Lucila escrita por Nucha Rangel Braga


Capítulo 21
XXI - Letras garrafais


Notas iniciais do capítulo

Como ainda não havia telefonia celular nem internet, a novidade desta época era o Beeper, ou Beep, um aparelhinho similar ao alarme para carros, mas que tinha memória para agenda telefônica e era vinculado a uma linha fixa; se alguém ligasse para o fone fixo, o beeper apitava apontando o fone num visor pequenino, como um reloginho digital.



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                VOLTANDO à segunda-feira, os dois médicos pensavam no que fazer. Afinal, ambos teriam atendimentos. Havia uma situação nova em casa (para não chamar a pobre moça de “problema”) e não tinham ideia de como contornar. Afinal, os rapazes já teriam que voltar para casa.

                E Sergio queria ir?

                Que nada! Tentou um argumento com Plácido, que lhe deu um sonoro “NÃO”, tentou outro e levou mais um “NÃO”, teimou o terceiro e ouviu:

                - Olhe! Se teimar, além de levar você em casa, ligo para o McGillins e digo para fazer você ficar de castigo um mês sem vir aqui em casa, entendeu? Não é NÃO!

                E o dono da casa era ele.

                Olivia teve um tantinho de pena. Mas não passaria por cima da atitude de seu marido, ela sabia que uma permissão sem motivo a um adolescente poderia ser brecha para outras. Mesmo assim, não parecia que Sergio queria ficar mais tempo perto da jovem por atração ou coisa que valesse; era mais a vontade de não se afastar, mesmo.

                Finalmente, decidiram: ela ficaria em casa, os atendimentos eram apenas à tarde mas checaria ainda se seria necessário mante-los ou reagendar. E como Placido chegaria em casa à tarde, a jovem não ficaria sozinha. Se bem que a grande preocupação era mesmo ficar a sós com ela! O que esperar?

                Apesar disso, a pediatra estava curiosa; até queria um tempo com a menina para tentar novas descobertas. Precisavam saber mais para tentar ajuda-la. E a vizinhança já começaria a se movimentar, era uma nova semana.  A jovem não poderia de jeito nenhum se aproximar das janelas! Temia que ela fosse vista e causasse um grande susto, sabe Deus... Era aquele misto de medo da jovem e apreensão em cuidar. Todos sentindo o mesmo na casa.

                Mas, oras! Bem que Ruben estava um tanto aliviado de voltar para casa; Ricky desconfiado... Tinha um pé-atrás a respeito da menina. Estava com pena, também; mas achava melhor ficar “meio longe” daquilo tudo...

                E no sofá, sentado com uma cara de dar inveja a onça, estava Sergio. Não queria ficar longe. Medo? Tinha. Mas estava mal com tudo aquilo, ainda achava que devia ficar perto dela. Era como ter pena de deixa-la sozinha. Mas na cabeça dele, “sozinha” era ficar longe dele. Se Plácido e Olivia estavam perto, cuidariam até melhor! Mesmo assim...  Lembrar-se dela chorando na noite anterior o agoniava.

Só alertou quando Olivia deu-lhe um beijo na testa:

— Hora de ir, moço. Você precisa dum tempo.

Olhava para a médica, sem dizer nada.

— Eu sei. – Disse a amiga de sempre, lhe afagando o longo cabelo liso – Mas você já fez tudo o que podia. Até dormiu perto dela, que não devia... Aliás, consegui fazer Plácido esquecer isso. Mas agora você tem que ir para a sua casa.

— E a senhora? Vai ficar só com ela aqui?

— Tenho. Mas temos dois heroizinhos, o Corto e a Eartha. – Brincou, piscando o olho. Ela não queria o rapaz percebendo seu medo. O que não adiantou, lógico.

Todos prontos, os três já no fusquinha, o veterinário vem até sua esposa e milhões de recomendações, um beijo nela:

— Fique perto desse telefone, pelo amor de Deus! E não ande o tempo todo perto dela! Fique com alguma coisa à mão, qualquer coisa! Aliás, melhor você ficar no nosso quarto, com os bichos! E...

— Amor.

— Hm?

— Tudo bem.

— Ollie...

— Tudo bem. Tenho certeza, tudo bem.

Olharam da varanda; a menina ainda dormia.

— Viu? Talvez ela passe a manhã toda assim.

— Está certo... Mas por favor, tenha cuidado. Vou ligar o tempo todo para cá...

— Prometo atender na hora. Eu te amo.

E lá se foi o fusquinha.

Na verdade, agora Olivia estava gelada de medo! Olhou em volta, os vizinhos com suas rotinas... Entrou em casa, cautelosa. O que veria?

Eartha e Corto deveriam estar escondidos em algum lugar.

Silêncio.

A pediatra entrou pelo portão da garagem, com muito cuidado, para que os vizinhos não observassem o interior da casa pelo terraço... Fechou a grade, as cortinas da garagem. Voltou-se para a sala.

