O rei das fadas escrita por Alioth


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Primeiro eu tinha pensado em dividir essa fic por capítulos, e postar cada um de uma vez (pra conseguir uma boa imagem de capa diferente pra cada um, sabe?) Mas a ideia me pareceu meio besta agora, então resolvi postar do jeito normal mesmo. Se voces quiserem, no entanto, deem um toque que bota essa fic como finalizada, e o próximo capítulo eu lanço como outra fic, que tal?



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/631919/chapter/1

Tudo começou quando, um dia, eu me vi encima do telhado da biblioteca, na escola elementar que eu estudava.

Diferente do óbvio “Como eu cheguei aqui”, que deveria, com razão, ter sido meu primeiro pensamento, eu pensei que, dali, ficava muito mais fácil ver o céu. As nuvens brancas flutuavam como algodão num mar azul celeste que convergia, como uma cúpula, em todos os cantos do horizonte irregular, pontilhados aqui e ali por casas e árvores, e mais adiante, do lado contrário, por uma imensidão de prédios cinzentos e brancos, onde Londres tornava-se visível. Era curioso, eu sempre tinha imaginado que Londres seria avermelhada, como ferrugem, como madeira velha, por que é essa a impressão que as cidades extraordinariamente velhas deveriam passar.

Ouvi um grito. Lá embaixo, Dudley e sua gangue de marginais ainda me perseguiam. A singularidade da minha situação me acertou com todo o impacto metafórico de uma bola de demolição, e eu me vi, novamente, naquela pergunta óbvia. “Como diabos eu cheguei aqui em cima?”

Ninguém ainda tinha me visto ali, e como Dudley me perceberia, se eu gritasse por ajuda, e – provavelmente – começaria a jogar coisas – provavelmente – pesadas e/ou afiadas em mim, eu acabei ficando em silencio. Testei os aparadores de canto, e olhei cuidadosamente em torno das bordas do telhado, vendo se havia alguma forma de sair dali sem me esborrachar no chão, e como parecia impossível, eu acabei me contentando em me sentar e ficar quietinho, esperando algum professor aparecer e torcendo pra que não começasse a chover do nada.

O silencio e estagnação me levaram, novamente, para aquela velha pergunta. Como eu havia chegado ali encima.

Eu estava correndo de Duda e sua gangue, isso eu me lembrava. Me lembrava também de entrar num beco que, após alguns minutos de cuidadosa observação, constatei ficar a alguns metros à frente e alguns outros abaixo de onde eu estava. Essa constatação me levou a deduzir que nunca, por qualquer meio concebível, eu poderia ter chegado ali com um salto. Considerei por alguns momentos a possibilidade de ter sido pego por uma rajada de vento e jogado ali encima, mas a ideia me pareceu ridícula. Não tinha como isso acontecer, por mais magrelo e desnutrido que eu fosse.

Sentado no telhado, e distraído do jeito que eu estava, não me dei conta de estar acompanhado até a pessoa olhar por sobre o meu ombro, com uma expressão estranhamente vazia, procurando, talvez, por algo que eu estivesse lendo. O cheiro me acertou primeiro que qualquer outra coisa, pra falar a verdade, cheiro de xampu. Depois, as outras coisas vieram, uma acavalando a outra, e eu quase cai de susto.

-O que você está fazendo aqui?

Respirei fundo, pra recuperar o folego. Uma menina da minha idade, senão mais jovem, estava sentada, com as pernas juntas, no exato lugar onde eu estava um segundo atrás. Ela era pequena, tinha a pele clara de alabastro, e olhos castanhos inquisidores, abaixo de sobrancelhas finas, que constituíam a única coisa expressiva no seu rosto. Seus cabelos, eu reparei, com um olhar abobalhado, eram de um tom impossível de azul claro.

-E-Eu...

Ela se inclinou pra frente, aguardando uma resposta. Fiquei vermelho. O que mais eu podia fazer?!

-Você está perdido?

-Como é que eu estaria perdido?

-Então você sabe onde está.

-Sei... Eu não sei como cheguei aqui.

-Então... você está preso?

-Sim... mais ou menos...

-So... – ela murmurou mais algumas coisas, provavelmente em outra língua, por que não entendi uma palavra – Entendo.

-Você está perdida?

-Não.

Ela não disse mais nada depois daquilo, pareceu ter perdido todo o interesse em mim e ficou fitando o céu, com a expressão perpetuamente neutra e olhos pensativos. Acabei, na falta de qualquer outra coisa pra fazer, me sentando ao lado dela, e se passaram dez minutos até eu juntar alguma coragem e pensar em algo inteligente pra dizer.

-Meu nome é Harry Potter.

-Sasara Yuuki.

De novo passei um bom tempo em silencio, pensando no porquê de eu ter chegado ali encima, e no porquê do cabelo daquela garota ser azul. Acabei, logo depois, encontrando um bom rumo pra conversar, e se tratava no meu, nosso, mais recente problema.

-Como você chegou aqui encima?

-Eu me teleportei.

-...Ah?

-Eu me teleportei.

-Como assim?

-Eu deixei de existir em um lugar, e instantaneamente, passei a existir aqui.

-Como isso é possível?

-Não é – ela disse, mordendo a pontinha do dedo entre os lábios – Você chegou aqui encima desse jeito, também?

-Eu não sei... Eu estava correndo do meu primo e dos seus amigos idiotas, e apareci aqui encima.

-Entendo... você estava assustado?

Dei de ombros, um pouco embaraçado em admitir isso.

-Eu estava prestes a ser atropelada – Sarada disse, olhando em volta por um minuto, antes de apontar um ponto em específico no chão – Ali.

Notei, antes de olhar para o chão, e não sei por que o fiz, a forma como a mão dela, pequena e de dedos delicados, quase desaparecia envolta pela manga do seu casaco. Ela era toda pequena e delicada, e isso fez minhas bochechas se esquentarem um pouquinho. Como se percebesse que eu estava olhando, Sarada se virou pra mim, inclinou levemente a cabeça para o lado e franziu as sobrancelhas, o que devia ser o mais próximo de uma expressão interrogativa que aquele rosto podia fazer. Me apressei a olhar para o chão. A rua que ela apontara ficava mais perto do telhado do que o beco de onde eu tinha saído, e após contar esse fato pra ela, a garota tornou a morder de leve a unha do mindinho.

-O que você sentiu, quando veio pra cá? – ela me perguntou, algum tempo depois.

-Bem... eu estava com medo, e desejei estar em outro lugar, e...

-Não... – ela fez um gesto estranho, sacudindo os braços bem de leve na frente do corpo – Eu me refiro ao momento entre você estar no beco e estar aqui...

-Ah... eu – forcei a memória, por um segundo – Acho que senti... um sopro de vento, nos cabelos...

-Não sentiu algo como... ser pescado pelo umbigo por um anzol, e espremido por um tubo pequeno demais?

-Não, você sentiu isso?

Ela fez que sim, parou, olhou pra cima. A tarde já começasse a se desvanecer. Se um professor tinha passado ali por baixo, nós não o vimos, tão entretidos estávamos em nossa busca pela verdade. Sasara estremeceu, e pra minha surpresa, se levantou e tornou a se sentar, dessa vez, quase colada em mim, agarrando meu braço e enfiando o rosto no meu pescoço.

Fritei em vermelho no mesmo instante, enquanto gaguejava, feito um idiota.

