Sui Generis escrita por Human Being


Capítulo 13
Comentário 2 de O'Toole: A lógica é uma maneira sistemática de chegar à conclusão errada com confiança absoluta.


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior...
Depois de um mergulho involuntário em uma lagoa de águas mágicas, Kanon de Gêmeos se viu em um belo corpo de mulher. Sem perspectiva de soluções à vista, o suplente à armadura de Gêmeos e general marina de Poseidon se vê obrigado a lidar com essa insólita situação, contando com a ajuda de seus companheiros de armas e de seu irmão gêmeo Saga, o cavaleiro oficial da Terceira Casa Zodiacal. Porém, as mudanças hormonais que isso acarreta começam a repercutir no ex-rapaz, que ainda assim tenta manter algo que lembre sua antiga vida...



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Saga tinha chegado às escadarias da Casa de Gêmeos muito mais rápido do que imaginava que chegaria, arrastando Kanon que se debatia e tentava se soltar do agarre firme do irmão. Mas toda vez que o ex-rapaz tentava, era surpreendido por uma represália do outro, que o seguia arrastando violentamente pelo caminho. Caminho esse que estava livre: Mu estava em Jamir buscando suprimentos para arrumar armaduras e Aldebaran... bem, ainda não tinha voltado.

Saga estava com raiva. Com muita, muita, muita raiva. E Kanon estava bêbado. E a sua atual forma, menor e menos forte, também não ajudavam.

Era evidente que aquilo não acabaria bem.

— ME SOLTA, SAGA! - Kanon gritava e gritava, enquanto entravam pelo templo de Gêmeos sem que o outro o soltasse. - Me solta AGORA! ME SOLTA!

Já dentro da sala privativa do Templo de Gêmeos, Saga praticamente jogou o ex-rapaz pelo chão, que não conseguiu se equilibrar e caiu desajeitadamente. Mas Kanon levantou-se num pulo e tentou partir para cima do irmão.

— QUEM CA***** VOCÊ PENSA QUE É PRA ME TRATAR ASSIM NA FRENTE DOS OUTROS, SEU M****?

— E QUEM CA***** VOCÊ PENSA QUE É PRA FALAR ASSIM DE MIM PROS OUTROS? - Saga respondeu na lata, segurando a agora moça pelos braços com força enquanto ela tentava se desvencilhar para socá-lo. E, pela diferença de tamanho e força, foi fácil para ele fazê-lo, o que só frustrava o outro ainda mais. Acabou empurrando a agora moça no chão, sem medir sua força. - Quem você pensa que é? Hein? Quem te dá o DIREITO de falar da minha vida, das minhas coisas privadas pra aqueles IDIOTAS naquela mesa, só pelo mero prazer de tirar um sarro da minha cara?

Kanon levantou-se e partiu novamente para cima do irmão, embora o álcool lhe tomasse boa parte de sua velocidade. Foi novamente agarrado pelo outro pelos punhos, e dessa vez jogado contra a parede.

— Eu tenho o MESMO DIREITO que você tinha de ficar tirando sarro da MINHA cara com a história da Tessália, seu imbecil!

— A história da Tessália foi uma história que VOCÊ criou pra despistar os SEUS antigos companheiros! Não é nada da tua vida privada, não é nada de íntimo seu, idiota dos infernos! - Saga vociferava, deixando a raiva explodir em si. - Mesmo que eu tenha brincado com você, eu não te expus pra todo mundo como você fez ali comigo!

— E você acha que eu não me senti exposto com a história da Tessália, seu demente? - Kanon gritou de volta, também sentindo a irritação de dias se transformar em raiva com a ajuda do álcool. - VOCÊ ACHA QUE EU GOSTO DE ESTAR ASSIM?

— Eu tô pouco me lixando pra o que você gosta ou não! Você não tinha o DIREITO de fazer o que você fez ali! NÃO TINHA! É a minha vida, são coisas que eu compartilho com os outros se eu quiser! Você me expôs de propósito pra tirar sarro da minha cara, pra me diminuir pros outros! Mas, ah, que grande novidade, é o que você sempre fez comigo!

— Ai, nossa, coitadinho do Saga! - Kanon gritou num muxoxo irônico. - Vai começar a se fazer de vítima? De novo? Porque pra cima de mim 'cê sabe que esse discurso nunca colou!

