Acasos escrita por Renata Guimarães


Capítulo 12
Capítulo 12




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Eu acordei tendo um ótimo dia, me senti como aquelas princesas da Disney que acordam cantando para os passarinhos. E fazendo as atividades mais chatas do dia com uma alegria infinita. Então, eu estava exatamente desse jeito, só que eu não canto, mas eu consegui ficar feliz até por destrancar a porta e abrir as janelas. Estou me sentindo plena. Posso não cantar, mas acho que nunca pintei com tanta alegria, normalmente eu pinto com calma, relaxada, reflexiva até. Hoje eu resolvi aproveitar os poucos minutos antes de ir trabalhar para pintar e eu estava tão alegre que resolvi começar algo novo, que tivesse a ver com como eu estava me sentido. Então decidi pintar algo abstrato que expressasse meus sentimentos em tons de azul e cinza que eram as duas cores mais citadas na última música que ouvimos ontem. Peguei a menor tela que eu tinha e pintei transferindo para a tela toda sensação de plenitude e felicidade que pude dos dedos para a tela. Dessa vez eu optei por abrir mão do pincel e sentir a tela para que eu pudesse realmente transferir emoção pelo toque. Do mesmo jeito que eu e ela transferimos pelos nossos toques, sentimentos, emoções e sensações ontem. E no chuveiro quando a tinta escorria junto com a água eu vi tanta beleza naquele simbolismo que com meu rosto embaixo da água meus lábios estampavam um sorriso largo.

Eu tenho certeza absoluta que o Gabriel vai fazer algum comentário sobre meu excesso de alegria ou algo do tipo, então já ando me preparando pra tentar disfarçar e me fazer de madura, para não parecer uma adolescente pulando de alegria. Já me imagino entrando no estúdio como se nada tivesse acontencido. Vou fazer a sonsa. Aposto que ele vai esperar que eu chegue contando tudo que aconteceu, mas só vou contar quando ele perguntar. Abro a porta do estúdio com a cara mais comum que eu consigo estampar, como se fosse só mais um dia comum de trabalho e que nada tinha acontecido ontem. Fui até o Gabriel, dei bom dia para ele, mas nem parei de mastigar o chiclete que eu tinha na boca pra tentar ficar com mais cara de quem estava sossegada. E para minha surpresa ele nem pra minha cara olhou direito, continuou organizando umas coisas na recepção sem nem parar para conversar comigo, só devolveu meu bom dia. Eu fiquei por um tempo parada na recepção, esperando para ver se ele ia parar pra conversar, mas ele não parou e eu mantive a linha e fui cuidar das minhas coisas. Entrei para minha salinha e comecei a organizar as tintas, limpar a minha estação de trabalho, joguei algumas coisas que no lixo e passei um pano com álcool para limpar a bancada onde eu faço os esboços. Todo esse meu trabalho de organização deve ter levado um tempo e o Gabriel só apareceu na minha sala para falar da cliente que tinha hora marcada e eu mandei ela entrar. Ela já tinha me mandando o que pretendia tatuar por e-mail, era a foto da irmã dela, eu preparei o desenho ontem quando tive tempo livre.

— Eu fiz o esboço ontem, olha aqui – mostrei a ela o esboço baseado na foto – vê se você gostou, se quer que eu mude alguma coisa, se posso melhorar algum ponto…

— Não, tá ótimo, só queria pedir para dar bastante destaque para os cachos dela que sempre foram tipo “a marca registrada” dela.

— São lindos cachos, pode deixar que vou dar bastante destaque a eles.

Ela se deitou de bruços na cadeira de tatuagem e eu comecei o processo porque era um desenho grande, ia levar algum tempo.

— Vocês são irmãs gêmeas? Porque vocês são muito parecidas.

— Não – ela riu – mas todos falam isso, a gente sempre teve o rosto parecido, mas o cabelo dela é cacheado e eu optei por alisar o meu.

— E porque você decidiu tatuar uma foto da sua irmã, vocês são muito próximas?

— Nós éramos.

— Eram?

— Sim, ela faleceu a dois anos, amanhã seria o aniversário dela então eu queria ter algo que me lembrasse dela.

— Meus pêsames, mas ela parecia tão nova na foto, como ela morreu? Se não for demais perguntar, se não quiser responder eu entendo.

— Tudo bem perguntar, já faz dois anos não doí tanto quanto doía falar antes, ela teve um mal súbito e morreu, foi um AVC, foi algo do nada e inesperado, porque AVC não é algo comum para a idade dela.

