O Bom Pastor escrita por Arqueiroarcano


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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A pia batismal estava manchada de sangue. E logo ao seu lado, no chão do batistério havia o corpo de um homem, caído de bruços, os braços num ângulo desconfortável. Perfurado por uma faca oito vezes nas costas e, aparentemente, mais algumas no peito e no abdômen. O rosto, o queixo e o supercílio estavam lesionados, como que por um impacto violento.

Marcello era investigador da delegacia de polícia daquela cidadezinha que distava uns sessenta quilômetros de Trento, Itália. Era a primavera do último ano da década de 1970. E naquela noite o delegado não voltara para casa. Naquela madrugada a polícia havia recebido um telefonema. E agora, enquanto o sol nascia, Marcello, o investigador, trinta e poucos anos, com uma rala barba por fazer, sabia por que o delegado não voltara para casa: ele estava morto no chão do batistério, seu sangue se espalhava ao seu redor.

Os olhos castanhos de Marcello subiram do corpo ensanguentado para a imagem de São João Batista, esculpida em pedra branca, que olhava serenamente para a pia batismal. O investigador não pode deixar de pensar o quão escandalizado o Santo deveria estar com uma atrocidade daquelas sendo cometida debaixo de seu olhar.

Da imagem, seus olhos passaram para o batistério, pequeno, simples, decorado com colunas e vitrais, mas nada muito elaborado, adequado para a cidadezinha do interior do norte da Itália. A pia estava vazia, só era cheia para os batismos. Havia manchas de sangue na borda. O ar do amanhecer primaveril estava frio, ainda, e Marcello vestia um casaco marrom longo, de botões.

Logo que a polícia recebera a ligação – anônima –três viaturas vieram até a igreja. Imagine você, que para uma cidade cuja única delegacia tinha apenas quatro viaturas, aquele era um número expressivo. Mas, pensando bem, não era tão surpreendente assim: fazia anos que não acontecia um assassinato, a cidade era pacata. Aliás, o efetivo policial da cidade era de dezesseis homens. Quinze, agora, corrigiu-se Marcello: o delegado estava morto em frente a ele.

Marcello ficara ali, para averiguar o local e preservar a cena do crime. Os outros policiais estavam vasculhando a cidade, procurando pessoas suspeitas, testemunhas... A verdade é que todos estavam chocados com o acontecido. Durante a noite quatro policiais ficavam de plantão na delegacia. Não havia rondas noturnas, aquela era uma cidadezinha pequena, tranquila. Além disso, a prefeitura não dava dinheiro suficiente para a gasolina das viaturas. Marcello e os outros haviam sido acordados para atender aquela emergência.

Outro motivo de preocupação era que o padre Vincenzo, o pároco local, não fora encontrado. Ele vivia num anexo da igreja. Ele mesmo varria, limpava e cuidava da manutenção do local, além de celebrar os ofícios religiosos. Vincenzo era jovem, talvez da idade de Marcello, ou menos. Fora transferido para a cidade, três semanas antes, logo depois que o velho pároco anterior morrera de infarto. O velho era querido por todos: um homem afável, careca, levemente barrigudo e de óculos de lentes grossas, sofria de reumatismo e conduzia os rituais mesmo com as juntas inchadas. O padre Vincenzo era um padre da nova geração e assumira a paróquia apenas três semanas antes. Marcello simpatizara com o religioso e gostara da forma como ele se portava na missa.

Marcello era católico devoto – como grande parte da nação italiana, aliás. E estava preocupado que algo tivesse acontecido, também, com o padre.

Os pensamentos do investigador se voltaram para o morto. O delegado Giulio. Ele era um bom homem. Marcello não tinha muita intimidade com ele, mas sabia que o homem tinha esposa e uma filha, não fumava, aliás, detestava cigarro, apreciava o bom vinho, ia à missa com regularidade e se confessava com o padre regularmente. No trabalho o delegado era criterioso e metódico. Alguém respeitável. Alguém que, certamente, não merecia morrer. Menos ainda com tanta brutalidade.