— Eu não tô me fazendo de vítima coisa nenhuma! - Gritou o outro. - Mas EU não tenho culpa se você é um imbecil que só serviu pra ferrar com a minha vida até hoje, seu inútil! INÚTIL, é isso que você é!

— Eu não sou inútil p*** nenhuma!

— Como que não é? Viveu a vida inteira às minhas custas e não vem dizer que não é inútil? Faça-me o favor! Além de inútil é um puto de um mal-agradecido!

— Mal-agradecido? Mal-agradecido? Eu não sou obrigado a te agradecer por ter ficado aqui nesse lugar servindo de sombra tua pra você se vangloriar de ser o cavaleiro de Gêmeos! Eu não sou obrigado a ficar isolado numa ilha enquanto você ficava aqui se mostrando pros outros que nem uma p**** de um pavão! E depois vem você me dizer que sou eu que ferro com a tua vida? Tinha MUITA graça!

— Nossa, sua vida naquela ilha realmente foi MUITO difícil. Olha que você até fala como se não tivesse feito só o que queria e aprontado TODAS, né não, santinho do pau oco? Só que você se esquece que tá falando com o imbecil que corria que nem uma besta pra ir limpar toda a confusão que você armava! E, a propósito, por que foi que você ficou na ilha mesmo? Por merecimento seu? Não! Foi porque EU fiquei aqui ralando meu traseiro pra virar um cavaleiro! Porque se eu não tivesse feito isso, nós tínhamos ficado naquele pulgueiro que era aquele orfanato de Corinto!

— Nossa, muuuito obrigado, irmãozão, por ter me tirado do tal pulgueiro em Corinto para vir pro Santuário treinar pra virar a ilustríssima sombra do magnífico Saga de Gêmeos. Eu não tenho PALAVRAS pra te agradecer, sério! - Gritou Kanon, já fora de si. - Assim como eu não tenho PALAVRAS pra te agradecer por ter me prendido naquela prisão imunda no Cabo Sunion, pra depois fazer EXATAMENTE tudo que eu tinha te falado pra fazer! Mas isso é bem próprio de você, porque você É e SEMPRE FOI um cínico, safado, hipócrita dos infernos!

— Cala essa boca, Kanon! - Saga vociferou, empurrando o ex-rapaz que gritava a plenos pulmões bem próximo a seu rosto. Sentia que estavam entrando de sola no ponto mais espinhoso entre eles dois no pior momento possível e da pior forma possível; mas ele estava com tanta raiva por Kanon ter dito as coisas que disse naquela mesa que simplesmente deixava essa raiva tomar o melhor de si. - Você cale essa boca, senão eu não respondo por mim!

— Tá me ameaçando, Saga? - Kanon avançou para cima do irmão, de novo. - O incrível, justo e correto Saga está me ameaçando? Pois eu vou te contar uma novidade: EU NÃO TENHO MEDO DE VOCÊ!

— POIS DEVIA, imbecil! - Saga segurou a agora moça de novo pelos pulsos, mas dessa vez com bem mais força que o necessário. - Porque se você não calar essa maldita boca eu vou quebrar a sua maldita cara!

— Pois quebre, que eu quero ver! Quebre, se você for homem!

— Homem? Homem?— Saga dessa vez atirou deliberadamente o ex-rapaz contra a parede, que não pode evitar um choque violento contra ela e um gemido de dor. Nem teve tempo de se levantar, e foi novamente puxado para cima pelo irmão pelos cabelos.

Saga tinha perdido as estribeiras de vez. Agarrou o ex-rapaz de novo pelos punhos e o prensou contra a parede, chocando-o com violência enquanto gritava enfurecido.

— Mas veja, a questão agora é precisamente essa! Eu sou um homem, mas você não é mais! - Saga usava toda a sua força para manter Kanon imobilizado contra si na parede, não se importando se suas mãos machucavam seus punhos e nem com a evidente incapacidade dele de se livrar de seu agarre. - Por exemplo, agora você, o incrivelmente esperto e supersafo Kanon, nem consegue se soltar daqui, não é verdade?

— ME SOLTA, SEU FILHO DA P***! - Kanon gritava, sentindo o profundo incômodo de se sentir prensado contra a parede por um corpo maior e frustrado pelo fato de que sabia que estava atrapado e sem chances de saída. Debatia-se, e muito; mas quanto mais ele se batia e esperneava mais Saga o prensava. - ME SOLTA, SEU DESGRAÇADO! ME SOLTA!