— Nossa, deve ter sido devastador.

— Sim e pior é que eu sinto muita culpa, quando ela teve esse mal súbito, eu tinha saído com meu marido e minha filha, minha mãe também não estava em casa, então eu fico pensando que se talvez eu estivesse lá eu poderia ter ligado para a ambulância, ter conseguido socorro.

— Não tinha como você prever isso.

— Eu sei disso, mas não posso evitar de pensar que eu devia ter ficado em casa, assim talvez ela teria uma chance, mas quando eu cheguei em casa ela estava caída no chão perto do sofá, quando eu chamei a emergência já era tarde, ela já estava morta.

— Então essa tatuagem é como uma homenagem a ela?

— Sim, ela era uma pessoa maravilhosa, super alegre, onde entrava ela acendia o lugar com sua personalidade sempre para cima e seus lindos cachos, então eu queria eternizar uma foto dela que transmita tudo isso.

— É como dizem os bons morrem jovens.

— Sabe o que eu acho mais engraçado? Ano passado eu tive uma filha e elas são muito parecidas, mesmo estado de espírito e minhas filhas tem os cachinhos iguais o dela.

— Minha mãe é cristã, não tem nada a ver com a fé do cristianismo isso, mas ela sempre acreditou que as pessoas “renasciam” porque ela observava que em algumas famílias esse tipo de coisa acontecia, alguém nascer com característica de alguém que já se foi, mesmo essas pessoas nunca tendo convivido.

— É, isso é um mistério da vida, não sei se as pessoas renascem, mas que é algo curioso realmente é.

Eu estava concentrada em fazer um traçado perfeito dos cachos, pra mim como tatuadora é maravilhoso fazer uma tatuagem com significado. É legal fazer tatuagens sem significado algum. Só que saber que você pode trazer tantas lembranças para alguém por meio da sua arte e saber que sua arte conta uma historia que não tem nada a ver contigo é maravilhoso. É a coisa menos egoísta que existe. Normalmente quando se pinta um quadro, você conta o que você bem quiser. Só que em uma tatuagem você muitas vezes está contando a historia de alguém por um desenho. E nesse caso é como imortalizar alguém. A irmã dela sempre vai estar junto com ela. Isso me deixa emocionada e por isso eu fico calada um tempo e focada na tatuagem. Pra não chorar do nada. Essas coisas realmente me deixam sensíveis. Eu era muito apegada com minha família. E perder algum deles seria como perder um pedaço de mim mesma. Ficar longe deles já é horrivel. Quanto mais perder… Gosto nem de pensar.

O retrato logo vai tomando forma, o sorriso, os cachos e o formato do rosto, só falta desenhar a parte do corpo. Depois que eu terminar só será necessário dar cor ao sorriso, aos cachos e a pele parda e voilà. Quando estou separando as cores que vou usar para pintar o Gabriel bate na porta e entra.

— Com licença, meninas.

— Pode falar.

— É que tem gente te esperando aqui fora.

— Ué, mas a minha próxima consulta nem é agora, é só daqui a algumas horas – olhei para o relógio na parede e eu estava correta sobre o horário.

— Não é a próxima cliente, quando você estiver disponível, ou melhor… Quando terminar, resolvemos, não queria te apressar é só que temos uma situação.

— Ta bom...

Uma situação? Ele sai da sala e eu faço uma cara de confusão. Será que isso é desculpinha pra fofocar? Porque normalmente quando tem cliente para ser encaixado, que não tinha hora marcada e que quer fazer tatuagem, o Gabriel espera alguém ficar disponível. Ele não entra na sala interrompendo a tatuagem. Não é comum entrar na sala assim do nada, só quando é algum cliente marcado que resolve antecipar por imprevisto, ai o Gabriel se vê obrigado a avisar, mas pelo visto não é o caso se não ele teria dito. Acho que pode ser ele querendo conversar, mas seria bem idiota da parte dele atrapalhar do nada a tatuagem. E se fosse algo sério ele teria me dito na hora. Voltou meu foco de volta para a tatuagem, coloco a tinta na agulha e vou pintando a tatuagem sem nem ao menos cogitar apressar o processo. Sempre tem que ter em mente o cliente. Tento me manter profissional e tatuo como se nada tivesse acontecido. Demora uns bons 40 minutos para eu terminar de pintar cada detalhe.

— Pronto, pode ir lá ali no espelho da parede olhar como ficou.