A jovem estava sentada sobre a manta, no tapete.

Quieta.

Olhando diretamente para Olivia, que sentiu o coração pular de susto, mas fingiu, dizendo sorridente:

— Ah... Acordou? Então...? Está com fome?

***

Os outros dois meninos entraram logo em casa, estavam cansados;  Sergio ia descendo, quando Plácido pediu:

— Um minuto?

O garoto esteve silencioso a viagem toda; só encarou o amigo, sem nada dizer. E o veterinário continuou:

— Sei que você está bem aborrecido agora. Sei também que queria ficar com Ollie em nossa casa. Que queria ficar perto dela e ajudar. – o veterinário escolhia as frases, falava devagar – Sei que tem certeza de que poderia proteger minha esposa. Mas quem iria te proteger?

— Mas, Plácido, ela não ia fazer nada...

— Ainda não terminei. – o amigo, já um senhor, era categórico quando precisava. E ali, a voz era mansa, mas firme. Sergio aquietou – Você acha que eu iria querer a minha mulher sozinha com ela, em casa? Claro que não. Eu estou com medo agora, muito medo de que ela reaja, sabemos que a menina não entende as coisas como nós!

— Então por que deixou a tia Oli sozinha?

— Porque não pode ser diferente agora, Sergio! Agora, os meus vizinhos não podem estranhar nada, nem as pessoas que trabalham aí na sua casa podem desconfiar de algum problema. Vocês são conhecidos, têm público e estão cercados de atenções. Nem todas essas atenções são corretas. E algumas delas, sabemos que são até muito próximas...!

O rapaz o encarou, surpreendido; então Plácido entendia a vida dele e as dos meninos? O amigo velho prossegue:

— Sei sobre o que vocês vivem, melhor do que você imagina. Posso não ter sido famoso na adolescência, mas compreendo. Eu e Ollie os amamos como se fossem nossos filhos, eu nunca me perdoaria se algo acontecesse a você ou aos outros.  – Placido baixou a cabeça, pareceu tomar-se dum peso, voz abafada – Mesmo porque nem sempre deu certo.

Sergio não consegue dizer nada, Placido o encara gravemente:

— E Olivia também sabe disso.  Por isso, trouxe vocês de volta.

— Tio, volte para casa agora! Dê um jeito, mas volte para casa!!

Da entrada, um segurança avisa que precisa fechar os portões, antes que apareçam fãs e haja confusão. Plácido conclui:

— Hora de entrar em casa, rapaz.

Sergio ia responder, mas o velho amigo impôs, controlando-se – Para dentro... Estou mandando.

Claro que Sergio não gostou nem um pouco! Desceu brabo, sem dizer nada; o segurança o guiou para a guarita da casa, ignorando a cara amarrada do menino e trancando os portões.  Se desse, Sergio pularia as grades e correria para a casa dos tios doutores de novo... Mas o segurança o avisa:

— O Sr. McGillins está aí.

O dia não dava sinais de melhorar.

***

Angustiado, Plácido enterrava o pé no acelerador! Virou atalhos para correr para casa, o olhar assustado de Sergio pedindo que ele voltasse não saía de sua cabeça! Que idiotice deixar Ollie sozinha! Então, o beeper preso em seu cinto dispara. O telefone de um cliente, logo agora?

A clínica era no caminho entre a casa dele e a dos meninos. Batendo a porta do fusca, entrou correndo na clínica para ligar ao cliente; daria uma desculpa e voaria para casa!

A porta esbarra no jornal, deixado ali mais cedo. A manchete chama a atenção do veterinário; em letras garrafais, ao lado da foto de alguém reconhecido por Plácido, rezava: “RENOMADO BIÓLOGO É ENCONTRADO MORTO EM CASA. POLÍCIA INVESTIGA O CASO COMO SUICÍDIO!”.

O veterinário sente seus ossos gelarem!

— VICENTE!! Deus do céu...!

O beeper apita novamente, agora um número desconhecido. Plácido liga de volta, o coração disparando! Atendem:

— Vigésimo- segundo Distrito Policial, cabo Alencar, a seu serviço!

O veterinário se sente num pesadelo. Aquele Distrito era a Delegacia de Homicídios! Aturdido, balbucia:

— Bom dia...Meu nome é Plácido Vieira, sou veterinário... Meu beeper sinalizou este fone... Estou retornando.

— Aguarde um momento!

Transferem o ramal e outra voz:

— Doutor Plácido?

O veterinário engole seco:

— Sou eu.

— Coronel Diego Vega, dirigente desta unidade. Preciso perguntar: o senhor foi colega de faculdade do biólogo Vicente Alcântara, correto?

Plácido emudece. O coronel insiste:

— Alô?!

— Estou ouvindo... Sim.  Eu o conhecia.

— O senhor está sendo convocado a depor. Compareça a este Distrito o mais breve, anote o endereço!


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