— O que foi? Não vai tentar me chutar no meio das pernas de novo, Kanon? - Saga forçava a agora moça contra a parede, para depois girar o corpo e jogá-la de novo no chão. - Porque agora eu vou te contar uma novidade: Eu não vou te dar essa chance! E agora eu vou te contar outra novidade: Se eu quisesse eu te quebraria inteiro, porque você está batendo feito a menininha que você agora é! E mais outra novidade: assim como você está, querida, está mais inútil do que nunca!

Kanon estava no chão novamente, tremendo pela raiva e a adrenalina da briga misturada ao álcool. Sentia um nó na garganta, e levantou-se como um raio para acertar um tapa na cara do outro. O tapa foi imediatamente seguido de um empurrão e foi seguido de um tapa violento em seu rosto e outro safanão de Saga em si, que novamente o segurou pelos punhos para imobilizá-lo em seguida com uma gravata com um dos braços, enquanto com a outra segurava seus dois punhos de uma vez.

Kanon não tinha chances de escapatória, Saga sabia; e ainda assim usava mais força do que o necessário para mantê-lo ali, numa forma de lhe provar seu ponto de vista.

Mas Saga sentiu um baque, e foi jogado contra a parede por um golpe de cosmoenergia.

E esse golpe o devolveu à realidade.

Tinham passado dos limites. Ele, principalmente.

Viu a forma feminina de Kanon diante de si, com rosto pálido, os cabelos desgrenhados, um pouco de sangue em um dos cantos da boca, alguns arranhões na lateral dos braços e na lateral direita do rosto.

Viu também quando o ataque de cosmoenergia que Kanon tinha usado cobrou seu preço, levando o ex-rapaz ao chão com o rosto mais pálido do que antes e a respiração difícil, engolindo ar com a boca enquanto tremia visivelmente. Viu a dificuldade que ele tinha de se manter ajoelhado no chão, usando as mãos espalmadas para se equilibrar melhor. Claro que o álcool também não ajudava.

Mas pior do que isso era que ele, agora ela, estava chorando.

Nunca, em todas as muitas brigas que tiveram, nem mesmo naquela que culminou com o episódio do Cabo Sunion... Kanon jamais tinha chorado. Jamais.

Saga respirou fundo, já sentindo a culpa se entranhar em si, e adiantou-se na direção da agora moça para ajudá-la a levantar. E não lhe foi surpresa nenhuma quando Kanon, ainda que fraco como estava, o rechaçou.

— Não... encosta... em mim. - Kanon arquejava. - Fica... longe... de mim...

Saga mordeu o lábio inferior, baixando os olhos no chão. Ajoelhou-se na sua frente, apertando os olhos que já começavam a arder.

— Kanon... eu...

— Fica longe de mim. - Kanon reuniu as poucas forças que tinha para falar aquilo com firmeza.

— Saga, eu já te vi fazer muita idiotice, mas dessa vez você se superou. - A voz fria de Máscara da Morte, seu vizinho, cortou o ambiente.

Máscara da Morte, Afrodite e Shura estavam ali, na porta de seus aposentos privativos.

— A gente sentiu o cosmo do Kanon, Saga. - A ironia na voz de Afrodite era clara, enquanto ele constatava o estado em que estava a agora moça. - O cosmo, entende? Aquilo que o Shion e a Saori disseram que ele não pode usar.

Saga se levantou lentamente, enquanto o sueco e o italiano levantavam Kanon do chão.

— Vamos lá pra casa, 'cê passa a noite lá hoje.

— Eu... - Kanon respirou fundo, tentando espantar a sensação de esgotamento que sentia, apesar que os efeitos da bebedeira já começavam a passar. - Eu não durmo na tua casa nem a pau, carcamano.

— Eu te levo pra minha, então. - Afrodite sorriu para o ex-rapaz amigavelmente.

— Não precisa. Eu vou ficar no meu quarto mesmo. - Kanon disse num sussurro. - Só ia pedir o favor de vocês... me ajudarem a chegar até lá.

— Má ideia, Kanon. Vai que você passa mal à noite...

— Não se preocupe, Afrodite. Eu tô grogue, mas não bebi tanto assim não. Só tô com sono, agora...