Ela levanta com cuidado para não bater a tatuagem na cadeira e anda até o espelho, vira a perna para conseguir visualizar e fica um tempo analisando a tatuagem.

— Nossa, tá linda! Olha só os detalhes, os cachinhos dela… Parece que você colou a foto na minha perna, tá muito linda.

— Você merece.

— Posso te dar um abraço?

— Pode.

Me levanto e vou até ela de braços abertos e sinto uma lágrima dela bater no meu ombro quando termino.

— Nossa serio, muito obrigada.

— Por nada, eu que tenho que te agradecer pela oportunidade de eternizar uma pessoa tão maravilhosa e que é tão marcante pra você.

Acompanhei ela até a porta da sala, nos despedimos e ela foi embora. Eu voltei para a sala, coloquei tudo em ordem, joguei fora as agulhas que utilizei, joguei fora as luvas que eu deixei na bancada e o que usei para limpar o sangue e fui ver o que o Gabriel queria. Sai da sala já falando alto e falando.

— O que foi, Gabriel? Pra você me interromper é bom ser importante.

Ele me segurou no corredor antes que eu fizesse a curva para a recepção.

— Calma, fica aqui.

— O que foi, garoto? – Eu arregalei os olhos assustada.

Tudo de ruim me passou pela cabeça, assalto, tiroteio, briga…

— Sabe quem tá aqui?

— Um assaltante? – Eu levei a mão no peito assustada.

— Que assaltante, calma, relaxa… – Ele tirou a minha mão do meu peito e fez para eu me acalmar com as mãos. – É aquela mina do atropelamento… Eu sou pessimo com nomes, qual o nome dela… Ela me falou, mas eu não lembro.

— Hã? – Do que caralhos ele tá falando?

— Eu nem lembrava do rosto dela, mas quando ela falou que te conhecia e que trouxe os amigos para se tatuar contigo ela disse que lembrava de mim e explicou de onde e bá.

— Mayra?

— Isso! Mayra.

— Mas como assim? Ela não falou nada pra mim.

— Ué, ela falou que vocês tinham combinado.

— Não, eu combinei de sair com ela a tarde para grafitar ia até te chamar, não falamos nada sobre tatuar os amigos dela.

— Ué que estranho.

— Como que ela chegou aqui? Nunca falei onde é o estúdio.

— Mas você falou onde trabalha não falou?

— Falei.

— Ela deve ter conhecido a fachada né, ou seilá tem endereço na internet... Vai lá falar com ela, garota.

Ele saiu me empurrando para a recepção e eu dei o maior sorriso sem jeito eveeeeer, tinha umas seis pessoas na recepção e todos deram um sorriso ou gritaram oi quando me viram. Já a Mayra saiu entrando por trás do balcão e me dando um abraço, eu fiquei dura igual pedra por estar estranhando toda aquela situação. Que situação mais constrangedora. To me sentindo quando eu tinha 8 anos e tinha uma festa surpresa para mim cheio de desconhecido e com o tema “jesus é bom” sendo que eu fiquei pedindo para ser pokémon coisa que para minha mãe era do demônio. Então não é nada bom quando uma situação me lembra de uma festa de 8 anos onde eu realmente me surpreendi com a festa, mas a surpresa foi se tornando cada vez mais estranha desagradável e mais negativa. Simplesmente paralisei naquele sorriso sem graça, sem dizer nada só com a cara de alguém em estado vegetativo.

— Galera, essa é a Alana. – Eu dei um aceno igual uma retardada com o mesmo sorriso de idiota na cara. – Alana, essa é a galera. – Eles fizeram barulho e acenaram de volta e conversavam entre si.

— Ãm… – Tentei falar alguma coisa mais travei, ela olhou para minha cara, juntou as sobrancelhas em duvida e se virou para o Gabriel.

— Então amigão… Onde fica a sala de tatuagem.

E o Gabriel foi conduzindo aquelas seis pessoas mais a Mayra para a sala de tatuagem. E eu fui atrás ainda processando tudo. Eu queria puxar ela no canto para perguntar o que era aquilo tudo, mas seria tão estranho, seria eu fudendo tudo… Talvez seja só uma tentativa de surpresa dela.

— Então é aqui que você vai tatuar a gente? – Perguntou a voz de uma garota e quando meus olhos a encontraram no meio da “galera” era a garota que estava junto da Mayra no dia do atropelamento.