-Está frio... – ela murmurou, ainda completamente neutra, e seu hálito no meu pescoço fez cócegas e me arrepiou inteiro – Eu vou te usar pra me esquentar um pouco...

Ainda vermelho, tentei brincar, pra amenizar meu próprio embaraço.

-Isso parece meio injusto, você se esquenta em mim, e o que eu ganho?

Como eu disse, era uma brincadeira, eu não ligava – e na verdade, estava descobrindo, aos poucos, que adorava – em ter uma garota agarrada a mim daquela forma, mas Sasara afastou o rosto um pouco e me fitou com uma expressão concentrada, e quando digo concentrada, me refiro apenas aos olhos, o resto do seu rosto continuou neutro como sempre.

-Você pode abusar de mim enquanto isso.

Hein?! – Hein?!

Ela desvencilhou uma das mãos do meu braço, e pro meu profundo constrangimento, segurou uma das minhas mãos e o levou até o próprio peito, antes de me olhar com uma expressão tão vazia quanto um abismo.

Não havia nada pra apertar ainda, mas eu sabia que ali era onde ficavam os seios de uma mulher mais velha, e ter uma mão lá me fez fritar em vermelho. Sasara inclinou a cabeça pro lado, tocou minha face com os dedos, e deu um sorrisinho mínimo.

-Você ficou ainda mais quente – ela tornou a deitar a cabeça no meu pescoço – Confortável...

Ainda segurando minha mão, ela apertou meus dedos em torno do seu próprio – ainda inexistente – seio. Devemos ter ficado nisso por horas, mas eu não ousei sequer me mexer.

Foi assim que, do modo mais estranho possível, eu conheci minha melhor amiga.

...

Chegar ao telhado novamente, por algum motivo, se tornou uma meta pra nós dois, mas geralmente passávamos o almoço, Yuuki e eu – descobri que Sasara era, na verdade, seu sobrenome – nos jardins, recostados contra a parede norte da biblioteca, um ponto que a gangue de Dudley evitava como se fosse o próprio purgatório. Da primeira vez que nos sentamos ali, vários meses atrás, Yuuki tirou, de dentro da mochila, uma marmita decorada, e começou a mordiscar um pedaço de salsicha, cortado de forma que parecesse um polvo.

Eu fiquei em silencio.

Ela olhou pra mim.

Continuei em silencio.

-Você não está com fome?

-N-Não...

Meu estomago roncou.

“Droga”.

Yuuki inclinou a cabeça, daquele jeito todo “ela”, e pegou uma das salsichas com os hashis, o estendendo na minha direção e dizendo “Ahh”.

Franzi a sobrancelha, sem saber ao certo o que fazer.

-Aahh... – ela repetiu.

-O que você está fazendo?

Ela franziu as sobrancelhas, os olhos ganhando um brilho mais acentuado. Com o tempo, descobri que isso equivalia, mais ou menos, a uma expressão mal-humorada. Yuuki era inexpressiva, mas tinha sentimentos intensos.

-Você está com fome, então diga “Ahh”.

-Você não precisa dividir comigo – eu disse, avermelhado – Eu estou acostumado a não almoçar.

-Eu não preciso – ela concordou, e deixou escapar um mínimo sorriso – Eu quero.

Senti lágrimas nos olhos, confesso. Mais uma vez Yuuki estendeu a salsicha com os hashis, e dessa vez eu abri a boca, deixando que ela largasse o pedaço de carne entre meus dentes. Lembro do gosto da comida dela até hoje, por que era...

Horrível!

-Minha mãe não tem tempo pra fazer meu almoço – ela disse, com uma vaga sombra de uma expressão que, se eu tivesse que adivinhar, era divertimento – E ela diz que não tenho talento com isso. Esta horroroso, não é?

-Sim... mas também – eu disse, enxugando os olhos e olhando pra ela -Está muito bom.

Considero esse momento, comigo mesmo, uma vitória. As bochechas de Yuuki se esquentaram num vermelho muito vivo, e uma expressão completa de choque e surpresa tingiu seu rosto, antes de voltar pra neutralidade de antes.

-Que bom que você gostou – ela estendeu outro pedaço, de outra coisa, provavelmente horrível também – “Aahhh”.

Foi o primeiro, de muitos, almoços que compartilhamos. A partir do segundo dia, desde todo o restante do tempo que compartilhamos juntos na escola, ela passou a trazer uma marmita extra pra mim, mas nunca me deixou comer sozinho.

...

Fazia alguns dias que as aulas tinham terminado, e eu estava trabalhando no jardim quando vi a Yuuki. Ela vinha acompanhada, segurando a mão de uma mulher mais velha, extraordinariamente bonita e com cabelos azuis, iguais ao da filha. Me levantei, pra receber as duas, e acabei atingido por um torpedo azul claro, usando saia e uma blusa de manga comprida estampada com gatinhos.

-Harry... – ela disse, com a cara enfiada no meu peito – Oi.

Sorri, meio envergonhado por ter uma mulher adulta franzindo o cenho e sorrindo à forma como sua filha e seu melhor amigo se cumprimentavam, e afaguei os cabelos de Yuuki. Demorou algumas semanas pra descobrir que ela adorava isso mais que tudo no mundo, e agora, a quase todo momento, ela ficava me cercando, me puxando ou simplesmente apontando pra própria cabeça, de forma que eu a afagasse. Não era algo que eu me importasse em fazer, na verdade.

-Oi Yuuki – sorri pra ela, que me largou, mas continuou com a cabeça inclinada na direção das minhas mãos, quase como um gato pedindo carinho – A senhora é a Sra. Sasara?

A mulher mais velha sorriu de volta pra mim, alisou a saia e se agachou, me estendendo a mão.

-Você é o Harry né? – ela disse, num inglês bem mais composto que o da filha, que ainda tinha sotaque e soltava umas palavras em japonês, aqui e ali – É um prazer te conhecer, minha Yuuki fala um bocado de você.

Apertei a mão dela, contente por ser tratado como um adulto, pra variar. Um dos maiores dramas da juventude, na minha opinião, é não ser levado completamente a sério.

-Eu vim conhecer seus pais e te convidar pra passar o dia com a gente, se você quiser, minha Yuuki não estava mais se aguentando de saudade.

Yuuki assentiu, várias vezes, ainda se inclinando toda pra pedir carinho, sempre que eu afastava um pouco as mãos. Sorri envergonhado a isso, e estava pra convidar as duas pra entrar, quando a realidade da minha situação me acertou como um caminhão metafórico. Me virei, na direção da Sra. Sasara, minha mente dando saltos triplos carpados pra pensar numa forma de impedi-la de ter qualquer contato com meus parentes, de preferência algo gentil, que não a fizesse me achar estranho e me odiar. Infelizmente, a mulher mais velha tinha dado sua terceira batida na porta, assim que eu comecei a abrir a boca.

Senti o corpo todo arrepiar, ao ouvir os passos pesados de Vernon, e uma coisa aguada e gelada correr por toda a espinha, assim que ele abriu a porta.

Levou vários segundos para o choque e indignação se assentaram completamente naquele rosto gordo de morsa, cada ruguinha se realinhando pra demonstrar o máximo de desprezo possível. Seus olhinhos miúdos de porco se arregalaram, a tez assumiu um tom de roxo azulado que eu tinha aprendido a temer ao longo da minha infância, e o que provavelmente era um péssimo sinal de um colesterol avançado inchou as veias no seu pescoço. Ao todo, era tremendamente assustador e meio nojento, como se sua cabeça fosse explodir a qualquer momento.

