasse dias e noites a fio de trabalho e estudo, e, assim como o pai, não tivesse tempo para dedicar atenção à família.



E ele viveu muitos anos de sua vida, na tentativa de fixar em seu cérebro hiperativo a ideia de que o cuidado e o amor caloroso de uma família eram distrações entediantes à sua capacidade laboral, o único valor de sua existência, e a única coisa capaz de mantê-lo relativamente longe das drogas.



Mas ele tinha recebido a estrela generosa de ser adotado pela ex-contadora de um cartel de drogas, [1]e por um traumatizado sobrevivente de guerra, [2] que, logo após conhecê-lo, além de ajudar num caso intrigante, matou um serial killer.



Sua família ansiava em alimentá-lo, cuidar da sua vida e mandar nele sem motivo, como qualquer outra. Mas era tão amoralmente envolvida na Morte quanto ele próprio.



Tudo que Sherlock Holmes podia fazer enquanto aguardava seu próximo caso, era obedecer aos cuidados de sua família, e agradecer a quaisquer divindades que houvessem tecido suas ligações complexas, por ela mantê-lo sempre longe do tédio e da loucura.



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Notas finais do capítulo

1. Todo mundo que teve o gosto de assistir o primeiro episódio viu Sherlock explicando pro John sobre a "ajudinha" que ele deu ao Sr. Hudson. Mais tarde, no episódio em que aparece o maldito Charles Augustus Magnussen, descobrimos que a Sra. Hudson era obrigada pelo marido a fazer a contabilidade do cartel de drogas que ele controlava, na Flórida.
2. Também em ambas as versões de Study in Pink, vemos que, atormentado pelos pesadelos do campo de batalha, John foi diagnosticado pela terapeuta com transtorno de estresse pós-traumático, uma patologia muito comum em sobreviventes de guerra (CID 10 F43.1). No episódio piloto, Sherlock acreditou nesse diagnóstico, até a sortuda hora em que o soldadinho corajoso saiu correndo atrás de um taxi. Na versão oficial da série, Mycroft aconselhou o dr. Watson a procurar outro psicólogo, só de olhar para a mão trêmula mas perfeitamente capaz de atirar do loirinho. (Não sou médica nem psicóloga, estes dados estão na Wikipédia, porém se você precisar de consultas ou auxílio psicológico, pode procurar a triagem da Faculdade de Psicologia da USP, em dias determinados da semana, sempre pela manhã.)
3. [ajoelha-se] Você por favor me perdoa se eles ficaram OOC?



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