Lucila escrita por Nucha Rangel Braga


Capítulo 23
XXIII – U.S. Marshall


Notas iniciais do capítulo

Algumas informações, precisei descrever numa ideia bem básica, porque pesquisar na web sobre material cirúrgico veterinário demoraria muito e talvez eu lançasse informação demais no capítulo. Caso haja alguma correção a fazer, por favor me sinalizem, tá bem?
Sobre o título do capítulo, esta é uma das polícias norte-americanas que trabalham na investigação de crimes com morte.



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                O AR CONDICIONADO gelando a sala de espera na Delegacia só piorava o mal-estar de Plácido. Fazia uns vinte minutos que chegara, o guarda na portaria o revistara e mandara aguardar para depor, avisando o Delegado. Policiais armados, o barulho das sirenes dos carros chegando e saindo, davam nos nervos... Tentava manter-se calmo. Como era o nome do Delegado mesmo?

Passava um turbilhão de coisas pela cabeça do veterinário; o biólogo morto foi colega de faculdade sim, mas o que ele não contou a Olivia foi que o tal Vicente era um tipo recluso, genioso. O tipo do temperamento fechado que chegava às aulas, assistia quieto e saía. Isso não deveria ser nada demais, mas os colegas da sala não perdoavam a conduta do rapaz, logo tachado de apelidos pejorativos, perseguido nos corredores do campus, rejeitado pelas garotas. Como era irritável, alguns gostavam de vê-lo reagir aos gritos e faziam as piadas de mau gosto parecer ataques. Vicente acabou se isolando ainda mais. Até os professores o evitavam, mas respeitosamente. O problema é que na época não se falava sobre perseguição social em ambientes de trabalho ou estudo.

                Plácido e Vicente eram os melhores alunos do curso de Veterinária. Contudo, para escapar dos assédios da turma, Vicente abandonou o curso e ingressou em Biologia, onde também se destacou. A mudança de curso não adiantou grande coisa, ele continuou sendo discriminado, mesmo porque ser o melhor aluno despertou ciúmes na nova turma! Para complicar ainda mais, ele, sem amizades, acabou por transformar Plácido numa espécie de modelo de comportamento, não para se espelhar, mas para competir!

                Vicente não chamava a atenção das meninas, era desarrumado e sem vaidades. Plácido gostava de praticar esportes. Vicente tirava excelentes notas em seus trabalhos. Plácido também, mas se soubesse das notas do futuro veterinário, o futuro biólogo não se conformava com o próprio sucesso e se empenhava em alcançar ou mesmo superar as notas do colega. Apesar de perceber o que acontecia, Plácido nunca tentou se aproximar de Vicente. Preferiu continuar seus estudos e não interferir nos desenvolvimentos do rapaz.

Mas ali, na Delegacia, trinta e dois anos depois,  havia uma questão que Plácido ainda não sabia e estava prestes a ter uma surpresa.

                - O Delegado o receberá agora, o senhor já pode entrar. – Avisou o guarda, levantando-se e o acompanhando pelo corredor, até a porta do escritório. Ali, um escrivão e o Delegado. Clima sorumbático, persianas fechadas, fedor de cigarro. E Plácido, um não fumante, ainda mais desconfortável.

                - O veterinário Plácido Bispo, eu presumo? – Indaga o Delegado, sem erguer os olhos duma pauta em suas mãos. Olhou para o meirinho vigilante na sala, que se dirigiu a Plácido:

                - O senhor já foi revistado na portaria, mas em cada cômodo é necessária a verificação; queira afastar braços e pernas, por favor.

                Nova revista. Plácido obedece mecanicamente, não sem notar que o Delegado sequer acompanha a movimentação, lendo atentamente a papelada em suas mãos. Num aparador ao lado de sua mesa, alguns objetos, dispostos sobre um tecido branco, lembravam uma organização de instrumentador cirúrgico... Mas eram um caderno, alguns livros, pequenos instrumentos, frascos e algumas fitas VHS.      

Liberado pelo meirinho, entregou-lhe o beeper e permitiram que se sentasse.

                - Doutor Plácido, - começa o Delegado, ainda sem encara-lo nos olhos – o senhor é cidadão sem antecedentes criminais. Em seus registros legais, consta como cumpridor de deveres civis e idôneo em impostos. O senhor é casado, correto?

                E ele, que só conseguia pensar em Olivia sozinha em casa com a... Jovem, respondeu:

                - Sim, senhor, há trinta anos.

                - Filhos?

                - Não, senhor.

                O escrivão datilografava energicamente, não olhava para ninguém. A Olivetti Lettera roncava o pesado carrilho com o barulho característico e irritante. Piorava o ambiente aquele som elétrico e repetitivo, o zumbido leve do ar-condicionado velho. O veterinário tentava  focar um ponto cego, mas percebia que o Delegado agora o encarava, apoiando o queixo no punho.

                - Como o senhor sabia do que falei na ligação, doutor?

                O olhar de dúvida de Plácido irrita o Delegado... Mas em vez de perder a paciência, ele nem sai da posição. Refaz a pergunta, sabendo que o interrogado já se intimida:

                - Refiro-me ao que o senhor disse quando ligou para cá... Nós apenas discamos para o senhor e instantes depois, o senhor  nos retornou. Por que tomou a iniciativa?

