Dinah Charles: Uma Semana e Três Contos escrita por Arquivo


Capítulo 1
Mattie, a Boneca.




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Meu pai nunca se deu muito bem com minha avó, a mãe da minha mãe. Ela nunca foi do tipo “pedra no sapato”, nem nada do tipo, ele apenas tinha medo dela e evitava me deixar visita-la. Mas eu adorava minha avó, ela era uma verdadeira contadora de historias tanto engraçadas como estranhas. E foi em um verão que meu pai foi tocado pelo destino e precisou ser internado, naquela época eu tinha apenas 12 anos, eu sinceramente não me lembro do que ele tinha, mas minha mãe precisava ficar ao seu lado no hospital por uns dias, então foi decidido que eu passaria uma semana com minha avó. E lá estávamos nós duas arrumando minha cama no quarto de hóspedes.

–Vou arrumar um abajur para você, deve haver algum encostado no porão.

–Obrigada, eu não gosto de dormir com o quarto todo escuro...

–Muito menos eu, olhe que já sou uma velha. – Ela gargalhou, sua voz grossa e rouca não combinava com sua aparência fofinha e risonha.

Ela trocou os lençóis da velha cama e eu comecei a organizar minhas roupas no armário. Estava completamente vazio, mas havia apenas uma caixa de sapatos empoeirada no espaço da sapateira. Minha curiosidade falou alto, então eu a abri e me deparei com uma meiga boneca antiga.

–Como é linda, essa boneca.

Ela olhou para mim e sorriu.

–Obrigada, eu mesma a reformei.

–Reformou?

–Sim, muito tempo atrás eu quebrei seu rosto em um milhão de pedacinhos, minha irmã ficou arrasada e eu também, pois adorávamos essa boneca.

Eu limpei suas bochechas com minha camisa, a porcelana reluzia novamente.

–Deve ter sido uma queda feia, a porcelana é bem grossa.

–Ela foi esmagada.

Ela se sentou na cama e eu me sentei ao seu lado segurando a boneca.

–Esmagada?

–Sim, sim... eu tinha 9 anos quando meu pai nos deu de aniversário uma boneca para cada, mas eu e minha irmã só nos interessamos por uma, “Mattie” era seu nome. – Ela puxou uma corda que estava atrás da boneca.

“Eu amo você”.

–Que gracinha! – Eu geralmente não gostava de bonecas com mensagens gravadas, mas sua voz era melodiosa como a de uma verdadeira menininha.

–Mattie era nossa melhor amiga e convidada VIP de todos os nossos chazinhos. As vezes sem nem mesmo puxar a corda, no meio da noite minha mãe entrava em nosso quarto e nos duas sempre acordávamos com as batidas. Ela sempre jurava ter escutado Mattie dizendo: “Eu te amo, Doris”.

–Quem é Doris?

–Era o nome de minha mãe, ela achava que devia estar delirando, mas de fato eu e minha irmã também escutávamos ela falando de vez em outra o nome de nossa mãe.

Eu estava ficando assustada. Minhas mãos que ainda seguravam a boneca começaram a suar.

–Isso é uma brincadeira, não é?

–Na verdade, Mattie ia ser o nome de nossa irmã mais nova, quem morreu aos dois anos de idade de pneumonia.

–Eu sinto muito, vovó.

–Que nada, minha querida. Eu e minha irmã tínhamos 4 anos quando Mattie morreu, não tenho memoria nenhuma dela, mas de uma coisa eu me lembro. - Ela segurou a boneca em pé, organizando e desamassando seu vestido. – Todas as roupas da boneca eram feitas por nossa mãe e ela cantava para nós três antes de dormir, como três bebês. Quando brincávamos no parque, nossa mãe ficava com ela em seu colo enquanto estávamos na gangorra ou nos balanços.

–Vovó?

–Sim.

–Você não está insinuando que a Mattie 1 tem alguma coisa haver com a Mattie 2, não é?

–Na verdade eu estou totalmente falando disso, uma vez que você não me deixou chegar ao fim da história.

–Desculpe.

–Continuando, era nosso aniversário de 14 anos.

–Um grande pulo no tempo, hein...

–Silencio menina! Bem... como eu estava dizendo, era nosso aniversário, mas ao mesmo tempo ainda não era. Ainda iam fazer 3:00 da madrugada, quando um enorme tremor começou em nossa rua. Claro que não só em nossa rua, na cidade toda, um enorme terremoto que destruiu muitas casas, incluindo a nossa.

–Minha nossa...

–Quando acordei tudo continuava bastante escuro, eu e minha irmã estávamos deitadas no chão e vários pedaços da parede, do teto e de nossa estante de livro nos cobriam, mas não nos esmagavam.

–Como saíram?

–Alicia estava desacordada, então eu tentei gritar, mas a poeira em minha garganta não me permitia dar um piu sem tossir até perder o ar. Foi então que eu ouvi o grito.

–Grito?

–Sim, um grito que parecia um choro de neném, como uma criança abandonada ou machucada, vinha direto de minha irmã, mas eu não podia ver nada direito. Era tão alto que os bombeiros e policiais que andavam sobre os destroços de nossa casa escutaram. Eles levantaram a estante que havia caído por cima de nos, mas era impossível ela ter caído e não ter batido em nossas cabeças. A luz da manhã iluminou os destroços, olhei envolta e vi minha irmã desacordada e no meio de nós duas estava a boneca Mattie, ela estava perfeitamente de pé. Sem cabeça.

–Onde foi para a cabeça dela?

–Foi esmagada, como eu disse. Pela estante que ao cair ficou apoiada sobre a altura da boneca. Como uma rampa de madeira e seu apoio. Sem Mattie, aquela estante teria nos esmagado as cabeças.

–Obrigada, Mattie! – Eu segurei a pequena mão da boneca e a cumprimentei.

–Eu acredito que tudo o que emite som, possui a palavra secreta para a vida. Como os judeus acreditam. Quando me perguntou se as duas Matties tinham alguma ligação, creio que as duas fossem a mesma, pois a boneca Mattie sabia o que é perder uma criança. Eu acho que o que ela fez não foi por mim e nem pela a minha irmã talvez, mas por nossa mãe.

–“Fez”?

–Com 12 anos de idade, nossa mãe deu a boneca Mattie para nossa prima que estava comemorando 6 anos. Mattie deveria estar em Nova Orleans há mais de dois anos.

–M-Mas então... como...?

–Não, Não, nada mais de questionamentos, Mattie precisa voltar para a caixinha dela.

Eu ainda estava curiosa sobre aquilo, mas como eu disse, minha avó era uma contadora de histórias, sejam verdade ou não, ela não é uma boa explicadora. Segurei Mattie com carinho e a coloquei de volta em sua caixinha. Minha avó saiu do quarto logo em seguida.

Eu me inclinei sobre a boneca e beijei sua testa.

–Boa noite, Mattie.


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