— Tem certeza?

— Tenho...

Afrodite levou a agora moça para o quarto, ajudado por Máscara da Morte. Shura seguiu na sala, olhando para um Saga que estava com os olhos fixos no chão.

— Saga?

— Não estou a fim de conversar agora, Shura. - O outro respondeu, com a voz mais rouca do que o normal devido ao bolo que se formava em sua garganta.

— Olha... - O moreno aproximou-se. - Não é pra conversar. Mas eu queria que você pelo menos escutasse.

— Não estou a fim de escutar nada, também. - Saga balançou a cabeça, negativamente. Virou-se em direção à porta do seu quarto, com a cabeça baixa. - Agora eu queria que vocês me dessem licença.

— Pelo menos dá uma olhada nele durante a noite. - Shura disse.

— Certo.

Saga fechou-se em seu quarto, sentando na cama e sentindo o bolo crescer em sua garganta, além dos olhos ardidos.

Sentiu quando os outros saíram, e entrou no banheiro que lhes servia de suíte reversa. Parou na porta que dava ao quarto do irmão, ouvindo alguns soluços que lhe partiram o coração. Sentou no chão com a cabeça apoiada na porta, sentindo lágrimas querendo descer de seus olhos também, mas não tinha coragem de abrir aquela porta para pedir desculpas.

OOO

Saga rolava e rolava em sua cama, onde depois de um tempo (mais precisamente depois que parou de ouvir os soluços no outro quarto) foi se deitar. Antes, porém, teve o cuidado de deixar a sua porta do banheiro aberta, para poder escutar se algo se passasse no quarto de Kanon.

Estava se sentindo péssimo.

Era muito frustrante para ele saber que, desde que todos foram trazidos de volta pela graça e poder de Zeus, as relações interpessoais entre eles vinham até bem melhor do que imaginavam - especialmente levando-se em consideração os doze cavaleiros de ouro e as pontas desatadas dos relacionamentos entre eles. Até isso estava indo melhor do que o esperado, especialmente para ele.

 Exceto, claro, pela sua relação com seu próprio irmão.

Saga sempre sentira uma pontada de inveja quando via Aiolos e Aiolia. Apesar das rusguinhas entre eles e da inversão de idades que viviam agora - Aiolia era agora o mais velho, e Aiolos o mais novo, um inegável ponto de tensão entre os dois) , eles eram mais do que irmãos e mais do que amigos: eram duas pessoas que gostavam uma da outra.

Ele não podia dizer isso de Kanon e dele mesmo.

O irmão o detestava(1). Sempre deixou muito claro que a pessoa com que dividira o rosto, o útero da mãe que praticamente não conheceram, a orfandade precoce e a pobreza dos anos anteriores ao Santuário era uma pessoa por quem ele não tinha amor, consideração ou um mínimo de apreço que fosse. No começo, quando eram mais novos, Saga sentia muito o rechaço do irmão. Depois acostumou-se, mas a rejeição constante deixou sua marca na frieza com que o tratava mesmo quando passavam algum tempo sem se ver devido ao fato de ele ter ficado no Santuário e Kanon na ilha de Patroklou.

Saga era aspirante a cavaleiro e posteriormente o guardião de Gêmeos, mas ainda assim era um rapaz de poucos amigos, até pela própria questão de seu irmão e do segredo que o envolvia. Só que esse irmão, justamente, era um magneto para problemas: Saga se irritava com as confusões do irmão, e Kanon se irritava porque Saga se irritava; e assim começavam a brigar. E mesmo quando não estavam brigando, não conseguia desmontar a postura defensiva e reprovadora perto de Kanon.

Era fato que Kanon sabia de muita coisa sobre sua vida. Não por amizade ou porque se importasse com seu bem-estar, mas porque muitas vezes tinha que fingir que era Saga para manter o segredo de sua existência para o Santuário. Foi assim, por exemplo, que descobriu sua paixonite platônica e não correspondida pela filha do dono da quitanda, o que era então um segredo guardado a sete chaves por um então aspirante a cavaleiro (mas que se prolongou por alguns anos, até um pouco depois de ter conseguido a armadura). Naturalmente que ao invés de ser solidário com seu problema (porque, bem, embora essa fosse agora uma situação superada, naquela época aquele era um problema razoável, já que a dita garota não lhe correspondia a paixonite), Kanon morria de rir com a história, tomando-o por um idiota que corria atrás de uma menina que ele chamava de fútil e interesseira. Menina essa que por isso mesmo nunca se interessaria por um ilustríssimo filho de ninguém como ele, que como a maioria dos cavaleiros era um órfão acolhido pelo Santuário e não contava com bom nome de família ou quantidades abastadas de dinheiro.