No geral, não a reação que se espera de um homem ao fitar, sorridente e na sua porta da frente, uma mulher inacreditavelmente bonita. Não a descrevi ainda, mas pra ajudar com a visualização: Sasara Atila tinha olhos castanhos sedutores, realçados por um pouco de rímel, a mesma pele de alabastro que a filha, os mesmos cabelos azuis claros, compridos e volumosos, passando do seu quadril, e, adornando o corpo atlético e esguio, seios que provavelmente fariam muito sucesso na televisão brasileira.

Ela deu um passo pra trás, incerta, à reação do meu tio, mas foi educada o bastante pra cumprimenta-lo, dizer quem era, e começar a explicar a situação. Isso durou até ele interrompe-la, de forma muito grosseira, a acusando de tingir o cabelo daquela cor bizarra pra chamar a atenção.

Uma breve notinha:

Sasara Atila não tingia o cabelo. Tampouco Yuuki. Acontece que, no Japão, as pessoas tinham cores naturais muito mais variadas de cabelo do que no restante do mundo, por... alguma razão.

O restante do ocorrido, sinceramente... eu não quero descrever, mas pra não quebrar a cena do nada, convém-me dizer que ambos gritaram um com o outro por vários minutos, e metade dessa discussão, a parte verdadeiramente assustadora, foi em relação a mim. Atila forçou sua entrada na casa, percorreu os dois andares a passos firmes que quase fizeram minha tia se esconder atrás do sofá, de medo, e pouco tempo depois, voltou até a porta da frente, com o rosto vermelho e lágrimas nos olhos, e acertou um tapa tão forte na cara do meu tio que o tirou do lugar, e... provavelmente, estourou algumas veias na sua cabeça.

Depois disso, ela suspirou, recuperou a compostura, e me pediu, docemente, pra ir pegar tudo o que fosse meu, e que eu não quisesse deixar pra trás. Pra ser completamente sincero, no entanto, apesar do seu tom gentil, ela tinha uma aura de morte pairando ao redor dela, e quase ganindo, eu corri pra dentro de casa, enchi uma sacola com meus poucos pertences, e corri pra fora, estabelecendo, provavelmente, alguma espécie de recorde. Ela me enfiou no carro depois disso, deixou Yuuki no banco de trás, e saiu cantando pneu, sob o olhar curioso de vários vizinhos.

Outra breve notinha:

Os processos judiciais que envolviam minha guarda, no próximo mês, e acarretaram na prisão de Vernon e Petúnia Dursley, e a guarda de Dudley a ser entregue para a família Polkiss, na verdade, mereciam, pra uma maior integridade da história, uma “parte 4”, ou mesmo um capítulo em separado, mas, sinceramente, não quero escrever sobre isso.

Foda-se.

Tratei de ficar o mais quietinho possível, enquanto Atila, ainda fula da vida, dirigia, com os olhos pregados na estrada e murmurando, eu chutaria, pragas horrorosas em japonês. Em algum ponto do percurso, ela voltou os olhos pra mim, e me vi encolher no banco do passageiro.

Seus olhar se amaciou um pouco, e ela murmurou alguma coisa, incompreensível, em japonês.

-D-Desculpe... mas eu não entendi.

-O cinto querido, coloque o cinto.

Me apressei a colocá-lo, e a viagem, novamente, caiu em silencio. A rigidez de suas expressões foi se desmanchando mais e mais enquanto avançávamos, por ruas e mais ruas, passando por partes de Surrey que eu nunca tinha visitado, e, algum tempo depois, saindo dela. Yuuki, no banco de trás, parecia entretida observando minhas coisas. Ela parecia seguir um ritual simples e repetitivo: Metia a mão na sacola cheia com minhas tranqueiras, puxava algo aleatório de dentro, e o fitava por alguns instantes, sua expressão tão neutra quanto antes, e a raiva e irritação só mostradas pelos olhos, os sempre tão brilhantes olhos, e a boca, que formava uma linha fina e dura que eu tinha percebido no rosto de sua mãe, enquanto fuzilava a estrada, pelo para-brisa, como se fosse matá-la.

O conteúdo da minha sacola, para a minha vergonha, consistia da minha coleção de bonecos de plástico de soldados, usando as insígnias e brasões ingleses, e portando espadas, rifles ou pequenas pistolas. Eu tinha nove, e eram meus únicos brinquedos. Havia também duas pedras, brancas e lisas, que eu havia recolhido do jantar e conseguira contrabandear pra dentro do meu armário, eu costumava fingir serem diamantes raríssimos que, se eu vendesse, daria pra comprar uma casa; uma única camiseta, que eu nunca tinha usado, mas ficara pequena demais pra Duda e estava meio manchada na marga esquerda – ele tinha o hábito de assoar o nariz ali – e um pedaço de corrente dourada, provavelmente de um medalhão, e provavelmente falsa também. Não é preciso dizer que a natureza dos meus maiores tesouros, em vista de uma criança normal, me envergonharam. Atila olhou para o banco de trás, em um momento ou outro, pelo retrovisor, e pareceu ter chegado a mesma conclusão que a filha, torcendo o rosto numa careta de raiva.

Quando finalmente chegamos na casa de Yuuki, a Sra. Sasara já estava completamente, se calada e pensativa, e deu a volta pelo carro pra abrir a porta pra mim antes que eu conseguisse desfivelar o cinto. Essa gentileza, como quase todas, era completamente nova pra mim e me fez fritar em vermelho, por mais previsível que fosse, você já deve ter notado que eu fazia muito isso.

Yuuki saiu sozinha do banco de trás, sem trazer minhas coisas, que ficaram no banco, e antes que Atila sequer tirasse as chaves da bolsa, e arrancando uma gostosa risada dela, estava me puxando, animadamente, pelo jardim, dizendo que ia me mostrar toda a casa, e que poderíamos passar a noite vendo animes juntos, e todo o tipo de coisa divertida. Não tive muita chance de ver a fachada do lugar, então não vale descreve-lo nesse momento, mas o jardim, por curiosidade, eu notei. Era muito bem cuidado, apesar de não obcessivamente, e apesar da grama estar uns bons centímetros mais alta do que minha tia acharia aceitável, havia um pé de roseiras, junto a janela, que crescia agarrada a cerca e já completamente florada, que arrancaria suspiros invejosos de todas as donas de casa respeitáveis de Little Wingling. Uma das duas árvores do jardim estava florada também, pontilhando a grama verde em volta dela com respingos de amarelo e branco.

Assim que vi o interior da casa, no entanto, meu primeiro pensamento foi que devia dar um trabalho desgraçado manter aquilo tudo limpo. Yuuki arrancou os sapatos, ficando apenas de meias, assim como Atila, e eu, na hora de repetir o gesto, me vi completamente envergonhado e sem jeito, ao constatar que estava descalço, com os pés vermelhos de terra, e provavelmente teria sujado todo o seu carro.

A Sra. Sasara também notou isso, mas o fato não ganhou mais importância ao seu olhar do que um sorriso de canto e um dar de ombros. Ela desapareceu dentro dos cômodos, e pouco tempo depois, voltou com uma toalha úmida, que usei pra me limpar o melhor que pude. Dizendo que ia preparar alguma coisa, ela finalmente deu permissão pra que Yuuki fizesse o que, já tinha vários minutos, ela vinha se coçando pra fazer, que era me agarrar pela mão e subir as escadas correndo, em direção ao seu quarto.