                - Quando alguém quer falar comigo sobre uma primeira consulta, me aciona no beeper. Sempre retorno ligações de números que ainda não conheço, pois pode ser alguém indicado por algum cliente.

                - Cliente? O senhor se apresenta como veterinário. Não seriam pacientes?

                - Os bichos de estimação sim, devo chama-los de pacientes. Os donos deles é que devo tratar como clientes.

                - E o senhor tem muitos clientes?

                Plácido não entende aonde aquilo pode chegar. Pensa antes de responder essa:

                - Nunca parei para conferir se são muitos.

                - Há quanto tempo clinica, doutor?

                - Trinta e dois anos, senhor.

                - E o senhor também faz cirurgias, ou apenas atendimentos clínicos?

                - Um atendimento a princípio clínico pode exigir um procedimento com anestesias e instrumentação. Um parto de cria pode precisar ser tornado uma cesárea, por exemplo. Mas não sou cirurgião especialista. Apenas veterinário de âmbito geral.

                - Então o doutor tem, creio eu, bastante experiência em reconhecer medicamentos utilizados em animais...

                - Conheço muita coisa. Mas um profissional de saúde, independendo da área, precisa sempre se manter informado. Há sempre novos tratamentos e medicações sendo lançados.

                - E... O senhor saberia também a respeito de venenos?

                - Depende. Para reverter envenenamento por picada de peçonhentos, sim.

                - Muito bem. Peço que dê uma olhada nesta mesa. – Diz o Delegado, levantando-se lentamente e aproximando-se da mesa onde estavam os objetos. O Delegado prossegue:

                - Doutor, não sou nenhum conhecedor de profissões. Mas acredito que um biólogo não faria uso de alguns dos itens nesta mesa, estou certo?

                Plácido observava cada um dos objetos. Realmente, os instrumentos eram de instrumentação cirúrgica, mas até onde ele sabia, Vicente não operava, até porque nem era médico. Arriscou:

                - O falecido era biólogo... Cientista de renome. Até o que lembro dele, trabalhava na área de Genética. Não imagino porque usasse instrumentos de cirurgia.

                - Então, o senhor os reconhece? Poderia identificar?

                - Pinça de pele... Pinça hemostática... Bisturi elétrico... Criobisturi. Basicamente, são para afastamento das camadas de pele, estancamento de hemorragia ou evitar hemorragia e os bisturis para incisar as camadas de pele. Posso perguntar?

                - Á vontade. Não é usual, mas sou de conversar. – O tom sarcástico do Delegado é permanente.

                - São instrumentos para aberturas em corpos. Se ele foi encontrado em casa, estes instrumentos estavam lá também?

                - Então, não deve ter lido o jornal que trouxe.

                - Não tive tempo. Vi apenas a manchete. O jornal me foi deixado por baixo da porta do meu consultório, como todos os dias.

                O Delegado encara o veterinário, olha para o escrivão, para a mesa. Então:

                - Na casa do morto havia um laboratório de biogenética, segundo os livros que coletamos. Neste caderno, ele fez uma espécie de diário... Não o lemos totalmente ainda, não houve tempo. Mas não há detalhes sobre cirurgias. Por isso estranhamos os instrumentos.

                - Se ele tinha instrumentos para incisão, deveria ter pelo menos material para sutura. Caso tenha tentado dissecar corpos, não poderia tê-los deixado abertos, são contaminação.

                - Sutura, o doutor diz, são aquelas linhas para costurar pontos na operação?

                - Isso e agulhas, curativos, tesouras para tecidos de curativagem. Não havia nada disso lá?

                - Encontramos apenas estes. – Disse o Delegado, encarando Plácido gravemente. Parecia torcer para o veterinário dizer uma besteira qualquer. Aquela altura, este já entendia que queriam declarar um culpado... Não sabia porque tinha que ser ele.

                - Delegado... Me esclareça um tanto mais, preciso pensar como profissional para colaborar com os senhores. Como ele foi encontrado?

                - A faxineira chegou para o serviço; como ele não atendeu à campainha, ela deu a volta na casa e o viu deitado no chão da cozinha. Ligou para os bombeiros, que nos avisaram.

                Pausa.

                - E o senhor é bem audacioso para quem está sendo interrogado, doutor.

                - Peço desculpas, sei que não é usual.  – Plácido olha mais uma vez a mesa – E estes frascos?

                - Trouxemos para que a equipe de perícia investigue.

                O veterinário, naturalmente, evita tocar nos objetos. Para olhar melhor os frascos, ajoelha-se até a altura da mesa e nota os vidrinhos; dentro deles, fechados a tampa de alumínio vedada, havia um material estranho. Plácido prefere não mencionar.

                Mas parecem amostras de pele.  

                Ele arrisca. Encara o Delegado, sabendo que pode ser preso:

                - Delegado, aliás Coronel Diego... Solicito participar em averiguação do local. Podemos visitar a casa do Sr. Vicente Alcântara?


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