Ainda escrita por Lua


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Saboreie a leitura!



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A lua, maravilhosa como sempre, se colocava à mostra, audaciosa, sem vergonha, soberba. Infelizmente eu não podia olhá-la todo tempo que quisesse. Eu estava apressada, apertava os passos. A noite era bonita, mas não deixava de ser perigosa. Precisava chegar a minha casa o mais rápido que pudesse. Estava frio, eu cantarolava uma música que se misturava com minha respiração ofegante, me movia em uma mini corrida e ainda assim não estava aquecida.

Final de expediente, ônibus lotado, nem da roleta eu consegui passar, mas consegui reparar no trocador. Homem de boa aparência, ele deveria ter uns trinta e poucos, conversado, daqueles que fala de qualquer coisa, cumprimenta até quem não conhece e sabe um pouquinho de tudo. Ele direcionou a mim duas ou três palavras, não sei muito bem. Ele não era o tipo de sujeito estudado que tem teoria e argumento pra tudo, era o tipo de sujeito que gosta de prosear, contar histórias, dar palpite. Que se danem os argumentos! Quem se importa?

Eu não retribuí as palavras, quis só escutar. Cuidadosamente ouvia o diálogo, que quase foi um monólogo, entre ele e um conhecido, esse era conhecido mesmo, parece até que de longa data. Discretamente me aproximei, não que o trocador fosse se importar que eu escutasse, sou eu é que me importo em escutar conversa dos outros, mas escuto mesmo assim.

— Aquilo foi naquela época que eu casei com a maluca daquela mulher.

Explicou e logo em seguida corrigiu:

— Casei não né? Morei com ela.

Os dois riram da ex-mulher do trocador, zombaram dela, mas não daquele jeito depreciador, sabe? Por um momento imaginei aquele jovem homem casado, em uma casinha, chegando cansado do trabalho, batendo boca com a suposta esposa. Imaginei o lamento com os amigos em alguma mesa de bar, e as famosas piadas sobre a “patroa”. Ela deve ter colocado ele pra fora, elas sempre colocam. Ou quase isso.

Dado o fato, que bom que ele não arrumou menino. Palavras de seu amigo.

— Graças a Deus!

O homem suspirou aliviado por aquilo que poderia ter sido e não foi. Pense só como seria! Uma criança mudaria totalmente o rumo das coisas, faria tudo ser diferente, sacudiria o mundo sossegado do cidadão.

“Graças a Deus”.

Pois ter filho é responsabilidade grande, como disse o atencioso conhecido que o ouvia.

— Até que eu não ligo, não. Eu arrumaria menino agora.

Ah, então o problema não era a responsabilidade, era a mulher mesmo.

— Aproveitar que tô com um plano de saúde bom demais, da empresa.

Disse o trocador, agradecido pelo pequeno privilégio que o diferenciava sutilmente da maioria. E foi coisa muito bem lembrada; tem isso: o plano de saúde, pois ninguém quer fazer pré-natal em hospital público, ou ter filho em hospital público, ou levar a criança ao pediatra em hospital público. Então é bom que ele aproveite mesmo, que faça tudo enquanto pode! Mas e a mulher? Porque até onde sei, precisa-se de uma mulher para ter filho. Será que ele arranjou outra? Deve ter arranjado. Eles sempre arranjam.

Não muito tempo depois, o rapaz dos trinta-e-poucos já estava a se recordar de outra história. Eu sei porque eu estava escutando a conversa, lembra?

— Graças a Deus que não aconteceu nada de ruim! Eu tava antes daquela curva, um pouquinho depois eu tinha espatifado todo. O capô abriu do nada, o carro estragou muito, mas tô vivo né?

O homem suspirou aliviado por aquilo que poderia ter sido e não foi. Novamente.

“Graças a Deus”.

