Coração de Porcelana escrita por Monique Góes


Capítulo 36
Capítulo 35 – O Erguer do Príncipe




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Capítulo 35 – O Erguer do Príncipe

Near subiu correndo sem nem se importar se estava fazendo barulho ou não, mesmo quando tropeçou em seus próprios pés ao subir as escadas. Estava com a cabeça tão cheia que não conseguia nem pensar direito.

Por anos passara tendo o relacionamento totalmente explosivo e desgastante com o pai. Quando não estavam se ignorando, estavam brigando. Agora aquilo que o anjo lhe mostrara fizera uma guerra civil explodir em sua cabeça.

Parte já estava gritando, culpando aquele homem, Morgane, pelo inferno que ele eclodira em sua família, que ele fizera sabe-se lá o quê com Charles e o transformara naquela coisa que quebrava braços de crianças de seis anos e batia cabeça dos filhos em bancadas de mármore. Outra parte já dizia que talvez o anjo houvesse criado uma ilusão para suprir algo que Near nem sequer sabia que desejava. Vinha a parte que dizia que seu pai era um bruxo, e que pelo que conseguira entender, vinha de uma linhagem de extrema importância, e sua mãe havia sido escolhida como sua esposa para “manter o sangue puro”.

“Seu sangue é perigoso”, “Você não é bem vindo, reconheço esse cheiro do seu sangue”. Morgane dissera algo sobre “Grandes Príncipes” e que sua família tinha o sangue do Príncipe Almishak. Era visível que aquilo era importante, que sério. Mas parecia igualmente grave.

Só sabia que havia tanta coisa em sua cabeça que abriu a porta com mais força do que deveria.

E então travou.

Haydée?!

Era realmente ela. E depois das últimas semanas, depois dos últimos anos era surreal vê-la. Era surreal ver um rosto conhecido depois de tudo. O cabelo preto, cacheado e lustroso que chegava aos seus quadris, a pele clara e os olhos negros. O rosto bonito não parecia ter envelhecido um mês sequer, o que de certa forma era tranquilizante e ao mesmo tempo assustador.

Mas também era certo que ele sentia a raiva pronta para explodir, enquanto outra parte vinha dizendo que precisava ter calma. Estava já ficando com raiva dessa capacidade irritante de ter dois tipos de pensamentos ao mesmo tempo e ter que se manter acima do muro devido a eles.

— O que você está fazendo aqui? – questionou, tentando manter algum tipo de compostura.

— Atrás de você. – respondeu. – Mais precisamente, antes que arranje problemas.

— Como assim... Como assim? Problemas? Sério, Haydée? Depois de ser transformado em um...

— Shh!

Ia continuar, porém algo em seu tom de voz o fez acatar a “ordem”. Inicialmente, tudo o que ouviu foi o som do vento passando pelas árvores, a água e os ruídos ocasionais de qualquer animal que estivesse por perto, o que de certa forma, não era nada alarmante.

Depois houve os ruídos de asas.

Por um segundo pensou nos pássaros, algo normal. Depois, percebeu que o som era de certa forma pesado demais, fazendo-o dos...

— Near, por tudo que é mais sagrado, me diga que você não saiu e foi visto por nada como... Anjos.

— Na realidade eu saí de madrugada para achar o seu maldito segredo, e na hora um embate de anjos começou.

Haydée estava com uma expressão de quem pensava seriamente em estapeá-lo, o que Near considerava injusto. Ele fora o amaldiçoado ali, então ele se sentia mais no direito de realizar um ato impensado, mesmo que não fosse fazê-lo. Ela ergueu a mão, pedindo tempo, e olhou ao redor.

Escutou o grito da águia ao longe.

— Fique calmo, sem movimentos bruscos...

Depois percebeu os anjos. Brancos e dourados, empoleirados como pássaros. Percebia-os ligeiramente translúcidos, diferentes de mais cedo. Eles pareciam ecoar os gritos estridentes de animais-segredo, grasnados, cantos e pios e também era visível que haviam adquirido algumas características dos animais. Olhos, penas, até pelos. Uma informação aleatória se formou na cabeça do boneco.

—... Eles estão aqui por causa dos Rockstones...

— Não. – Haydée respondeu. – Eles estão aqui atrás de você.

Aquilo era loucura. Mas o que o anjo lhe mostrara ecoava em sua cabeça. Os Grandes Príncipes. Príncipe Almishak. Pureza de linhagem.

— Mas como...

— Seu sangue de longe consegue, talvez, ser mais importante que o dos Rockstones. E isso é perigoso. Não posso lhe responder logo, mas Near, por favor, você tem que sair daqui. – ela pareceu engolir o seco. – Há outras pessoas aqui com você, certo?

