Ovelhas Negras escrita por Bianca Vivas


Capítulo 21
Pronta para o combate




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Maria de Lourdes

A sala já estava lotada, mesmo àquela hora da manhã. A proximidade das provas sempre tornava os alunos mais responsáveis, chegando cedo e fazendo as atividades. Os alunos mais inteligentes também eram frequentemente solicitados e quando Maria de Lourdes entrou na sala, Gabriel e Felipe estavam cercados por aqueles que não tinham boletins tão bonitos assim.

Os dois garotos estavam com o livro de Biologia aberto na carteira e explicavam alguma coisa para o grupo que os rodeava. A menina estreitou os olhos, procurando pelas duas garotas que sempre tiravam notas tão altas quanto as dele, porém não as viu. Elas não estavam na sala. Lola deu de ombros e procurou uma cadeira no fundo da classe. Quanto mais tempo ficasse sem ver o sorriso de Lara, melhor. E quanto mais longe ficasse de Felipe, na frente dos outros, menos triste ela ficava.

Ao contrário dos outros alunos, ela não abriu o livro de Biologia, mas sim o de Literatura. Começou a folhear, procurando pelo assunto que estavam estudando. Ela se afundou no Brasil de 1922 enquanto o resto de seus colegas tagarelava sobre genética, Mendel e como a primeira prova do ano estaria complicada.

Estava lendo um trecho do Manifesto Pau-Brasil de Oswald de Andrade contido no livro, quando notou uma pequena confusão na frente da sala. Ela estreitou os olhos tentando enxergar melhor, mas os alunos estavam muito aglomerados. Lola fechou o livro com um baque surdo e caminhou lentamente até o local onde seus colegas estavam.

De alguma maneira, ela não se surpreendeu ao ver fios negros feito carvão emoldurando um rosto incrivelmente esbranquiçado, no centro de tudo. Os olhos castanhos de Lara saltavam das órbitas e sua expressão de fúria era quase demoníaca. Os dentes dela estavam expostos, como os de um vampiro, e ela apontava com força para o melhor amigo de seu irmão gêmeo.

Os olhos de Felipe estavam vermelhos e seu rosto, muito corado. Os lábios dele estavam descorados e Lola percebeu que Felipe o mordia frequentemente. Gabriel estava prostrado ao seu lado, olhando fixamente para a irmã. O garoto estava com os punhos fechados e tentava se controlar para não avançar nela. Do outro lado, Juno tentava conter Lara, sem sucesso. Tudo o que ela estava conseguindo era bagunçar os cabelos louros e amassar o uniforme.

Lola se espremeu ainda mais entre os alunos, entrando no campo de visão de Lara. Assim que a viu, a garota começou a gritar ainda mais.

— Ela sabia e ela encobria tudo! — Lara apontava para Lola que, sem entender, só fez arquear as sobrancelhas. — Ela é tão demoníaca quanto ele!

— Eu sou o quê? — Lola perguntou, colocando as mãos nos quadris e olhando diretamente para Lara.

— Lara, calma, venha comigo — Juno interviu, puxando a amiga para trás. — Você está muito nervosa. Não está falando coisa com coisa.

— Eu não estou nervosa! — Lara gritou. — E eu sei muito bem do que estou falando!

— Engraçado — Gabriel falou, com uma voz muito controlada e carregada de ironia —, porque você só fez xingar todo mundo e gritar feito louca.

— Eu não sou louca! Ele é! — Ela apontou para Felipe com ainda mais urgência e fazendo Juno soltar seu braço. — Ele é um gay imundo e cheio de pecado!

Lola olhou de Felipe para Lara com um vinco na testa. Aquilo era novidade. Uma novidade que fazia tudo fazer sentido de novo. Ela sentiu uma pontada no peito por Felipe nunca ter dito nada. Porém, a raiva e o nojo que sentia de Lara era maior que seu ressentimento por Felipe. Sem nem lembrar da suspensão que havia levado pouco tempo atrás, ou no fato de que estava agredindo sua colega na frente da sala inteira, Lola sentiu seu punho fechar. Avançou para cima de Lara e a empurrou até a parede.

Os olhos da menina ficaram esbugalhados. Dava para sentir o medo emanando deles e da respiração rápida e descompassada dela. Apertou a menina ainda mais contra a parede e foi levantado o punho. Estava prestes a esmagá-lo no rosto rosado de Lara, quando sentiu algo segurando seu braço. Era uma mão pesada e forte que a forçou a abaixar o punho.

— Não vale a pena — uma voz masculina falou. Lola se virou e deu de cara com o rosto tímido de Felipe. — Vem. — Ele puxou Lola para longe de Lara.

— Eu tenho vergonha de você. — Lola ainda pôde ouvir Gabriel falando para a irmã enquanto Felipe a levava para o fundo da sala.

Ele a soltou apenas quando estavam perto da cadeira dela. Lola sentiu o olhar penetrante dele cortando-a. Tinha tanta coisa que ela queria dizer. Tantas perguntas... E ele estava tão perto. Pela primeira vez, desde aquele fatídico dia, Felipe ousava olhar para ela, chegar perto dela. Lola sabia que aquela era a hora. Precisava reatar a amizade.