Dizem que quando você passa por uma experiência de quase morte, começa a refletir mais sobre a vida, dizem também que esse tipo de coisa muda quem você é, te faz virar outra pessoa. Pelo que ouvi sorrateiramente, o trocador quase morreu na aventura. Pergunto-me quem ele era antes disso.

— Moça, você vai passar cartão ou dinheiro?

Ágil, ele já foi cobrando todas as passagens e rodando a roleta.

— É melhor saírem pela porta da frente mesmo. Não caça entrar lá pra dentro, não. Já viu aquelas pessoas que percebe que o ponto ta chegando e já começa ir pro fundo devagarim? É, eu sei, sou bobo nada.

Ele zombava das pessoas que passam pela roleta para se aventurar na superlotação do “lado de lá”, falava delas com um sorriso malicioso, como se elas fossem míseras pessoas tolas feitas de ingenuidade. Eu me aventuro. Desbravo aquela mata fechada de pés fixos e braços rígidos; com vários pedidos de licença e sorrisos meia boca, abro meu caminho. Lembrei das tantas vezes em que me espremi e deslizei por entre corpos desconhecidos, em uma intimidade que não tenho nem com meus amigos mais próximos. Mas não naquela noite, naquela noite eu fiquei do “lado de cá”, porque o bom rapaz que conta as moedas assim me instruiu.

Quando olhei para o lado, o trocador sorridente já falava de outro caso que me esqueci qual é; nesse ponto eu não estava mais prestando atenção, mas com certeza era outra história de graças a Deus.

Depois de algum tempo, voltei a me interessar na conversação. O amigo fiel aos seus contos fazia-se de feliz pelo seu companheiro, por este já estar no fim de sua última viagem naquele grande, e ao mesmo tempo pequeno, veículo.

— Que nada, vou ter que voltar ainda.

Dessa vez não ouvi graças a ninguém.

Ele ainda tinha que voltar. Ainda. Essa é a palavra que torna desnecessário qualquer agradecimento, é aquele lembrete latejante de que nunca somos o suficiente; sempre haverá algo que falta, sempre estaremos a uma faculdade de distância, a uma promoção de distância, a um imóvel de distância, a uma viagem de distância. A uma vida de distância. Sempre há algo que ainda não conquistamos. O moço que eu bisbilhotava não era só histórias, ele era alguém todo feito de “aindas”, assim como nós somos.

Tornei a fazer o que eu faço de melhor: imaginar. Imaginei que ele também precisasse chegar a sua casa, tomar um banho, deitar em sua cama de casal, talvez vazia, talvez cheia. Imaginei que ele iria contar mais algumas outras histórias, lembrar de mais outros casos. Ele ainda tinha que tomar sua xícara de café, ou seu copo de cerveja, ou seu gole d’água e se entregar a uma consciência que não se pode controlar.

Sei que de um todo o sujeito não era infeliz; e quem é que disse que ser feliz é o que importa, não é mesmo? O que importa é viver, custe o que custar. Não é o que dizem, mas é como agem, porque por mais que tenhamos sempre um par de chinelos à espera e a felicidade nos braços, a existência é astuta. O “ainda” pode se transformar em “se” em um passe de mágica.

Dei sinal no ônibus e desci, desembarcando daquele pequeno universo clandestino que criei.

E sobre o trocador, quem garante que ele chegou a sua casa? Quem garante que ele teve seu banho, sua cama quente, seu copo, seja lá do que for? Talvez ele preferisse uma janta: arroz, feijão, frango e um copo de suco; talvez ele só não tenha concluído o seu caminho de volta. Quem sabe, afinal? Eu não. Tenho meus próprios “aindas” para me preocupar. Mas, se por um acaso, em uma noite de lua cheia você pegar um ônibus lotado e, por qualquer razão, pensar que encontrou o meu moço e que sabe de seu paradeiro – mesmo que esse paradeiro seja imaginação – por favor, mande-me notícias.


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Notas finais do capítulo

Texto betado pela Camy Lannister *-*



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