...

Assim que chegamos nele, e Yuuki fechou a porta, ela voou em mim, enlaçou os braços nas minhas costas e gritou, com a cara bem enfiada no meu peito, pra abafar qualquer som. Por mais bobo que fosse, na hora fiquei realmente com medo dela estar com raiva ou chateada comigo, mas esse receio desapareceu assim que ela levantou a cabeça, e eu vi seus olhos, aqueles olhos tão inacreditavelmente brilhantes, praticamente irradiando felicidade. Por um segundo, eu acho que a entendi, o porquê dela não sorrir, não chorar, e não mudar o timbre de voz. Se eu tivesse olhos como aqueles, também não me incomodaria em montar expressões pra revelar meus sentimentos, eles eram perfeitamente claros no mel das suas íris.

Sorri, eu não tinha olhos maravilhosos como aqueles, então dependia de artifícios menos sutis, e quando estendi a mão sobre sua cabeça, Yuuki se levantou na ponta dos pés, pra receber o seu afago.

-Você está contente, Yuuki?

Ela assentiu. Muitas vezes.

-Estou – ela quase ronronou – Eu não vou sentir saudades de você nunca mais!

Depois disso, ela me levou num “tour” pelo seu quarto, apresentando todos os seus móveis, desde a cama, até a poltrona que ficava junto a janela, com solenidade e importância, como se fossem cidades independentes, e não coisas num único cômodo. Meu sorriso morreu, contudo, e foi substituído por constrangimento, quando ela insistiu em me mostrar seu guarda-roupa, abrindo todas as gavetas e me apresentando as suas peças de roupas favoritas, incluindo, claro, suas calcinhas prediletas.

Yuuki agiu da mesma forma de sempre, enquanto tirava calcinhas de dentro da gaveta e me mostrava, as vezes as segurando na frente do seu corpo, pra mim ver como ficariam nelas – desprendeu-se algum esforço pra impedi-la de realmente coloca-las, pra mim ver – mas quando terminou, e eu já tinha passado qualquer tom cientificamente conhecido de vermelho, foi a vez dela ficar quietinha, corada e sem jeito.

-Tem mais uma coisa – ela disse, envergonhada, e novamente ressalto que seu rosto se manteve neutro como sempre, fora o rosa das bochechas e os olhos, luminosos – que eu quero que veja... mas tem que prometer nunca contar sobre isso a ninguém.

Por um instante, realmente, temi o que fosse. Se Yuuki não se incomodava em me mostrar suas calcinhas, o que poderia ser constrangedor o suficiente pra ela ficar envergonhada e exigir uma promessa? Quase disse que não queria ver, mas sabia que isso a magoaria, então engoli o embaraço. Como toda dupla de amigos que se conhece desde a infância, nós tínhamos nosso próprio sistema de maneirismos, que não fazia sentido pra ninguém, exceto pra nós. Segurando sua mão, eu a levei até meu peito, sobre o coração, e ela fez o mesmo com a minha mão. Olhamos um para o outro profundamente, por vários segundos, e juramos.

Suspirando aliviada, ela me presenteou com um pequenino sorriso, raro de se ver em seu rosto, ergueu a mão esquerda, e estalou os dedos.

Com um “pop” suave, um pequeno caderno, meio inflado pelo grande número de páginas adicionadas, apareceu em sua mão.

-Que legal! – exclamei, surpreso e admirado, mas baixei um tom de voz a um olhar de censura da garota – Você já consegue usar o switch em uma única via?

“Switch” – Comutação, como o tínhamos chamado, era o poder de Yuuki. Levou vários meses de testes e experimentos, mas ao final, nós dois tínhamos conseguido entender e reproduzir o estranho fenômeno que levou com que, pra começo de conversa, nos conhecêssemos. No caso de Yuuki, ela podia comutar, ou seja, trocar de lugar, dois objetos não muito distantes, ou duas pessoas, incluindo – claro – ela mesma. Era dessa forma que ela tinha aparecido no telhado, por, instintivamente, trocar de lugar com uma das telhas instantes antes de ser atropelada. Vasculhando o lugar, mais tarde, encontramos pedaços do barro, já transformado em pó, em sua maior parte, pelos pneus dos carros que passavam por ali. Não levou muito tempo pra, depois, descobrirmos uma única telha faltando, no já mencionado telhado. A partir desse ponto, surgir com a teoria não foi difícil, e considerando a enorme quantidade de animes e mangas que Yuuki via, referencias criativas eram o que não faltava.

-Não consigo – ela respondeu por fim, dando de ombros – Mas eu bolei um truque...

Yuuki abaixou a manga da blusa, e no seu pulso direito eu pude contar uma porção de elásticos, usados como se fossem pulseiras. Imediatamente entendi a serventia deles, como um item descartável, usados como segunda via pra repor o lugar de qualquer coisa que Yuuki quisesse, por um motivo ou outro, convocar.

-Isso é muito inteligente – eu disse, examinando o seu braço – Por ser algo comum, não vai te fazer falta, e nem surpreender alguém que o encontrar, elásticos estão por toda a parte, afinal...

Ela ruborizou com o louvor, e como de hábito, inclinou a cabeça na minha direção, quase derretendo de contentamento enquanto eu acariciava seus cabelos.

-Eu só tenho sete elásticos, por isso, posso usar o switch sete vezes, antes de precisar usar outras coisas aleatórias – ela disse, dando de ombros, como se fosse uma limitação perfeitamente aceitável – Ficaria estranho ter mais elásticos que isso no braço... Aliás, você pode usar o Disaster e pegar o sétimo de volta pra mim? Esta encima do guarda-roupa.

Assenti com um sorriso e, um segundo depois, estava flutuando no chão do seu quarto, as pernas um pouco arqueadas e uma única mão estendida. Assim que o forro do guarda-roupa se tornou visível, e eu tive que inclinar a cabeça pra não tocar o teto, acenei com um dedo pra cima, e o elástico flutuou pra fora do guarda-roupa, caindo nas mãos estendidas de Yuuki junto com um pouco de poeira, que veio junto do forro de madeira como um simples efeito colateral.

-Sua magia é linda, Harry... – ela disse, com as bochechas coradinhas e os olhos brilhantes, me observando no ar, no seu quarto.

Corei também, esfregando a parte de trás da cabeça enquanto cruzava as pernas, ainda no ar. Disaster, como eu havia chamado – simplesmente porque era um nome muito legal – era um poder bastante simples. Eu poderia cancelar a gravidade, da forma que quisesse, em torno de qualquer pessoa ou objeto. Basicamente falando, eu podia levitar, voar, e levitar e controlar outros objetos no ar. Era simples, mas tinha aplicações imensas, assim como o switch. Minha maior limitação, no momento, tanto quanto para Yuuki era a distância entre os objetos que ela queria comutar, era a velocidade. Concordamos que, em teoria, não havia limite real pra nenhum desses dois fatores, mas era fato que eu não conseguia me mover, ou mover outros objetos muito rapidamente no ar, se ultrapassasse um certo nível de rapidez, a manipulação se tornava instável, e eu perdia o controle.

Não era algo que me preocupasse, entretanto. Quando havíamos descoberto nossos poderes, as coisas mais simples eram um tremendo desafio, e hoje, essas coisas se provavam fáceis, e até bobas, era pura questão de prática.