— Olha... — ela começou, mas não continuou.

— Bom dia, turma — o Professor Álvarez disse, já pegando o piloto e se dirigindo ao quadro branco. — Todos em seus lugares... você também, Felipe. — Ele apontou para o menino que ainda encarava Lola. Então deu uma olhada no resto da sala e nas expressões tensas dos alunos. — O que aconteceu com vocês? Parecem até a classe média na Semana de Arte Moderna... — A turma soltou um riso falso e o professor começou a explicar mais um dos manifestos de Oswald de Andrade e dos outros modernistas da época.

Lola suspirou enquanto abria o caderno e via Felipe fazendo o mesmo, apenas algumas carteiras de distância. O momento passara. Ela não teria outra oportunidade como aquela. Felipe não a deixaria mais chegar perto dele. Aquele foi um dos raros instantes em que duas pessoas brigadas ficam em paz devido a algum acontecimento. E ela o desperdiçou. Já era.

A menina quase não prestou atenção no restante das aulas. O professor Álvarez chamou a atenção dela duas vezes naquele dia. Por sorte, os professores de geografia e biologia eram mais desligados. Nenhum deles percebeu quando Lola pegou o celular dentro da mochila, conectou aos fones de ouvido e começou a assistir uma série do final dos anos 1990 protagonizada pela Sarah Jessica Parker.

Ela ficou tão absorta nos episódios que só percebeu a falta de Luan na última aula do dia. Lola estranhou e mandou uma mensagem para ele, porém duvidava muito que ele visse. Não sabia como o garoto era na outra escola, todavia, ali ele era muito regular. Se havia faltado, provavelmente deveria ser por algum motivo sério. Ela deu de ombros e voltou para seu seriado, pulando alguns episódios que já tinha assistido e indo diretamente para seus favoritos.

Foi mais ou menos enquanto via Carrie se recuperando do seu último relacionamento com o Mr. Big e escutava alguns trechos da revisão sobre genética que Lola desligou o celular. Tomou uma decisão importante. Ela iria confrontar Felipe quando a aula acabasse. Precisava conversar com ele e não iria aguentar mais dias de tortura, cruzando olhares sem querer ou esbarrando com o menino pelos corredores sem poder cumprimentá-lo. Já estava cheia daquilo.

Quando o último sinal tocou, Maria de Lourdes reuniu toda a coragem que tinha, jogou as coisas dentro da mochila e desceu as escadas correndo. Ia esperar Felipe na porta da escola. Correu até a esquina, de onde poderia ver todos os alunos que saíam e se apoiou na grade, esperando que ele passasse por ela.

Não demorou muito para ver um menino alto, meio desengonçado tentando passar pela multidão e chegar exatamente ao local onde ela estava. Quando ele se aproximou, Lola pulou na sua frente. Felipe franziu o cenho e tentou passar, entretanto, ela bloqueou seu caminho.

— Lola. — Ele jogou a cabeça para trás, fechando os olhos. — O que você quer?

— Conversar — ela disse.

— Não temos nada para conversar. — Ele tentou passar novamente.

— Claro que temos! — A menina insistiu. — Ou nunca vamos fazer as pazes.

Felipe, que já tinha conseguido se desvencilhar dela e seguia seu caminho, estacou. Voltou e se aproximou tanto de Lola que a garota podia sentir a respiração dele. Mais alguns centímetros e eles estariam se beijando.

— Eu não quero fazer as pazes com você — ele disse com ferocidade, porém Lola ainda podia ver pontinhos brilhantes em seus olhos, como se fossem lágrimas. — Eu só quero que você saia da minha vida. — Felipe deu as costas para ela.

— Você não está feliz com isso — ela gritou para o garoto, que provavelmente nem a escutava mais. — Você não pode estar feliz com isso — ela repetiu para si mesma, num sussurro.

Sentiu as lágrimas queimando seus olhos e um bolo na garganta. Sabia que em pouco tempo desabaria de novo e, dessa vez, não teria Luan para lhe consolar. Ela esfregou os próprios olhos apoiando-se na grade e pensando no que fazer. Uma menina mais nova passou por ela e perguntou se estava tudo bem. Lola sentiu a cabeça girar e as lágrimas escorrerem pela sua face. Não podia ficar ali.

Sem responder a menina, Maria de Lourdes saiu correndo. Empurrou vários alunos que paravam nas diversas lanchonetes perto da escola para comprar doce ou tomar água de coco. Ouviu vários xingamentos. Não se importou. Só precisava se afastar dali. O único problema é que não queria ver a mãe. Por melhor que Catarina a estivesse tratando ultimamente, Lola preferia não arriscar. Saiu andando sem rumo pelo centro da cidade. Passando pelas lojas comerciais e adentrando numa zona residencial. Até que virou em uma esquina e encontrou o lugar onde ficaria. Espremido entre duas sorveterias estava o velho restaurante de comida argentina que seu pai costumava levá-la quando era criança. Há tempos que não via aquele lugar.