— É, eu tinha alguns desenhos para fazer antes do meu último cliente da manhã, é o desenho da tatuagem dele e também eu ia dar uma adiantada…

Minha voz foi abafada pela gritaria. Eu tentei explicar que eu tinha alguns desenhos para fazer. Porque eu adianto muita coisa do meu trabalho, desenhos, retratos e faço esboços de tatuagem que tenho agendadas ao longo da semana, também coisas que recebo por e-mail. Normalmente eu uso o tempo entre um cliente e o outro para adiantar essas coisas e maximizar meu tempo de trabalho. Só que se eu tiver que tatuar eles vai atrasar essa parte do meu trabalho, o que me deixa pouco confortável. Em questão de segundos apareceu um ser com um portfólio da recepção cheio de arte de tatuagem e começaram vasculhar em busca de algo para escolher.

— Galera, vamos escolher coisa pequena que não temos o dia todo. – Mayra falou alto para todos os amigos ouvir.

Eu fiquei parada observando eles interagindo, olhando os portfólios, folheando freneticamente.

— Que cara é essa, garota?

— Minha cara.

— Você mudou totalmente de feição, você pode não tem percebido, mas quando eu te segurei no corredor, mesmo você estando reclamando, estava toda sorridente.

— Aé?

— Uhum e agora… Puft! Essa expressão totalmente mudada, não gostou? Posso expulsar todo mundo daqui.

— Não, não é isso, não que eu não tenha gostado, aposto que ela fez tudo isso de boa intenção, só… É que to em choque, só isso.

— Você consegue, vão ser só algumas tatuagens pequenininhas, coisa rápida pra você, pensa pelo lado bom, a boca que você beija está logo ali. – Ele me deu um cutucão com o ombro.

Gabriel ficou ao meu lado mesmo eu não tendo respondido nada, se ele não tivesse ali eu ficaria completamente de lado. Mayra estava ali com os amigos rindo e escolhendo tatuagem e eu estava aqui observando ela rir e brincar. Tentei ficar feliz pela felicidade dela e pensei na sensação que me deu de querer ficar um pouco mais perto dela quando nos despedimos. Talvez ela tenha sentido o mesmo e por isso está aqui. Então não tem porque eu dar uma de rabujenta, melhor eu baixar a guarda. O que fui fazendo aos poucos.

— Então, todos os sete vão fazer a tatuagem?

— Não, nós temos dois pirralhos no recinto, menores de idade, então vão ser só cinco tatuagens. – Mayra disse, se aproximou de mim e me deu um selinho. – Tudo bem? Senti sua falta.

— Tudo bem. – Dei um sorriso.

— Porra, tive uma puta ideia. – Disse a amiga do atropelamento com seu cabelos cacheados e com californiana. – Podemos tatuar um longboard, ai vamos ter a mesma tattoo e eu não vou ter que esperar esse bando de indeciso.

— Por mim tudo bem.

— De boa.

— Então fechou. – Mayra disse, logo depois do povo que eu não conhecia o nome e muito mal o rosto.

A garota do cabelo cacheado catou a minha caneta e um pedaço de papel que eu faço os esboços que coloco nos decalques para a tatuagem. Já apoio o papel na minha mesa de trabalho e começou a desenhar o long do jeito que ela achou que deveria. Eu achei meio abusado não pedir nem licença, mas fiquei quieta e me aproximei para ver o desenho. Ela foi fazendo os traçados do long deitado, como se ele estivesse em pé em uma rua, terminou e mostrou o resultado. E eu tinha uma ideia melhor na minha cabeça.

— Olha, ficou bom o desenho, só que eu acho que se ele ficar em pé como se tivesse de costas apoiado em uma parede, mostrando bem as rodas ia ficar bem mais aparente que é um longboard.

Peguei a caneta e fiz o desenho da maneira que eu achava que devia ser, em pé com a parte de baixo do shape desenhado e as rodas bem redondas e características do longboard bem aparente.

— Assim eu acho que transmite mais a alma do long, porque o que diferencia o long do skate são as rodas e o shape e as rodas são um ponto principal no desenho assim como o shape.

— É, eu preferi o desenho dela, Helenzinha. – Disse um garoto com o cabelo cheio de desenho feito na gillete, batendo nas costas da garota do cabelo cacheado.

— Você não tem que achar nada, você nem tem idade pra tatuar.

— Calma! Vamos fazer uma votação, quem preferir o seu levanta a mão.

Três levantaram a mão.