Isso entre outras coisas, claro.  Não só com essa história em particular, o passatempo preferido de seu gêmeo sempre tinha sido esculachá-lo. E ninguém podia dizer que Kanon não era bom nisso.

Com o tempo – aquele que dizem que tudo cura-  a relação entre eles piorou muito, especialmente depois dele ganhar a armadura de Gêmeos, e Kanon ficar oficialmente relegado a ser seu substituto secreto.

Separaram-se, passaram treze anos longe um do outro, cultivando ressentimentos e mágoas que os envenenaram, cada um a seu modo, até quase afogar eles dois na loucura. Quase destruíram a Ordem, sujaram as mãos de sangue, sofreram e expiaram seus pecados...

Saga sentou-se na cama, sentindo os olhos molhados de novo.

Sabia que tinham recebido uma nova chance para viver suas vidas, sem guerras, sem dores ou mortes. E ele, especialmente, era muito grato a isso. Todos eles eram. Estavam todos tentando, de coração, viver suas vidas em paz, se aproximarem o quanto lhes fosse possível da vida dita 'normal' fora do Santuário. Claro que de vez em quando tinham missões em conjunto com a Interpol ou a CIA, e algumas até eram arriscadas, mas até disso ele gostava...

A única coisa em que estava falhando miseravelmente em reconstruir era justamente a relação com seu irmão.

Mas essa briga de agora não foi como outras que teve com ele. Claro que muitas vezes antes brigaram feio, claro que muitas vezes antes chegaram aos golpes. Até podia dizer, sem medo de errar, que ambos já tinham infligido um ao outro lesões e machucados bem mais sérios, tanto físicos como emocionais. Mas ver Kanon como uma mulher, no chão, com o rosto de feições femininas marcado por arranhões e alguns hematomas, e com lágrimas nos olhos...

Aquilo escancarou para ele uma realidade que sempre esteve lá.

Ele machucara Kanon.

Eles se machucavam. Machucaram um ao outro, a vida toda.

Kanon o machucava quando o desprezava, o diminuía, atacava sua autoestima; e Saga o machucava quando saía de si e tentava atacá-lo também. seja com golpes, palavras ou desprezo de volta. E isso virava um círculo vicioso que estava destruindo qualquer chance de reatarem o laço familiar entre eles. O fato de terem antes o mesmo rosto, os mesmos poderes e histórias de vida tão parecidas e ao mesmo tempo tão diversas entre si apenas servia para mascarar esse fato tanto para um, como para o outro.

Era como se o outro fosse uma imagem no espelho, uma ilusão invencível aos mais variados e poderosos ataques, ao invés de uma pessoa de carne, osso e sentimentos.

Saga, sentado na cama com os cotovelos apoiados nos joelhos, apoiou também a testa nas palmas das mãos e enredou os dedos na franja. Sentiu as lágrimas caírem em suas coxas, e não entendia por que aquilo estava lhe doendo tanto.

Era sua vez de chorar aos soluços, agora.

OOO

Kanon abriu os olhos de manhã, com uma bela dor de cabeça e a memória da briga que tivera com Saga.

Bela novidade, brigar com Saga. Mas por algum motivo que desconhecia, aquela não seria mais uma briga para entrar no rol das inúmeras que já tinham tido. Aquela parecia ser ainda mais dolorida, quase tão dolorida quanto a briga que tiveram em que ele o prendeu no Cabo Sunion.

Fechou os olhos, respirando fundo.

Estava com raiva de ter sido tão facilmente dominado pelo irmão que agora era maior e, por mais que doesse admitir, mais forte. Estava com raiva das coisas que Saga disse, da forma como Saga o humilhou ao continuar lhe golpeando e lhe jogando no chão até mesmo quando era óbvio para todos que ele sairia vitorioso daquele embate, e principalmente de ter se deixado chorar de raiva na frente dele. Nunca em sua vida tinha feito isso, embora em muitas situações não lhe faltaram ganas. Mas sempre manteve a máscara de escárnio e indiferença que sempre tiraram tanto seu irmão do sério.