Assentiu fracamente.

— Tente chama-los. – respondeu. – Há uma saída do Santuário aqui perto, ela dá em Atlanta. Mas Near, eu preciso que você venha comigo.

Near olhou-a.

— Por que eu iria?

— Eu lhe devo respostas. E tem o seu pai...

Near sentiu algo como um soco. Tudo somado à visão. A aquela maldita visão. Memória? Passado?

— O que tem ele?

— Ele já tem cem anos, e ele está morrendo Near. Ele tem ainda mais respostas do que eu.

Tudo tinha a tendência a piorar, não tinha?

— Eu trouxe as minhas chaves. Preciso das suas para tirar a sua maldição. Rápido!

Nem se deu ao trabalho de discutir. Lentamente, para não chamar a atenção dos anjos, desceu para dentro do barco, esperando que Haydée não arranjasse problemas. Ele precisava suas respostas e precisava tirar aquela maldição. Quando dentro, correu até a cabine de Gitmak, encontrando adormecido de bêbado, como de costume. Ele fedia muito a álcool.

— Gitmak. – Sacudiu-o, fazendo o anão resmungar. – Gitmak!

Lhe deu uma sacudida tão forte que o anão deu um pulo, quase lhe acertando com um martelo de pedra que nem sabia que ele possuía, o que com certeza assustou a Near.

— Tome maldito!... Hã? Boneco? Quê que foi?

— Anjos cercaram o barco. Anjos de luz. A gente tem que sair daqui.

— Hã? Mas hein? E eu ainda não ouvi nada!

— Eles ainda não atacaram.

— Devem estar atrás dos Rockstones... – Ouviu-o resmungando mais algumas coisas, fazendo-o morder os lábios. Por que aquilo estava acontecendo?

Foi à cabine de Claire, onde a encontrou dormindo como uma bola, fazendo-a parecer ainda menor do que já era. Dava até pena de acordá-la, mas era necessário. Ela despertou tão grogue que parecia quase bêbada quanto Gitmak.

— Claire, eu preciso das chaves. Onde elas estão?

—... Encima da cômoda... Mas por quê?

— É um caso de vida ou morte. Literalmente. Você precisa pegar as suas coisas, temos que sair daqui.

— Por quê?

— Claire, há anjos aqui, e não parecem ser do tipo amigável.

Joshua parecia ter uma propensão a dormir como cachorro, assim sua audição ajudou a despertá-lo. Ele estava menos grogue que sua irmã. Markus já tava de pé, assim nem precisou de muito trabalho. Foi só mencionar “anjos de luz, rodearam o barco” que ele foi acordar tanto Lilith quanto Markus. Assim, lhe restou ir até o anjo.

Quando abriu a porta, ele estava do mesmo jeito, sentado ao chão, com a asa imobilizada junto ao braço. Travou ao ver que todas as suas penas encontravam-se brancas, e novamente ele encontrava-se quase inerte, embora o fio de consciência ainda estivesse visível.

— Ei. – pegou-o pelos ombros. O anjo estava mole. – Consegue ficar de pé? – ele balançou a cabeça de uma maneira tão tonta que não sabia se ele negava ou assentia. – Vamos...

Puxou-o, e percebeu que usara mais força que o necessário. Devido ao seu físico, esperava que ele pesasse pelo menos uns oitenta quilos, mas se assustou quando percebeu sua leveza. Ele deveria ter o peso de uma garota do tamanho de Claire! Talvez fosse como os pássaros, com músculos leves e ossos ocos?

— Certo, hã... Você tem nome?

— Dragan. – murmurou de maneira quase dormente. Repreendeu-se por não ter perguntado antes, mas o anjo não o respondia, assim não sabia se ele entendia ou não. Praticamente o carregou escadaria acima, pois ele tropeçava aos próprios pés.

— Esses anjos engoliram segredos. – foi a primeira coisa que ouviu quando chegou do lado de fora. Gitmak ainda trazia um torpor bêbado em sua voz. – O que esses merdas querem com isso?

— É uma forma de controle. – Markus respondeu. – Os bruxos normalmente tentarão seguir ou ataca-los para conseguir suas informações, então o bando aproveita para mordê-lo e transformá-lo num deles.

Joshua olhava para um especial, e o apontou. Os olhos do anjo estavam prateados, ele grasnava, e suas asas estavam diferentes. Pareciam asas de... Corvo? Embora brancas quase como descoloridas, com alguns pontos ainda cinzas e pretos.

— Ele engoliu o segredo que eu estava atrás. Do meu pai.