Eles haviam chamado um legista, que viria da delegacia de Trento às 9 horas. Marcello não era perito, mas podia ver que o homem fora esfaqueado. Ele contara oito punhaladas nas costas. Pelo sangue, os rasgos na roupa, ele deduzia que o delegado também fora apunhalado no peito, costelas ou barriga, embora não tivesse virado o corpo, devia esperar o legista.

Os ferimentos no rosto, três deles, faziam companhia às três marcas de sangue na pia batismal: como se o sangue irradiasse de três pontos, tendo a cabeça do delegado sido batida contra a pia três vezes. A cada uma o sangue espirrara, abrindo cortes na face, queixo e testa.

Talvez o assassino tivesse batido a cabeça do delegado e depois o esfaqueado. Tomando cuidado para não pisar na poça de sangue, Marcello se aproximou do corpo. Havia cortes na mão e no antebraço direito, o que significava que o delegado Giulio tentara se defender do agressor. Ao contrário do que se vê nos filmes, durante uma briga, com a adrenalina e tudo o mais, você não sente a facada. Aliás, você só percebe o golpe da mão ou do cabo da faca e se pergunta: por que ele está me socando assim. Então vê o sangue. A lâmina. E compreende: puta merda! Eu fui esfaqueado. Marcello levara duas facadas numa briga de rua. Ele ainda tinha as cicatrizes.

Talvez o assassino tivesse esfaqueado o delegado pelas costas. Embora oito facadas fosse um número expressivo, o delegado ainda poderia ter tentado resistir, após apenas uma ou duas punhaladas, então o agressor o esfaqueara no peito, batera sua cabeça e, quando ele já estava caído, terminara de esfaqueá-lo para se certificar. Aliás, onde estava a arma do crime?

A pergunta era: o que o delegado estava fazendo ali? O batistério estava aberto, quando chegaram. Não fora arrombado. O que fazia Marcello se preocupar ainda mais com padre Vincenzo.

– Onde está o padre? – murmurou Marcello.

Ele ouviu passos e se virou. Padre Vincenzo, cabelo curtinho, óculos redondos, queixo quadrado, entrou no batistério com as mãos nas costas. Ele não estava vestindo o hábito, mas sim uma calça preta e uma camisa branca de mangas. Por algum motivo, Marcello sentiu uma leve sensação de alarme.

– Padre, o senhor está bem? – apesar de terem a mesma idade ou Marcello ser até mais velho, parecia errado não chamar o sacerdote de senhor – estávamos todos procurando o senhor.

– Estou, amado, estou – Vincenzo tratava todos os membros da congregação por ‘amados’ ou ‘amadas’. O padre olhou tristemente para o cadáver ensanguentado.

– Padre, o senhor viu algo? Onde o senhor estava, pensamos que o assassino pudesse ter lhe sequestrado.

– Vi sim, amado. – respondeu pesarosamente o padre, ainda com as mãos atrás do corpo, como se as palavras lhe doessem – O assassino sequestrou apenas minha inocência, pois tenho sangue em minhas mãos, mas consciência está algo mais tranquila.

– Padre? – Marcello franziu a testa.

Vincezo tirou as mãos das costas. Na mão direita tinha uma faca ensanguentada.

– Eu matei Giulio – o padre deu um sorriso triste.

Marcello, vendo a faca na mão do sacerdote, por um breve momento temeu, e pensou em alcançar seu revolver, guardado no coldre, escondido pelo seu casaco longo. Mas o padre soltou a faca, que fez um ruído metálico contra a pedra.

Ele levantou as mãos. A direita tinha sangue, provavelmente do cabo da faca.

– Padre, o que..? – Marcello estava atordoado.

– Amado, mesmo um bom pastou às vezes tem de matar um leão para proteger suas ovelhas. – havia uma lágrima no olho do religioso. Marcello não entendeu o significado daquilo, mas recuperou a ação.

– Me acompanhe até a viatura – intimou Marcello.