Menos ontem.

Queria entender porque ontem deixou a máscara cair, porque deixou ver que aquela briga não só lhe afetava, como também lhe doía. Sim, doía. Por mais que brigassem, por muito que se destratassem, ainda conseguia sentir dor e desconforto quando Saga brigava consigo. E ontem, muito mais.

Queria entender o porquê de sentir aquele peso no peito a cada vez que se lembrava da briga. Não só do que Saga lhe dissera mas também do que dissera a ele, mesmo sabendo que Saga tinha sido um idiota. Mas uma vozinha no fundo de sua cabeça, a mesma que ele achava que era sua maldita consciência que só lhe metia em problemas, lhe dizia que mais uma vez ele tinha deliberadamente provocado o irmão. Sim, porque ele tinha que ser justo: Saga podia ter vários defeitos, sendo o mais irritante o de que ele não assumia os defeitos que tinha; mas o irmão dificilmente perdia o controle daquele jeito sem ser provocado.

E, bem, ninguém era melhor do que ele em provocar Saga.

Não dava para dizer que ele gostava do que acontecia após as provocações: os ataques, as brigas ou mesmo a indiferença forçosa que Saga às vezes lhe impunha. Na verdade, ele detestava. Mas não conseguia parar.

E, também, não era como se Saga fosse totalmente inocente. Aliás, era bem esse o ponto: Nada no mundo o enervava mais do que Saga tentando bancar o senhor certinho o tempo todo. Não suportava vê-lo se esmerar para ser o bom moço, educado, generoso, justo, misericordioso; como que para esfregar na cara de todo mundo aquela perfeição pretensa. E era então quando sentia uma necessidade quase física de desmontar o embuste, assim que via o irmão começar com isso. Era como se, ao fazê-lo, Saga relegasse a ele o papel de gêmeo ruim, de sombra...

Como se ele, Kanon, não pudesse ser bom como ele...

Muitas vezes a coisa toda começava com um olhar de reprovação de Saga. Ou mesmo uma frase jogada no ar, mas que Kanon sabia o que significava. Uma reprovação velada, uma pequena crítica a alguma coisa que tinha feito... Bastava isso para vir o impulso irresistível de quebrar toda aquela pompa em mil pedacinhos.

O ex-rapaz levantou-se da cama, sentindo o corpo dolorido pelo esforço e pelas pancadas que levou ao cair no chão. Foi até o banheiro, apenas para abrir a porta do armarinho e encontrar as coisas que Saga comprou no dia anterior. Sim, porque foi Saga, tinha certeza, já que a criada não estava mais em casa quando tinha saído e as tais coisas não tinham pernas para andar sozinhas até o seu banheiro.

Quase teve um piripaque ao ver o que eram as coisas: sabonetes, shampoo, condicionador, papel higiênico e... pacotes de absorventes íntimos. Teve ganas de pegar os ditos pacotes e enfiar goela abaixo do irmão, mas de novo a vozinha em sua cabeça veio lhe atazanar. Travou os dentes, sentindo a raiva de saber que precisaria deles mais cedo ou mais tarde se seu corpo realmente agora era feminino.

E Saga tinha sido até bem atencioso de comprá-los antes que a necessidade se fizesse premente.

Olhou para a porta do banheiro que dava para o quarto do irmão, e que estava fechada. A vozinha estava mais insistente, dizendo-lhe que a despeito de tudo que Saga dissera e fizera naquela briga, ele tinha sim passado dos limites ao contar para os outros colegas, em tom de escárnio, da primeira desilusão amorosa de seu irmão gêmeo. Até porque ele sabia bem o quanto Saga tinha se ressentido daquilo. E sabia o quanto Saga detestava ser visto como falível e fraco pelos outros. Era por isso que sempre, sempre o expunha desse jeito.

Sentiu um pouco de raiva de si mesmo quando constatou que isso lhe era um hábito, daqueles prazeres proibidos difíceis de combater pelo tanto que estão entranhados em seu cotidiano e pelo tanto que trazem de prazer ao dar-lhes vazão.

No banheiro, lavou-se enquanto pensava ainda na briga e em suas repercussões. Ainda estava com muita raiva, mas também sentia a culpa em si lhe dizendo com clareza que talvez, quem sabe, seria interessante que ele pedisse desculpas ao irmão.