Algum tempo depois, estávamos conversando sem nada em mente, apenas falando sobre o que viesse a cabeça, enquanto Yuuki, sentada entre minhas pernas e recostada contra o meu peito, brincava de trocar objetos aleatórios do quarto de lugar, e destroca-los logo depois, pra evitar que tudo ficasse muito bagunçado, enquanto focava o lápis que, usando Disaster, eu fazia arremeter contra pedaços de papel em branco, tentando, sem muito sucesso, escrever coisas neles. O máximo que eu conseguia fazer, que não retalhar o papel, era alguns riscos grosseiros.

Foi nesse momento que Atila abriu a porta, e eu, o mais rápido que pude, agarrei o lápis e os papeis que flutuavam. Felizmente, eu e Yuuki estávamos numa situação tão embaraçosa que ela nem notou os objetos flutuando, e apenas riu contra a palma da mão, enquanto eu tentava me desculpar.

-Vocês dois são tão fofinhos juntos! – ela disse – Eu nunca vi um garoto e uma garota da sua idade se dando tão bem, quando tínhamos dez anos, e eu meu irmão vivíamos na garganta um do outro.

Ruborizei mais ainda, se é que era possível, quando Yuuki apenas se recostou mais em mim, confortável como se estivesse numa banheira. A Sra. Sasara disse que tinha terminado o almoço, e que era bom que eu me apressasse em tomar um banho, senão a comida ia esfriar.

O banheiro da casa de Atila era uma estranha mistura de um banheiro ocidental comum, com um chuveiro, uma banheira larga e espaçosa, pra duas ou mais pessoas, e todas as coisas que se tem em um banheiro, mas também havia um espaço de piso rebaixado, com um banquinho, que Yuuki me disse após, é claro, conseguir se esgueirar pra tomar banho comigo, serem tradicionais em uma casa de banho japonesa. Era muito grande – o banheiro – maior do que o quarto todo de Yuuki, e ela parecia adora-lo completamente.

Mesmo morrendo de vergonha, não demorou muito pra relaxar, depois de Yuuki tirar minhas roupas a força e me sentar no tal banquinho, dizendo que ia lavar as minhas costas pra mim. Desse ponto em diante, a respeitabilidade da minha situação começou a decair mais e mais, até que, vinte minutos depois, Yuuki estava largada, coradinha e quase dormindo, nas minhas costas, com os braços em torno do meu pescoço, enquanto eu esfregava meus pés.

Foi mais ou menos essa a cena que Atila viu, quando abriu a porta de correr do banheiro. Eu, previsivelmente, corei até a morte, tentando explicar como Yuuki tinha me obrigado, e não o contrário, e como ela tinha me molestado de formas indizíveis, e não o contrário – na realidade, ela tinha apenas lavado minhas costas... e dormido encima delas – mas Atila, longe de ficar brava, e provando ter os mesmos padrões estranhos de decência e pudor da filha, ficou nua e resolveu tomar banho conosco.

Só posso dizer duas coisas sobre isso:

Tomar banho todos juntos se tornou um hábito nosso, e pouco tempo depois eu perdi completamente a vergonha, e...

Os peitões da Sra. Sasara eram ainda mais incríveis, quando ela estava nua.

Provavelmente seria um desastre quando eu passasse pela puberdade, mas no momento, era apenas embaraçoso, muito íntimo e bastante eficaz pra quebrar o gelo, eu acabei ficando confortável e, como tinha aprendido a fazer, com a Yuuki, ignorar as esquisitices e levar pra frente. Era uma boa situação, apesar de tudo, uma situação aquecedora.

...

-Bem... nós temos vários quartos, mas como todos eles estão meio que desativados – A Sra. Sasara disse, enquanto colocava um pesado e macio cobertor sobre o meu corpo – Você vai ter que dormir com a Yuuki por enquanto, espero que não seja um problema...

Tive que sorrir sem graça com isso, no momento, Yuuki estava se enfiando dentro da minha camiseta, até estar com o rosto perto do meu, e pegar no sono quase imediatamente com a cara enfiada no meu pescoço. Atila sorriu amigavelmente pra isso.

-Vocês se apegaram tão rápido – ela murmurou, coradinha e linda feito uma modelo – Queria que eu e meu irmão fossemos assim, nessa idade... enfim...

Se aproximando, ela deu um beijo de boa noite, na minha testa, nos descobriu o bastante pra beijar o topo da cabeça da própria filha, e saiu do quarto cantarolando. No escuro, e no silencio, fiquei meio superconsciente ao fato que Yuuki estava bastante nua, e evitei me mexer pra não perturba-la.

-Harry...?

-Sim?

-Ureshi... eu estou feliz...

Acaricie sua cabeça, como costumava fazer, e ela derreteu toda encima de mim.

-Eu também – eu disse, com um sorriso de canto – Eu também.

Só mais tarde, no meio da noite, é que eu assimilei tudo o que tinha acontecido devidamente, e as implicações disso, o fato de eu não precisar voltar para os Dursleys, e o fato de estar vivendo com uma pessoa carinhosa, que me tratava bem e, possivelmente, com o tempo, poderia até me amar.

Tive uma crise de choro silenciosa momentos depois disso, enquanto apertava Yuuki em mim como se fosse uma tábua no meio do oceano, a única coisa que me impedia de afundar. Ela não acordou, se acordou, ficou em silencio, quietinha, com os lábios colados no meu pescoço e a respiração provocando arrepios na minha coluna.

Como eu disse, seria um tormento, durante a puberdade.

...

Alguns meses se passaram, desde que eu fui morar com a Sra. Sasara e sua filha, que por acaso, era a minha melhor amiga, Yuuki, e um bocado de coisas aconteceu. Acho que já mencionei tudo sobre os Dursleys e seus destinos gerais, mas vale ressaltar que Duda, mesmo que morando com os Polkiss, não abandonou de forma alguma seu jogo predileto entre todos: Caçar o Harry, ou seja, eu.

Agora, no entanto, mais que um jogo pra ele, era um jogo pra mim também. Dudley e seu amigo com cara de rato, Piers, tinham a ajuda de mais dois ou três garotos, todos delinquentes juvenis como o meu primo, filhos de famílias com uma situação financeira boa o suficiente pra se importar mais com as roupas dos seus filhos do que com eles, propriamente dizendo, e quase diariamente, todos os quatro ou cinco deles começavam a correr atrás de mim, rindo e agitando canivetes. Por direito, aquilo deveria me apavorar. Não apavorava.

Assim que cheguei no meu primeiro beco, usei Disaster pra voar rapidamente, ou o mais rapidamente que conseguia, o que, ao meu ver, ainda era um pouco lento, para o topo do pequeno prédio de apartamentos, e, calmamente, joguei a mochila por sobre o ombro, caminhando tranquilamente. O prédio terminou, e eu flutuei até o próximo, e assim por diante. O ruim de poder flutuar e voar como se quisesse era que você ficava extremamente preguiçoso em usar as próprias pernas, tão mais fácil era só se arrastar pelo ar. Quando cheguei na beirada do terceiro prédio, vi uma sombra de cabelos azuis na calçada, lá embaixo, e assobiei o mais alto que podia.

Yuuki olhou pra cima, e inclinou a cabeça. Desfazendo um dos elásticos no pulso, ela o armou no dedo, como se fosse um revólver, de forma que ficasse bem esticado, e após mirar por um segundo, atirou. O pequeno laço de borracha subiu por mais da metade do prédio, antes da gravidade começar a puxa-la pra baixo, mas já era o suficiente pra eu conseguir pega-lo com Disaster, e levita-lo até que estivesse bem a minha frente.

