Sentia o líquido quente invadir meu organismo já inerte há séculos, como a água que se bebe após um longo período de desidratação, trazendo vitalidade e esperança ao mancebo, sensação essa que nunca experimentara em vida, somente em morte. Escorria por meus lábios e queixo, deixando rastros de pingos cor carmesim pela neve branca. A temperatura morna do sangue contrastando com minha pele congelante, tão congelante quanto o rigoroso inverno que agora se instalara.

Eu não queria ter feito. Não queria ter a atacado. Agora sã, observando seus olhos ainda abertos, medo e pavor ainda encravados neles como uma pintura realista que retrata o real mas não o é, como a sombra de um humano que cria diversas formas e parece ter vida própria mas não o tem, como um mero fantasma daquilo que um dia foi vivo, a imagem daquela pequena criatura, agora morta, seria mais um fantasma a me assombrar. E eu tenho uma coleção deles.

É o que acontece quando se permite que a Besta tome conta. Cada vida tirada é um tormento a mais pela eternidade. Mas em dias como este, onde todas as circunstâncias estão a seu favor, é praticamente impossível contê-la. Esse monstro que agora faz parte de mim é traiçoeiro e paciente. Então, quando sua vulnerabilidade e instinto de sobrevivência falam mais alto, lutar já não é o suficiente. De quando em vez, penso em ceder e não mais lutar pois... Que sentido há em lutar contra sua própria natureza? Isso é o que eu sou agora então por que não aceitar? Contudo, olho para o rosto da frágil menininha descansando em sua perturbada morte e lembro que isto não é quem eu sou. A Besta mora dentro de mim, faz parte de mim, mas não pertence a quem eu sou, mas sim ao o que eu sou.

Antigamente, as noites de inverno nunca chegariam a despertar a Besta. Eram Eras de paz, na medida do possível, e viver em um Clã, ao lado de outros vampiros, era algo não apenas suportável como agradável. Entretanto esse passado remoto nunca mais se repetirá. E agora, com a grande Jyhad em curso e minha não-vida sendo caçada por toda a Camarilla, minhas noites de exílio estão cada vez mais difíceis de suportar. Longos períodos eu passo sem me alimentar, fazendo a Fome ficar cada vez mais brutal e avassaladora. Hoje foi um dos dia em que ela, em conjunto com a Besta, me venceram. Não sei por mais quanto tempo suportarei essa rotina nômade, de procurada e traidora da própria raça.

Mais uma vez olho o rosto da criança. Sua pele agora tão branca quanto a neve, sua boca já azulada pelo conjunto da morte com o frio e sua expressão ainda apavorada; seus cabelos castanhos esparramados em ondas sobre a neve, o casaco de camurça negra que ia até a canela, suas botinhas vermelhas e minúsculas protegendo elegantemente seus pés infantis; seus pais deviam ser ricos, ela teria tido um belo futuro, diferente do meu quando era humana. Pode parecer estranho, mas ainda lembro-me vagamente de como foi minha vida e de quando em vez, pego-me balanceando: qual delas foi a pior? Minha vida ou não-vida?

Me recomponho. Limpo minha boca, queixo e os rastros de sangue. Me aproximo da garota e fecho seus olhos delicadamente. Espero que onde quer que ela esteja, me perdoe, pois sei que não serei capaz do mesmo. Sinto o cheiro de humanos ao longe. Eles estão se aproximando, provavelmente procurando pela garotinha. Uma mulher, dois homens e um jovem. Gritam seu nome. Kelly. É melhor eu ir. Desculpe criança.

Corro através das árvores, sem parar, até o som dos gritos se dissiparem, até o cheiro desaparecer, até a luz da lua se esconder, até a escuridão me devorar.