Riu da própria consciência, que obviamente não lhe conhecia. Em que realidade paralela desse universo ele pediria desculpas a Saga? Essa era boa...

Meteu-se uma roupa de treinos e saiu pela porta, evitando olhar para um Saga que estava sorumbático e sentado na mesa de café da manhã.

OOO

Kanon treinava nos arredores da arena, novamente praticando movimentos de artes marciais. Mas dessa vez quebrava pedras e mais pedras com chutes e socos, furiosamente.

Se tivesse tido aquela bendita briga com Saga agora, que estava sóbrio e desperto, duvidava muito que tivesse sido uma presa tão fácil. Deu um golpe seco em uma pedra, partindo-a em pedaços que voaram ao longe, e quase acertaram um Aiolos que acabava de chegar por ali.

— Opa... - O rapaz desviou habilmente de um pedaço de pedra. Kanon estreitou os olhos.

— Se ainda não deu pra perceber, eu estou de mau humor. - O ex-rapaz despedaçou outra pedra, mandando mais escombros ao redor.

— Nota-se. - Aiolos desviou novamente. - Mas não precisa me metralhar com pedacinhos de pedra por causa disso. O ex-rapaz bufou, e voltou à sua prática. Mas em sua visão periférica continuava percebendo a presença do cavaleiro de Sagitário.

— Ainda não pegou a deixa e se mandou daqui, Aiolos? Ou tá precisando que eu desenhe?

— Eu... Soube da briga entre você e o Saga...

— Ah, é mesmo? Que surpreendente da sua parte. - Kanon parou de quebrar pedras e limpou a testa com as ataduras que estavam em suas mãos. - A curiosidade já te matou uma vez, garoto...

Aiolos franziu um pouco a testa, sentindo a ironia do ex-rapaz. Sabia que estava se metendo de novo onde não era chamado, mas não pôde evitar a preocupação.

— Sabe, é que agora a gente tem algumas coisas em comum... - Aiolos começou a falar, embora Kanon mostrasse claramente que não estava disposto a ouvir. Mas até que essa frase despertou a curiosidade do ex-rapaz, que continou o que fazia sem falar nada. - ...Porque se a gente parar para pensar, nós temos.

— E o que, pelos deuses, eu teria em comum com você? - Kanon diminuiu o ritmo de seus golpes, fazendo com que menos pedrinhas saíssem voando. E Aiolos interpretou aquilo como um sinal de curiosidade do outro.

— Quando eu tive que fugir com Atena, eu... Eu tinha catorze anos. Mas eu era o cavaleiro de Sagitário, um dos mais velhos, e tinha o Aiolia que era uma criança. Todos os outros eram crianças também. Aí... - Aiolos suspirou, era difícil verbalizar aquilo. Ainda mais com Kanon, com quem até então tinha praticamente zero de empatia. - Aí aconteceu aquilo tudo, e... Eu não estou reclamando, entende? Eu entendi o que poderia acontecer comigo quando eu fugi. Mas... Quando eu acordei de novo, vivo, aqui... O Aiolia era um homem, já. Meu irmão mais novo, o menino que eu lembrava, tinha virado um homem. Os outros também. E eu... Eu era o mesmo rapaz de catorze anos de quando eu fugi.

Kanon parou de quebrar pedras, embora não se virasse para encarar o outro.

— ...E você...- Aiolos seguia falando, com o olhar fixo em algum ponto do chão. - Você agora tem o corpo de uma mulher, e continua um homem por dentro...

O ex-rapaz voltou o rosto para o outro, e lentamente foi até ele para sentar-se ao seu lado, também olhando para o chão.

— Você não tem mais a idade que está na sua carteira de identidade. Eu não tenho mais o sexo que está na minha carteira de identidade. - Kanon disse pausadamente. - Faz sentido.

— É, né?

— É. - Kanon deu um risinho seco. - Você é mais esperto do que aparenta, moleque.

— Hunf.

— Não precisa vir aqui ver se eu estou bem, não. Por mais que eu seja uma mulher agora, ainda assim precisa de mais do que o Saga pode fazer pra me derrubar.

— Eu só fiquei preocupado. O Saga é forte.

— Não o suficiente.

— Mas ele... e você...