— Vocês são idiotas? Vocês que não vão tatuar, não tem que levantar a mão. – Mayra falou para um garoto que levantou a mão.

— Nada a ver isso, a gente deveria poder opinar.

— Deveriam, mas não podem! – Ela olhou em volta. – Se só você e o Igor levantaram a mão, Helen, a tatuagem dela que ganhou.

A Helen, a garota do cabelo cacheado me deu um sorriso meio de contra gosto e levantou da minha cadeira. Eu comecei a passar o desenho para o primeiro decalque. Quando comecei a colocar a agulha na maquina o primeiro que ia ser tatuado já estava deitado na cadeira. Ele disse que queria a tatuagem no antebraço. E foi lá que eu coloquei o decalque que passou o desenho do papel para a pele dele. Comecei a fazer meu trabalho. A escala do desenho não era muito grande então não ia demorar muito se ele fosse tolerante a dor e deixasse que o trabalho fluísse bem.

Fiz todos os três primeiros do mesmo modo, primeiro pelo shape e terminei pelas rodas. O desenho era todo em preto exceto pelas rodas que eles pediram para por cor e eu coloquei vermelho para dar um destaque. Foram os três garotos e depois a Helen sentou na cadeira. Comecei o processo de passar o desenho para a pele dela e ela foi a única que puxou assunto enquanto eu tatuava.

— Isso que você acabou de fazer, parece muito com o processo de grafitar, só que a gente usa stencil.

— O stencil é bom para quem não tem muita habilidade com desenho, o que não me pareceu seu caso.

— É, eu sei desenhar, mas não na escala que é uma parede, eu acabo me perdendo.

— É só fazer a marcação do desenho na parede, como se fosse o decalque que eu uso na pele. Faz um esboço na parede e depois só ir preenchendo, pintando e sombreando.

— Talvez eu tente um dia, quem sabe…

— A gente pode tentar hoje no grafite.

— É pode ser, ou você podia me deixar tentar tatuar.

— Não posso, ai eu perco meu certificado.

— Não parece ser tão difícil assim.

— Não parece, mas é difícil, foi muito tempo de treino pra pegar a pressão correta que deve se tatuar, porque se for força de menos a tinta não chega a camada da pele que ela fica armazenada, e o desenho fica todo falho e se for força de mais você machuca a pele de uma maneira que cria cicatrizes e fica um relevo horrível de pele cicatrizada.

— Hm…

— Tem que ter bastante técnica, é diferente de pintar uma parede, é a pele de uma pessoa…

Ela arqueou rapidamente as sobrancelhas e deu de ombros. E o assunto morreu até o fim da tatuagem. Eu no automático já joguei fora a agulha, luva e o algodão usados no processo. Mayra foi a ultima deitar na maca, ela decidiu tatuar no pescoço - por livre e espontânea pressão dos amigos - na nuca para ser mais especifica, um dos locais mais doloridos.

— Na nuca doí bastante.

Ela já estava analisando o local, com o cabelo preso, olhando no espelho onde ficaria a tatuagem. Vi os olhos dela em mim pelo espelho e logo depois desviando para os amigos.

— A dor é bobagem. – Falou a Helen tocando a região da nuca da Mayra. – Aí vai ficar lindo.

— Pois é, ótimo lugar, sua mãe nem vai frescar quando você chegar em casa, porque é bem escondido, só soltar o cabelo.

— Igor tá certo, mais um ponto positivo para o local e o que é um pouco de dor para quem vive tomando tombo e se ralando todos? – Disse a Helen. – Vai ser ai mesmo, senta lá na cadeira.

Mayra caminhou até a cadeira e se sentou de pernas abertas e de frente para as costas da cadeira.

— Seja gentil comigo.

— Vou tentar! – Eu disse levantando a sobrancelha.

Não importa quão gentil eu seja, vai doer do mesmo jeito. Comecei a tatuar e começou a cara de dor e os dentes cerrados. Eu vi porque ela segurava um espelho para poder me ver. Me deu um aperto no coração, mas não tinha nada que eu pudesse fazer só terminar o mais rápido possível sem ficar com o traço corrido.

— Vamos ter que tomar cuidado por um tempo, se eu cair enquanto estiver andando de long vou evitar cair de braço, pra você meio que tanto faz. – Disse o tal de Igor do cabelo raspado na gilete.

— Não dá pra conversar agora, Igor! – Mayra disse entre dentes.