– Está bem – o padre anuiu calmamente.

O padre saiu andado rumo à viatura, com o investigador logo atrás. Marcello não algemou o padre. Mas revistou-o antes de embarca-lo no veículo. Quando Marcello abriu o canal do rádio da viatura para se comunicar com a delegacia a surpresa do outro lado foi grande, com a notícia.

Era o início da tarde.

A sala de interrogatório da delegacia era, na verdade, um pequeno depósito sem janelas. Havia uma mesa e duas cadeiras. Uma lâmpada incandescente mal iluminava o local com sua luz amarelada. As sombras se estendiam ominosas por todos os cantos. Em uma cadeira estava o padre, na outra estava Marcello. A porta de madeira era fina, deixando o som passar, abafado, mas compreensível. Seis policiais se amontoavam para ouvir o interrogatório. Ninguém conseguia acreditar que o jovem e simpático padre matara um policial.

– Vou repetir a pergunta, padre – Marcello falava com seriedade, o rosto fechado, mas não tão intimidante quando gostaria – o que aconteceu? Por que matou o delegado?

– O motivo, amado, – Vincenzo passou a língua nos lábios, para umedecê-los – eu não posso lhe contar.

Marcello suspirou impaciente. Se fosse um marginal comum ele já teria dado uma surra nele. No canto da sala havia um taco de madeira. Uma vez ele lidara com um bêbado reticente, que não queria falar. Marcello pegara o taco e dera uma pancada segura na mão do elemento, lesionando os dedos. Ele começara a falar rapidinho. Mas ele não podia fazer isso com um padre. Mesmo que ele confessasse ser um assassino. Virgem Maria! Aquela situação era totalmente surreal!

– E o como, padre, pode me contar? – tentou Marcello, para desviar do assunto principal – Como o matou?

– Sim – o padre concordou – posso. Giulio é um membro ativo da congregação, nunca se importou de ajudar o antigo pároco na manutenção da igreja. E eu lhe pedi para me ajudar com uma janela no batistério. Ontem pela noite. Eu tinha a faca escondida, fechei a porta do batistério, e quando Giulio estava próximo a pia eu fui até ele, conversando. Então eu o esfaqueei. Na barriga, eu acho – Vincenzo não olhava para frente. Encarava a mesa. Envergonhado? Arrependido? – ele tentou me desarmar, lutar, mas, quem espera ser esfaqueado por um religioso, não é mesmo? Eu o apunhalei novamente, ele cambaleou contra a pia e eu peguei sua cabeça e bati na pia, várias vezes. Ele caiu. – o padre suspirou. – Então eu me abaixei e o apunhalei várias vezes. Limpei-me, troquei as roupas. Rezei. Liguei para a polícia. Me escondi. Rezei. E me entreguei.

– Por quê, padre? – insistiu o investigador.

– Não posso dizer, amado.

– Eu não entendo – Marcello passou a mão pelo cabelo – o senhor, você, parece um homem fiel a Deus. Não parece alguém que faria mal a uma pessoa. Muito menos sem motivo.

– Eu não disse que não há um motivo – o padre respondeu, ainda olhando para o tampo da mesa – apenas que não posso contá-lo.

Marcello se levantou para sair. Iria deixar o padre ali, sem água ou comida. Talvez isso o fizesse falar.

Ouviu-se batidas na porta.

– Marcello – um dos policiais enfiou a cabeça loira para dentro da sala – Giulia, a filha do delegado está aqui. Disse que quer falar com o padre.

Marcello pensou um pouco. Talvez isso ajudasse.

– Deixe-a entrar.

A jovem tinha cabelos negros, estava no fim da adolescência, dezessete anos, talvez. Os olhos estavam vermelhos: ela tinha chorado. Marcello estava de pé e a jovem também. O padre continuava encarando a mesa.

– Padre – a voz da jovem era baixa, mas decidida. Estava com os braços abraçando o próprio torso, como se estivesse com frio ou medo – disseram que o senhor matou meu pai. É verdade?