— Você não me conhece, Aiolos. Pode conhecer o Saga, mas a mim não. E ainda assim eu sou bem capaz de dar uma boa lição naquele traste dos infernos.

— Olha... - Aiolos respirou fundo, crispando os lábios. - Também não é pra falar dele assim, vai. Eu sei que você está com raiva dele, mas...

— Mas o quê, Aiolos? - Kanon levantou-se num pulo. - Vai me dizer que você, logo você vai vir aqui pra defender o Saga pra mim? Se for, eu retiro o que eu disse sobre você ser mais esperto do que aparenta.

— Eu bem que podia, não é? E se for assim era pra eu ter rancor de você também, já que foi você quem deu a ideia pra ele. Não foi? - O sagitariano devolveu a provocação, um tanto irritado.

— Como você disse, era só uma ideia. - Kanon crispou os lábios, sentindo o golpe do sagitariano por menos que lhe gostasse admitir. - Eu não coloquei uma arma na cabeça dele para ele fazer o que eu falei. Ele fez porque quis. Porque ficou puto da vida de ter puxado o saco de todo o mundo pra ser o Grande Mestre e foi preterido por você(2).

— Kanon... - Aiolos soltou um suspiro. - Olha, ficar remoendo o que passou não vai levar a lugar nenhum. Eu não guardo rancor de ninguém. Nem do Saga, nem do Shura, nem de você, nem de ninguém.

— Faz-me rir, Aiolos. - Kanon deu uma risada seca, para depois crispar os lábios de novo. - Mas quer saber? Eu não sou bonzinho, eu não sou nem nunca fui. Eu sou um filho da p***? Sou. E o Saga também é. A diferença é que eu assumo, sempre assumi, enquanto o Saga ficou aí posando de bonzinho pra os bestas que quisessem acreditar. E muito me admira você tentar defender ele porque você era um dos que sabia que o Saga não era aquela coisinha linda que ele mostrava pra todo mundo, não(2)?

— Olha, Kanon... Se é pra pensar bem, até que você tem alguma razão, sabe? Eu posso te conhecer pouco, mas eu conheço o Saga. E é por isso que eu digo que o Saga pode até não ser tão bom quanto ele queria mostrar que era, mas ele é uma boa pessoa, sim. Só não é tão bom e perfeito quanto ele quer acreditar que é, só isso... - Aiolos falou, com uma expressão séria enquanto encarava a agora moça.

— Sei. - O ex-rapaz bufou e rolou os olhos, já dando as costas para se afastar do outro e não prolongar mais a conversa.

— E eu não concordo com você quanto à diferença entre você e ele, não. Na minha opinião, a diferença entre vocês é só uma questão de postura. O Saga se esforça ao máximo pra mostrar pra todo mundo que é uma pessoa melhor do que realmente é. E você... Você se esforça mais ainda do que ele pra mostrar pra todo mundo que é uma pessoa pior do que realmente é.

Kanon parou em seco, assim que ouviu o que o outro tinha acabado de dizer.

— Mas tirando isso, Kanon, vocês dois são irritantemente iguais.

Agora foi a vez do sagitariano se afastar, e Kanon ficar parado ali, perdido em pensamentos.

OOO

Conseguirão os irmãos de Gêmeos superar suas diferenças e, quem sabe um dia, se tornarem os irmãos que sempre deveram ser? Poderão as palavras de Aiolos ajudar em alguma coisa?

Tudo isso e muito mais nos próximos capítulos!

Stay tuned...


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Notas finais do capítulo

1 - Na cena do mangá onde Saga e Kanon se encontram na Terceira casa, na tradução em português, Saga afirma que não acredita que o irmão tenha se regenerado porque, segundo ele, Kanon sempre odiara a ele e a Atena.

2 - Na história do mangá, a sucessão do Grande Mestre, então Shion, estava entre Saga e Aiolos. Todos eram a favor de Saga, já que ele era tido quase que como um deus na terra, dada sua bondade, senso de justiça, misericórdia e apreço pelos desvalidos e tal. E Aiolos era tido como um dos que não concordava com isso. Mas, surpreendentemente, Aiolos foi o escolhido para ser o sucessor do Grande Mestre, enquanto Saga foi preterido da função. A reação de Saga, no momento em que soube, foi uma rápida expressão de contrariedade, mas que logo foi suprimida pela felicitação ao colega. O resto é do conhecimento de todos...



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