Yuuki usou Switch no mesmo instante, fazendo o elástico tornar a aparecer no chão, e ela no ar, bem na minha frente, prontamente caindo nos meus braços estendidos e envolvendo os braços pelo meu pescoço.

-Onni... Oi.

Apenas sorri pra ela, por um momento, esperando ela descer. Claro que ela não desceu, assim, com um revirar de olhos nada irritado (embora eu as vezes achasse que devia ser um pouco mais incisivo, pra ela parar de ser tão grudenta... Ah, quem estou enganando?! Eu adorava aquilo tanto quanto era) recomecei a andar, e flutuar, ocasionalmente.

Dudley deve ter ficado... bem, não me importava onde ele estivesse, realmente.

-Você faz onze anos hoje... ne? – ela disse, e se aproximou – Feliz aniversário.

Enquanto eu caminhava, Yuuki se agarrou mais em mim, e deixou um beijo longo e apertado, curiosamente, no meu pescoço. Mais tarde ela disse que era o máximo que ela alcançava, mas não sei se acredito nela.

As aulas foram, no geral, de boa. Por mais que as amigas de Yuuki exigissem sua atenção, ela sempre acabava gravitando pra mim, e no horário do almoço, como sempre, acabamos nos encontrando no jardim da biblioteca, pra almoçar. Ela tirou duas marmitas, desembalou uma, pescou um pedaço de carne pingando molho – eu sei, parece delicioso, mas acredite, era horrível – e estendeu pra mim. Eu já tinha tentado, algumas dezenas de vezes, convence-la a me deixar comer sozinho, mas me alimentar, principalmente depois de uma visita ao médico, e a revelação de eu ser desnutrido, se tornou, pra ela, uma responsabilidade, ainda mais quando Atila dizia pra ela se certificar que eu comesse bem em todas as refeições.

Apesar de ser horrorosa, eu tinha criado um estranho gosto pela comida da Yuuki, mas daquela vez, a carne estava realmente boa, em todos os padrões, e descobri que Atila conseguira, no meu aniversário, tirar um tempo do trabalho pra cozinhar pra nós. Não era algo comum por que ela ficava sempre muito ocupada, exceto durante os fins de semana e a noite, então eu acabei franzindo o cenho.

-Ela cozinhou logo de manhã, e eu esquentei bastante antes de sairmos – Yuuki disse, meio pra baixo – Está bom?

-Delicioso, mas eu prefiro quando você cozinha.

Ela abriu um sorriso radiante. Não era de todo mentira, na verdade... por mais que possa parecer...

O horário do almoço terminou, e as aulas do segundo período passaram no mesmo ritmo arrastado de sempre. Hoje era terça-feira, então tínhamos uma pequena maratona de aulas de línguas: Inglês, espanhol e francês. Tudo bem com francês, mas eu me ressentia um pouco por ter que fingir aprender espanhol. Uma vez o professor me deu uma bronca e disse como era importante, por ser a língua falada em toda a América do Sul (caso vocês não saibam, isso é um erro, um dos quais revolta muito o autor) e como era importante por isso, isso, e aquilo, e blá, blá, blá... Foi só quando voltávamos pra casa que algo realmente aconteceu, e quando digo algo, não me refiro a interessante, e sim muito próximo de me dar um aneurisma.

Entenda... Andar ficava chato muito facilmente, quando se podia voar, um dos grandes sonhos da humanidade, e eu tinha essa capacidade na palma da mão, por isso, quase sempre Yuuki e eu acabávamos nos escondendo em um beco, e fazíamos o resto do caminho até nossa casa por sobre os prédios. Yuuki normalmente ia nas minhas costas nessas situações, e era como estava no momento, falando sobre qualquer coisa no seu tom monocromático de sempre, até estagnar.

Não teria me chamado a atenção se seu corpo não tivesse ficado, repentinamente, gelado, e quando olhei na direção em que seus olhos estavam focados, também senti o ar escapar dos meus pulmões. Sabe aqueles poucos segundos extraordinários que antecedem uma catástrofe, e demoram uma eternidade pra passar?! Acabámos presos num desses momentos.

Tudo aconteceu muito rápido, uma sequência rápida de ações que levou a um final triunfante, mesmo podendo ter sido um desastre, pra não tem como narrar isso com a mesma velocidade com que aconteceu, então... paciência. O que Yuuki, e eu, estávamos vendo, era o prenúncio de um acidente de transito, do tipo calamitoso. Um carro vinha a toda pela rua, ao mesmo tempo que uma bola quicava, pelo asfalto, e uma garotinha pequena, bem mais jovem que Yuuki e eu, pulava a calçada pra correr atrás dela. Todos esses elementos foram percebidos quase ao mesmo tempo, como peças de um quebra cabeça que, apesar de estarem separadas, faziam todo o sentido do mundo. Como olhar o três, o dois e o cinco e saber, que juntos, eles formavam dez.

Yuuki se recuperou do choque primeiro que eu, e mesmo aquela distancia, conseguiu usar o Switch pra trocar de lugar com a garota, a salvando do mesmo terrível destino que ela, uma vez, a muito tempo, quase compartilhara. Senti o pesinho da garota nas minhas costas, mas nem liguei quando ela caiu de bunda no topo do prédio, por falta de apoio. No momento, uma coisa muitíssimo mais importante chamou minha atenção.

Yuuki. O carro.

Qualquer limitação de velocidade que eu tivesse não significava nada se ela estivesse em perigo, eu percebi isso, naquele momento. Minha visão se acentuou e formou um túnel, ao ponto que nada no mundo existia além de mim e da garotinha de cabelos azuis, e, saltando do prédio, eu percorri a grande distância, em menos tempo do que o carro em alta velocidade levou pra percorrer o metro que faltava pra chocar-se contra seu corpo. Sua mente ainda não tinha contabilizado todos os acontecimentos, quando “freei” bruscamente, por assim dizer, a agarrei, e disparei pra cima como um torpedo, formando um ângulo reto no ar que fez meus ossos reclamarem, com a pressão do movimento. Yuuki nos meus braços estava gelada de medo, pressionando tanto as unhas no meu braço que tiraram sangue, e o carro passou, a um centímetro de diferença de acertar o meu calcanhar.

Só parei de acelerar quando a adrenalina tinha passado, e a esse ponto, estava mais alto do que nunca tinha estado antes. Olhei pra baixo, por um momento, e vi Londres pequena, apenas uma manchinha repleta de movimento, entre o verde e o marrom das cidades, vilas e campos à sua volta. Não me importei com isso no momento, nem com as nuvens nem com o ar rarefeito, a única coisa que me dizia respeito, a única coisa mais importante pra mim, no mundo todo, estava nos meus braços, tremendo e respirando em bicas, minha Yuuki estava bem.

Tomei uma longa, respiração profunda, pra acalmar o coração. Depois trinquei os dentes e fiquei fulo da vida.

-Sua boboca! Menina insensata! – gritei, do fundo dos pulmões, e os olhinhos castanhos dela travaram em mim, chocados – A próxima vez que fizer algo tão perigoso, eu vou... eu vou... te dar uns tapas no bumbum!