– Sim, amada – respondeu o padre, erguendo os olhos para ela. Suplicante – eu o matei. E embora você entenda por que fiz isso, imploro que me perdoe.

Marcello olhou para Giulia.

– Do que ele está falando?

– Padre – ela ignorou o investigador – estou em profunda tristeza, pois apesar de tudo ele era meu pai e, ainda assim, devo lhe perdoar. – ela fez uma pausa, a voz embargada – E, Deus me perdoe por isso, mas eu lhe agradeço.

– De que se trata isso? – exigiu saber o investigador. Que diabos? Ela estava satisfeita com a morte do pai? Que tipo de monstro era aquela garota?

– Senhor, – ela encarou Marcello – meu pai era delegado e, na frente de todos, era um bom homem. Mas, em casa... – ela respirou fundo – ... ele era um homem mau. Agredia minha mãe. Ela nunca vestia roupas sem manga para não mostrar as marcas. – lagrimas estavam nos olhos dela – Bebia, ficava violento. Ele.. ele.. – ela começou a soluçar. Marcello, por instinto, se aproximou e passou o braço, meio desajeitado, pelos ombros dela, estarrecido com o que estava ouvindo. Mas não era tudo. – ele abusava de mim. Desde que tinha nove anos. E.. e... se minha mãe protestava batia mais nela. – os joelhos da jovem tremiam – O velho pároco, ele sabia: meu pai se confessava e o pároco sabia. Ele tentou mandar duas cartas anônimas à delegacia, violando o segredo de confissão. Mas meu pai interceptou as cartas.

Mercello estava horrorizado. Os outros policiais haviam entrado, chocados com o relato da jovem.

– No fim, o pároco decidiu contar a alguém. Então meu pai o envenenou.

– Deus do Céu. Ele era velho, – refletiu Marcello, em voz baixa – é lógico que tomaram por um infarto. – E Giulio confessou isso a você, padre Vincenzo? É por isso que o matou? Para proteger a família dele?

– Não posso falar – o padre repetiu, tinha o rosto enterrado nas mãos.

É claro que não podia. O segredo de confissão era algo sagrado. Um padre não podia revelar algo que lhe fora confessado. Não podia dizer que conhecia os crimes do delegado. Nem denunciá-lo. Nem por que o havia assassinado. O bom pastor às vezes tem de matar para proteger suas ovelhas. Fazia sentido. A questão era o que ele e os outros policiais, deviam fazer agora. Prender o padre como um criminoso. Ou deixar oculta a ação do padre e deixa-lo em liberdade.

O verão havia chegado.

E o delegado Marcello estava indo para a modesta igreja de uma cidadezinha a sessenta quilômetros de Trento. Para se confessar. Ele entrou no confessionário de madeira. Do outro lado o padre disse as frases rituais. E Marcello respondeu apropriadamente.

– Padre – disse Marcello, depois de um tempo – embora eu saiba que ainda deveria me sentir culpado, minha consciência está tranquila.

– Está? – perguntou do outro o padre perguntou simplesmente.

– Estou, padre. Não sei se fiz a coisa certa, mas espero que tenha feito a coisa justa – respondeu Marcello.

– Eu também, amado – respondeu a voz do outro lado. – Tenho pedido orientação divina, e ainda não encontrei uma resposta. Mas só posso esperar que assim como você, amado, eu tenha agido da melhor forma possível.


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Notas finais do capítulo

Agradeço a leitura e fico no aguardo de comentários.
Adicionalmente, gostaria de dizer que, por não conhecer bem a seara, talvez tenha feito mal uso dos termos 'paróquia' e 'pároco'. Sou cristão não-católico e, se houver me equivocado em nomenclaturas, peço que me corrijam: aprendizado sempre é bem vindo.
Adicionalmente, fica minha nota de apreço pela Igreja Católica Apostólica Romana, pois ela realiza muitas ações que beneficiam as pessoas no âmbito social, pessoal e, claro, espiritual.



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