— Está com as chaves? – Haydée questionou e literalmente viu quase todos se assustando. Ela estava praticamente invisível entre a tenda que dava às escadas e a beirada do barco.

— Quem é você?! – Lilith questionou, sobressaltada.

— Haydée Niévre. – o loiro respondeu, erguendo as chaves. Olhou para Dragan, esperando que ele fosse capaz de se manter em pé sozinho, mas no momento em que o soltou, os outros anjos pareceram se preparar. O anjo da noite se curvou, parecendo cansado em apoiar o próprio peso, e Haydée pareceu alarmada, embora nada tenha dito.

Ela lhe estendeu a mão, e por um momento hesitou. Haydée havia o amaldiçoado e lhe posto naquela situação. Foram sessenta e quatro anos perdidos, e fora tanta coisa. Não sabia sobre sua família, o que ocorrera com eles naquele tempo todo. Perdera tanta coisa do mundo, e simplesmente, agora tinha uma chance num mundo que lhe era totalmente desconhecido. Com estranhos e coisas que simplesmente nunca lhe passariam pela cabeça. E ela simplesmente lhe aparecia do nada falando de seu pai depois da visão mostrada pelo anjo. Tinha motivos para desconfiar dela.

Mas precisava sair daquela condição.

Entregou-lhe as chaves e Haydée deu uma olhada rápida e nervosa nos anjos, que se encontravam ariscos, embora ainda imóveis, antes de pegá-las, e fazer o que ele simplesmente não esperava.

Ela o beijou.

Não sabia exatamente choque fora exatamente o que sentira no começo. Soube que depois, sentira a mesma dor que houvera quando fora amaldiçoado. Mal se recordava daquele dia, mas tive certeza que fora a mesma dor. Uma dor que mexia em suas entranhas e fazia parecer que todos os seus órgãos estavam sendo arrancados de dentro de seu corpo e que seu sangue havia sido trocado por ácido, deixando-o com uma sensação de queimação horrorosa combinada ao som de engrenagens aos seus ouvidos.

— Que jeito interessante de terminar uma maldição... – ouviu James mencionando, mas antes de que pudesse sequer se sentir encabulado, irritado, ou qualquer coisa do tipo, a voz de Claire fez muito mais sentido.

Ai meu Deus... Corram!

Seu corpo estava tão adormecido depois de toda aquela dor que suas pernas viraram dois pesos mortos, mas foi quando os anjos decidira que não mais iriam esperar. Felizmente, Joshua tivera reflexos mais rápidos, seus olhos ficando prateados e o cabelo de um verde escurecido como a hera e musgos que cobriam monumentos esquecidos. Com uma explosão e um gemido, as árvores o responderam, seus galhos torcidos saltando em direção aos atacantes. Alguns ainda estavam nas árvores e foram engolidos em casulos de madeira, outros tiveram suas asas, pernas, braços ou troncos enroscados pelos galhos. Outros ainda foram atravessados, desfazendo-se em nuvens de pó dourado e libertando os segredos que havia prendido.

— Por essas e outras eu amo ser parte Allaway.

— Espera, a sua magia responde quando eles estão por perto?!

— Hã, sim. Por quê? Não deveria?

— Isso não é hora para conversar! O barco não respondeu, temos que sair a pé! – Gitmak exclamou, apontando para o tablado do barco.

— Vie. – Markus sibilou e o bichinho esquisito que o seguia guinchou, se tornando névoa. Escutou os grunhidos dos anjos indicando que eles começavam a sufocar.

— Desça do barco, rápido!

Conseguiu se obrigar a andar, embora que a maioria já houvesse descido. James pegou sua mochila, virando-a e três esferas metálicas do tamanho de bolas de basquete caíram de dentro, transformando-se, inacreditavelmente, em três lobos de aço.

— Certo, esse tipo de magia eu acho que eu ia gostar! – Gitmak exclamou, e com um uivo, os lobos emitiram uma espécie de onda de choque que eletrocutou os anjos que não haviam sido presos e já estavam próximos. Suas colunas ondularam e viu literalmente as luzes dentro deles junto a cabos que nem sabiam que existiam. – Mas isso é tecnologia de fora, como funciona?!

— É magia. – James respondeu simplesmente.

— Magia à base de tecnologia? Isso sim é bom! Mas agora, os garotos que conseguem ir contra os anjos, tentem mantê-los atrás de nós! Eu vou levando os outros pras saídas que tem aqui perto! Quem são os mais lentos? – ele olhou para todos que estavam lá, e de supetão ergueu Dragan, que não reclamou, e Claire, que soltou um gritinho. – Certo! Vamos indo!