Não tinha ninguém ali, porque o restaurante só abria mesmo durante a noite. Contudo, as portas estavam abertas e Lola entrou mesmo assim. Assim que pisou no chão, que acabara de ser limpo, ela sentiu um cheiro familiar, de infância. Fechou os olhos apreciando aquela sensação. Ainda podia ver as pessoas amontoadas em frente à pequena televisão nos dias de jogo do Brasil — nessa época, ela costumava ficar em cima do balcão. Também sentia o cheiro de filé com batata frita que, apesar de ser comida de boteco brasileiro, era a especialidade do lugar.

— Lourdinha? — Uma voz espantada chamou.

Lola abriu os olhos e ficou sem ação. O restaurante continuava igualzinho aos anos anteriores, exceto pela televisão nova e pelo computador atrás do balcão. Fora isso, eram as mesmas mesas, cadeiras e os mesmos pôsteres de dançarinos disputando espaço com os de jogadores da seleção argentina. Contudo, não foi isso que chamou a atenção de Lola.

À sua frente estava um rapaz um pouco mais velho, olhando para ela sem acreditar que realmente a via. Os fios louros estavam penteados para trás, deixando o rosto do menino bem à mostra. Ele abriu o sorriso mais encantador que Lola já vira, e só então ela percebeu como sentia falta dele. Não pensou muito a respeito, contudo, porque o menino se atirou contra ela em um abraço que a tirou do chão.

— Por onde você andou, sua doidinha? — Disse o rapaz, largando Lola e olhando melhor para ela. — Por que não atendeu minhas ligações e nem ligou de volta? Achei que tivesse te dado o meu número.

— Acho que isso acontece quando as pessoas anotam o número delas em pedaços de papel — Lola respondeu irônica, fazendo um incrível esforço para não voltar a chorar. — Eles acabam sumindo por aí.

— Nossa, prefiro você quando está desesperada por ajuda — o menino disse com um sorriso no rosto. — Muito mais amigável.

Lola sorriu para Eric. Era um sorriso triste e ele percebeu isso, mas nada disse. A melhor parte de Eric

— Então, já que você está aqui por livre e espontânea vontade — Eric começou —, devo supor que o milagre aconteceu e você ouviu todas as milhares de mensagens que deixei no seu correio de voz. — Então ele parou e começou a olhar por trás do ombro de Lola, procurando algo. — Cadê seu velho? Depois de todo esse tempo, ele ficou tímido?

Ela não aguentou. A menção de seu pai somada a todos os acontecimentos daqueles últimos dias foi demais para ela. Lola sentiu as lágrimas rolando pelo seu rosto e a garganta queimar. Ela nem sabia porque estava daquele jeito, só se sentia frágil demais, como se pudesse ser quebrada ao menor toque.

Eric colocou os braços ao redor da garota e a abraçou. Estava um pouco sem jeito com a situação, então levou Lola até uma das cadeiras e correu para buscar um copo de água para ela.

— D-desculpa— ela fungou enquanto repousava o copo em cima da mesa — Tá sendo uma semana difícil...

— Você poderia me contar... — ele disse, todo hesitante.

Sem nem se dar conta, uma enxurrada de palavras saiu de sua boca. Ela contou tudo o que aconteceu desde o início das aulas. Desde as partes que ele já sabia, passando pelo namoro de mentira e pelas coisas que Felipe lhe dissera há tão pouco tempo. Falou tudo de uma vez, parando apenas para enxugar o nariz ou os olhos. Nem se importou com isso, entretanto. Só precisava falar. Sabia que podia confiar em Eric.

Quando terminou de falar, Eric ainda olhava para ela, muito sério. Lola se sentia bem melhor. Contar aquilo em voz alta tinha tirado um peso incrível de seus ombros. A vontade de chorar, entretanto, voltou. Ela simplesmente desabou na frente do rapaz. Eric a abraçou novamente.

— Acho que vou ligar pro meu velho — ele disse, soltando a menina e pegando o celular.

— Não precisa — Lola falou apressadamente, enxugando os olhos e se levantando, pronta para ir embora. — Estou bem. Só preciso de um pouco de ar.

— Não está, não — Eric insistiu. — E eu não vou deixar você sair por aí nesse estado.

— Então venha comigo — ela respondeu sem pensar, só porque teve a esperança de que ele recusaria.

Eric a encarou. Pensava no que fazer. Então pulou atrás do balcão, pegou algo e voltou.

— Você nunca vai mudar, Maria de Lourdes. — Eric gargalhou e abriu um sorriso maior ainda, deixando seu rosto ainda mais bonito.

Puxou uma Lola atônita para fora do restaurante e trancou o local. Parou apenas para deixar as chaves numa das sorveterias.

— Vamos? — Ele perguntou, estendendo o braço para ela.

Lola não conseguiu segurar o sorriso. Pensando em retrospecto, nem conseguia mais se lembrar do motivo de afastar Eric. Ele sempre estivera ali para ela. O tempo todo. Mesmo quando não era preciso estar. 

 


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