Ok... Olhando pra trás, percebo que essa não foi a ameaça mais madura, nem a mais efetiva, que eu podia ter feito no momento, nem me ganhou o efeito desejado. Yuuki não pareceu amedrontada, sequer arrependida, na verdade, ela ruborizou inteirinha e se agarrou mais em mim.

-Obrigado, onii-chan – ela disse, se aproximando de mim, e deixando um beijinho de leve nos meus lábios – Eu vou ser uma boa menina.

Mentirosa...

...

Foi só mais tarde, quando chegamos em casa, que me lembrei da garotinha que eu, por descuido, deixei encima do prédio. Ela estava sendo resgatada por bombeiros, no noticiário, e quando o repórter foi falar com ela, deu uma magnífica descrição da pessoa que a tinha “sequestrado”, como algo completamente diferente de mim, e terminou dizendo que achava ser o Superman. O repórter riu e prometeu que eles investigariam se o homem de aço tinha se voltado para o mal de fato, maltratando de garotas bonitinhas, ou se era um plano do diabólico Lex Luthor novamente.

Atila desligou a TV, criticando o sensacionalismo nos telejornais, e ao me ver parado, com cara de tacho, atrás do encosto do sofá, correu me agarrar, me levantar no colo, e apertar um beijo na minha boca.

Não entenda mal, não foi um beijo “beijo”, do tipo “beijo”, sabe? Assim como Yuuki, e apesar de ser uma excelente mãe em todos os sentidos, ela não tinha o mais coeso senso de moral que se pode encontrar por aí. Eu me importava com isso?! Nem a pau. Pessoas com um autoproclamado ótimo senso de ética me fizeram passar pelo inferno por dez anos, uma pessoa razoavelmente imoral tinha me tratado com carinho nos últimos meses, era fácil ver que eu estava bastante disposto a aceitar todas as esquisitices daquela pequena família que, num curto espaço de tempo, tinha se tornado a minha.

-Você faz onze anos hoje, eu estou tão contente! – ela riu, tornando a me abraçar, gargalhando como a maníaca que ela era – Vamos tirar um monte de fotos, e comer bolo, e ganhar um monte de presentes, que tal?

Sorri, meio sem jeito, enquanto ela esfregava a bochecha contra a minha, e me beijava novamente, dessa vez na bochecha, antes de me pôr no chão e me enxotar pro chuveiro. É preciso compreender totalmente toda a imoralidade que Atila e Yuuki compartilhavam, para a próxima cena não ser um choque, ou passar por desconexa, então... vamos lá.

Apesar de não ser uma nudista, digamos assim, Atila tinha crescido, em sua maior parte, sozinha, com seu irmão mais velho – eu ainda não o conhecia – e sem muita supervisão por parte de adultos, eles não tinham um senso muito apurado de pudor, no que se refere as coisas mais simples do dia a dia. A casa era pequena, com apenas um quarto e um banheiro, então eles dormiam juntos, e tomavam banho juntos. Um dia, enquanto conversávamos, alguns meses atrás, Atila confessou que era principalmente culpa dela, por ser muito chorona quando adolescente. Era também o motivo por que, mesmo depois de todo aquele tempo, ela ainda protelara em arrumar um quarto, de fato, só pra mim.

“Vocês dois são tão fofinhos juntos – ela disse, uma vez, quando foi nos acordar pra ir pra escola, ignorando minhas explicações ruborizadas enquanto assistia a filha, nua em pelo, se enroscar pra fora da minha camiseta... comigo dentro – Que dá até dó separa-los”.

Bem... acho que dá pra entender. Tendo em vista isso, a imagem da Sra. Sasara, nua, esfregando minhas costas, enquanto seus peitões roçavam minha lombar – a bem da verdade, acidentalmente, eles eram grandes demais e acabavam esbarrando as coisas – não deve ser um choque né?! Nem se eu dizer que Yuuki, também pelada, estava sentada na minha frente, quase ronronando de felicidade enquanto eu passava xampu nos seus cabelos? Não?! Então tá...

É mais ou menos esse o cenário, três pessoas sentadas como macacos, um em frente ao outro, só que se lavando em vez de catar carrapatos, o que serviu de palco para do, até então, acontecimento mais estranho da minha vida.

Uma coruja, toda cinzenta, exceto por umas marcas vermelhas ao redor dos olhos e na testa que davam-lhe a aparência de estar enfezada, acertou em cheio a janela do nosso banheiro. Atila gritou de susto, quase caindo pra trás, enquanto Yuuki, inclinando a cabeça, disse: “Paparazzi?” – Não me perguntem o que se passava na cabeça dela, na hora.

Acabou sobrando pra mim abrir a janela, e tentar desenroscar o pobre bicho dali pra que não morresse. Curiosamente, no entanto, em vez de saltar pra fora, e voar pra outro lugar, ele entrou dentro do banheiro, arriou as penas e soltou um “hook” indignado. Isso foi depois de estender a perna, revelando dois embrulhos.

-Pombo correio! – Yuuki sugeriu, de forma muito mais sensata, dessa vez.

Tirei os dois embrulhos, escritos em pergaminho pesado, da sua perna, e a coruja piou novamente – eu pude jurar que soou como um “até que enfim” – antes de saltar e pousar encima da tampa da privada, escorregando um pouco por causa do plástico liso.

As cartas estavam endereçadas por, respectivamente:

Harry Potter

No banheiro, sendo acariciado pela mãe da seguinte destinatária.

Yuuki Sasara

Sendo acariciada pelo destinatário anterior.

Atila voou nas cartas, assim que as mostrei, e folheou ambas rapidamente, ganhando no rosto uma expressão mista entre espanto, horror, incredulidade, e zombaria.

-Eu tenho que admitir – ela disse, depois de algum tempo, enquanto Yuuki usava o secador de cabelo nela – Se isso for uma brincadeira, é uma extraordinariamente bem formulada. Quer dar uma olhada amor?

Ela me estendeu a carta, que eu li. Yuuki ganhou a dela logo depois, e nos entreolhamos, por alguns segundos.

-Pode não ser uma brincadeira, Atila... – eu disse, após eu e sua filha termos chegado a um entendimento silencioso – Nós temos que contar uma coisa... É complicado...

Yuuki, prática como sempre, caminhou até a penteadeira e tirou um frasco de perfume de dentro, chamando a atenção de nós dois – Atila do qual franziu a sobrancelha para a filha. Ela deixou o frasco dentro do box do chuveiro, antes de fechar a porta de correr, de vidro, e apontou a mão pra mim.

-Switch!

Me vi caindo sentado dentro do box, enquanto o frasco de perfume caía seguramente em sua mão estendida. Atila ficou presa em um silencio chocado, que só aumentou quando abri a porta de vidro, com um gesto, e apontei a mão para o mesmo frasco.

-Disaster!

Ele flutuou alguns segundos no ar, poucos metros acima da mão ainda estendida de Yuuki. A tampa de desarrolhou sozinha, e o líquido escorreu pra fora, formando desenhos elaborados no ar, antes de escorrer pra dentro do frasco novamente, em uma linha fina que mal tocou as laterais do furo, pra então se fechar novamente cair nas mãos de Yuuki.

-Exibido – ela apontou pra mim, os olhos brilhando divertidos e acusadores, enquanto sua expressão, perpetuamente impassível, não se desfazia.