— Era pra você ter escolhido aqui no braço como eu fiz, foi seguir a ideia desses muleques.

— Porque não falou isso antes, idiota? Eu não sabia que doía tanto nessa região, foi mal - Helen disse.

— Vocês podiam ir lá pra fora né? Bora ralando da sala todos vocês! Respeitem minha dor.

Os garotos obedeceram o que ela falou e foram saindo da sala entre reclamações, menos a Helen que ficou olhando a própria tatuagem no espelho.

— Você também!

— Eu?

— É tu mesmo, Helen.

Eu não tirei o olho da tatuagem, mas pela maneira que ela respondeu quando percebeu que estava sendo expulsa junto com os outros, e pelo jeito que os pés dela ecoaram no chão, deu para perceber que ela não ficou nada satisfeita. A forma que ela bateu a porta só confirmou tudo.

— Desculpa pela porta, ela é meio geniosa. – Ela disse entre gemidos de dor.

— Não tem importância… Ta doendo muito? Se quiser eu dou uma pausa pra você respirar.

— Não precisa, continua, está uma dor suportável, só falei aquilo para eles saírem da sala e darem um pouco de privacidade pra gente.

— Ata, a boa e velha privacidade entre cliente e tatuadora.

— Não sou uma cliente qualquer.

— Certamente não, não costume beijar minhas clientes, não sei se você beija suas tatuadoras.

— Alguns… Brincadeira, mas deve ser ótimo pra você o dia inteiro tatuando garotas, deve ter várias te querendo.

— Quem me dera, mas eu tenho uma aparência bem normalzinha para uma tatuadora, elas gostam das estilosas e das que não tem cara de hétero.

— É você tem um pouco de cara de hétero e de garota certinha e metódica.

— Eu sou um pouco assim, tirando a parte da heterossexualidade.

— Eu que moro com minha mãe e você que tem cara de quem mora com os pais.

— Cuidado com o que você diz… Não se esqueça que eu estou te tatuando, isso é como uma arma de dor.

— Desculpa, vou ficar quietinha.

— Ótimo… Cara de quem mora com os pais, onde já se viu.

Que merda, pior que eu tenho essa cara mesmo. Acho que porque não mudei muito de quando eu morava com eles pra agora. Quer dizer, mudei muito em personalidade, maturidade, responsabilidades. Só que não em aparência.

— Prontinho, terminei. – Coloquei um papel filme para proteger e comecei a dizer a mesma coisa que falei para os amigos. – É só ter cuidado, pode tirar daqui a algumas horas e não precisa colocar novamente, deixa a tatuagem respirar, é bom passar pomada por uma semana, você encontra na farmácia, só conversar com o farmacêutico, tem que evitar praia, piscina… Evitar expor ao sol e depois de um mês pode pegar sol, mas é tem que aplicar uma camada generosa de protetor. É isso.

Ela me puxou pela mão para um beijo, ela me segurou pela nuca e eu quase fiz o mesmo no automático, ainda bem que pensei no último segundo. Nossas bocas pareciam ir se acostumando uma com a outra cada vez mais e ela tomou a liberdade de passar a mão pelo meu corpo, coisa que eu permite sem nenhuma resistência e ficamos ali por alguns minutos até baterem na porta. Ficamos com os rostos encostados um no outro entre risadas. Provavelmente alguém percebeu que a tatuagem acabou porque o barulho da maquininha parou e mesmo assim ficamos um tempinho dentro da sala. Eu olhei bem para o rosto dela que continuava com os olhos fechados enquanto ria.

— Vamos, eles estão esperando a gente na recepção.

— Espera um pouco, eu trouxe isso aqui pra você.

Ela entregou na minha mão, um pequeno chaveiro de elefante e eu achei muito fofo.

— Eu vi isso em uma lojinha e lembrei que suas chaves não tem um chaveiro e bom… O elefantinha vai lembrar de ontem que tecnicamente foi nosso primeiro encontro.

— É lindo, obrigada.

Dei um selinho nela, tirei as chaves do bolso e coloquei o elefantinho cinza lá, ela me puxou pela mão até a porta e saímos.

Todo mundo se juntou no balcão, entre conversas e risadas e o Gabriel terminou de calcular o preço e falou para eles quanto ficaria o valor das 5 tatuagens. Eu estava ao lado da Mayra, ela segurava minha mão. Um amigo dela olhou pro outro, que olhou pro outro, que olhou pro outro e eles ficaram se entre olhando e olhando para o preço.


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