— Espera, deixa-los para trás? Você... – Lilith começou, mas como sempre fazia, o anão dispensou opiniões pessoais e saiu correndo. Não tiveram tantas alternativas quanto gostariam de ter, portanto, os seguiram. Near concordava que não parecia uma boa ideia deixar os três para trás, mas quando a névoa tomou o caminho atrás deles, deixando-os apenas com estrondos metálicos, sons de árvores e gritos de anjos, não teve uma melhor alternativa.

Correram entre uma espécie de trilha de pedras tão bem feita que a grama sequer crescia entre elas. Preocupava-se em parte com os bruxos deixados para trás, enquanto temia com o que haveria à frente. Uma pequena parte de sua mente também registrou uma preocupação quanto ao fato de Lilith estar correndo e ela estar grávida.

Uma coisa passou voando desesperadamente por Near, que se preocupou imediatamente com a probabilidade de ser um anjo, mas viu que era um corvo de asas descoloridas.

O corvo?

Claire conseguiu estender a mão e pegá-lo, e com um grasnar, ele virou uma caixa dentro de uma sacola de veludo. Sim, era que Joshua provavelmente queria, e no caso, aparentemente era o que Claire queria também.

E de uma hora para outra, Near sentiu como se estivesse tentando correr dentro da água. A pressão aumentou sobre si, e seu corpo inteiro reclamou quanto ao peso. Piscou, sua visão escurecendo. Quando a luz retornou, a floresta inteira parecia ter mudado. As árvores jaziam secas, os troncos brancos, o céu era roxo e aparentemente retorcido com nuvens negras em redemoinho. A grama jazia morta e preta, o solo parecia areia, o ar com um forte cheiro de enxofre.

Sua cabeça rodou.

— Near, qual o seu problema? Continue correndo! – Haydée exclamou. Ela havia sumido, como escutava sua voz?

— Por que... Por que o Santuário mudou?

Ela pegou sua mão como se estivesse o guiando, como se estivesse saindo do caminho.

— Estamos do mesmo jeito Near!

— Não...

Por que vivemos aqui?

Near engoliu o seco ao ouvir a primeira voz. Estava tão cheia de dor, sofrimento e cansaço que quase caiu. Seus pulmões pareciam gritar o dobro que já gritavam por ar, a dor em seu peito se expandindo. Dois olhos brilharam na escuridão. Eles eram vermelhos.

Príncipe Almishak sempre disse que havia um lugar para nós.

Não somos aberrações.

Se não pudermos ter um lugar ao sol, poderemos ter à luz da Lua.

Mas os outros são sempre iguais.

Rockstone, Amabosar, Ashirikas.

Eles são amaldiçoados.

Devem ser caçados.

“Parem com isso.” Near pediu, mesmo sem saber a quem. Já era uma multidão de vozes e olhos, todas parecendo se lamuriar de seu próprio sofrimento enquanto entoavam as palavras ao mesmo tempo.

Só fazemos o “errado”.

Apenas sobrevivemos.

O quão diferente somos dos bruxos?

Fazemos a mesma coisa.

Príncipe Almishak nos transformou em seus súditos.

Tínhamos um lugar seguro.

Primeiro veio o Rockstone com seus dragões.

O Príncipe sumiu, mas seu filho se manteve.

E o filho dele.

E o filho dele.

E o filho dele...

Então veio Amabosar.

Ele tirou o príncipe do poder.

E todos os príncipes que poderiam sucedê-lo.

Mas um sobrou.

— Anjos! – escutou Gitmak gritando. – Como vieram parar aqui?!

— A magia não funciona!

Guinchos soaram ao longe, barulhos de asas. Por que não via nada? Precisava agir, mas como? Near não era um bruxo, não era um lutador, ele era literalmente um adolescente de dezoito anos que o máximo queA fizera fora enfrentar o seu pai. O que faria contra anjos cujas mordidas os transformavam em seres como eles?

Quando um príncipe morre, o Outro sobe.

Só há um, só há um.

Puro sangue, puro sangue.

Inicie seu reinado.

Use sua voz.

O Véu há de se curvar.

O Véu é seu.

O Véu é o seu reino.

Os amaldiçoados os seus súditos.

Os mortos sua energia.

Levante-se Príncipe Almishak!

A explosão aconteceu quando sua visão retornou à floresta. Sentiu como se algo quebrasse dentro de si. Viu um sol negro se erguendo ao céu quando todas as suas energias foram sugadas como se fosse morrer, fazendo os membros pesarem, um torpor passar por seu corpo, e a cabeça girar, doendo como se ela atingisse uma bancada de mármore por mil vezes.

E então tudo escureceu.


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Notas finais do capítulo

:D



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