Após alguns segundos de silencio, eu fiquei com medo do que realmente pudesse acontecer. Me arrependi de ter forçado a barra, e me preparei para o que faria se Atila se levantasse e começasse a gritar que eu era uma aberração, chegando até a ficar com lágrimas nos olhos e o coração disparado, de antecipação. Fazia quase um ano que eu morava com ela, e naquele tempo, tinha vindo a amar verdadeiramente aquela pessoa meio maluca, mas completamente sincera, o quão me machucaria se ela me odiasse?

Felizmente, não precisei descobrir isso. Atila deu um grito agudo de entusiasmo e nos agarrou, os dois, num abraço de urso.

-Meus filhotes vão ser protagonistas num anime shonem da vida real, eu estou tão feliz!

Ainda nua, e meio eufórica, ela correu responder a carta, aceitando fazer parte dessa tal de “Hogwarts”, segundo as instruções. Ela pediu, no entanto, pela visita de um professor, pra explicar os detalhes a ela, e uma prova de que tudo dito ali era verdade, e não uma brincadeira de terrível mal gosto, no entanto. Apesar de hiperativa e meio eufórica, as vezes, ela ainda era uma mãe cuidadosa.

O resto da tarde, passámos conversando na sala de estar, com uma bandeja gigantesca de pipoca entre nós três. Atila se sentou, me puxou pro seu colo, e Yuuki imediatamente se jogou no meu colo, ela impassível, eu envergonhado, e Atila sorrindo de orelha a orelha. As questões levantadas envolviam dezenas de animes diferentes, os X-man, e curiosamente, os illuminati.

...

Atila ligou pra escola no dia seguinte, dizendo que ambos tínhamos pegado uma gripe muito forte e iríamos ficar em casa por alguns dias, só no caso de piorar pra uma pneumonia. Isso nos deixou livres pra dormir até tarde e receber a visita do professor, que tinha sido confirmada, ainda ontem à noite, pra hoje de manhã, as onze horas.

Era dez, quando ela me sacudiu pelo ombro e meu deu um beijo no rosto, rindo quando os cabelos azuis da filha apareceram pela gola da minha camiseta.

-Kaa-chan, ohayo – Yuuki murmurou, sonolenta - Quentinho...

-Que bom que você acha confortável dormir encima do seu irmão, mas já está na hora de levantar.

Apesar de ser bem tarde, tínhamos ido dormir bem mais tarde do que o comum ontem, por isso ainda soltamos uns bocejos enquanto rumávamos para o chuveiro. Yuuki agarrou minha mão e foi tropeçando, junto comigo, e quanto a água quente começou a cair encima de nós, ela se abraçou e ficou, meio que pendurada, ressoando tranquilamente. A água quente não chegou nem perto de acorda-la completamente, e só quando eu comecei a esfregar a exponha pelas suas costas, é que ela piscou e passou a sustentar mais que metade do próprio peso.

-Você não está animada? – perguntei, com um sorriso de canto – Vamos conhecer um professor de magia, que vai nos mostrar a sua escola de magia!

Yuuki deu de ombros, bocejou e tornou a se recostar em mim, escorregando a mão pelo meu braço até agarrar a esponja, e começar a esfregar algum ponto aleatório das minhas costas.

-Você quer dizer que está animada, mas ainda está com sono demais pra se importar?

Ela fez que sim, sonolenta, até pular assustada, quando eu segurei seu rosto, e deixei um beijo longo e carinhoso nos seus lábios.

Sua face se esquentou inteira e ela acordou completamente.

-Onii-chan... esta atrevido hoje – ela disse, então deu uns passos pra trás e ficou na pontinha dos pés, balançando de um lado a outro com as mãos cruzadas no peito, apesar do ato não sair como deveria, dada a sua expressão, como sempre, estar tão neutra quanto uma lousa em branco – Será que você vai abusar da Yuuki...?

-Baka... – murmurei, acertando um peteleco na sua testa. Era difícil morar com duas japonesas, uma das quais não fala inglês a cem por cento ainda, e não incorporar uma ou duas palavras ao seu vocabulário – Vamos sair antes da água quente acabar.

-Mou... eu queria ficar um pouco mais.

-Não seja uma garotinha mimada – eu disse, tentando (e fracassando completamente) soar repreensivo, como um bom irmão mais velho. Apesar de Yuuki ser, na verdade, algumas semanas mais velha do que eu, tínhamos chegado a um acordo silencioso de que ela seria minha irmãzinha, por isso era minha responsabilidade ser severo com ela... Parando pra pensar, talvez ela soubesse que eu nunca conseguiria, e fez isso de propósito... Macaquinha levada – Vamos tomar café e ficar prontos pra visita do professor.

-Hai, hai...

Estávamos terminando de tomar café, quando os ponteiros do relógio da cozinha se encaixaram no onze em ponto, e três batidas lentas e ritmadas soaram na porta. Atila piscou, impressionada com a pontualidade do professor, seja lá quem fosse, e limpou as migalhas da boca, ajeitando o cabelo enquanto caminhava até a porta da frente.

Ela a abriu sem sequer olhar o olho mágico, e eu confesso que, à primeira vista, me encolhi um pouco na cadeira.

O sujeito na porta era grande de uma forma quase inconcebível. Eu costumava dizer que Valter era grande feito uma morsa, mas aquele cara estava mais pra um urso, ou um mamute. A porta terminava no meio do seu peito, onde a pontinha da sua barba desgrenhada ficava a vista, e quando Atila pediu que ele entrasse, ainda com os olhos arregalados, o gigante teve que se curvar e ficar de lado, e ainda assim sua enormes barriga se esfregou contra o batente da porta. Dentro da casa, ele teve que manter a cabeça abaixada, enquanto olhava de um lado a outro com um sorriso no rosto.

Foi aí que ele me viu, e tivemos duas reações muito distintas. Eu fiquei com medo. Ele começou a chorar.

Mesmo sentado, o gigante ainda era mais alto do que Atila, e vê-la consolando o homem deve ter sido a coisa mais esquisita em que já pus os olhos, mas me fez perder a maior parte do receio dele. Minha mãe tinha um jeito fácil de compreender as pessoas e entende-las em apenas alguns minutos, se ela estava sendo tão amigável com o sujeito (ela estava dando tapinhas na sua cabeça enquanto murmurava: Pronto, pronto, calma) ele não devia ser tão ruim. Me aproximei dos dois quando ela fez sinal pra mim chegar mais perto, e parei em frente ao gigante, minha cabeça mal chegando na sua cintura.

-Oi, eu sou Harry.

-Eu sou Hagrid – ele disse, entre fungadas – A última vez em que te vi, você era apenas um bebezinho... você cabia na minha mão.

Na verdade, eu acho que se encolhesse as pernas e curvasse o corpo, eu ainda poderia me sentar na mão daquele cara, mas isso não importava. Havia uma certa diferença entre adultos e crianças, que éramos capazes de perceber com os olhos, uma diferença que mesmo Atila, a adulta mais legal que eu conhecia, tinha. Hagrid, no entanto, não tinha essa “coisa” que diferenciava crianças de adultos, então na minha cabeça, eu apenas o categorizei como um novo amigo, que cresceu demais. Por isso não me importei de usar Disaster pra flutuar uns bons metro e meio no ar, até estar na altura dos seus olhos, e arreganhar um sorriso na cara.

-É um prazer te conhecer – estendi a mão.

Ele me olhou, olhou pro chão, e tornou a olhar pra mim, depois me agarrou num abraço de urso e começou a chorar de novo.

-Calma, calma – Atila continuou murmurando, dando tapinhas na sua cabeça – Pronto, pronto.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E aí... rewies?