Ecos do Viver escrita por Kyriê Snow


Capítulo 1
Capítulo 1 - Ecos da Dona Beija


Notas iniciais do capítulo

Inaugurando a série, Ecos da Dona Beija, retrata o drama e a filosofia de uma menina criada na selva tocantinense, alheia ao mundo e que de repente se vê na cidade.



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Ecos da Dona Beija

Meu nome é Naiara, estou apressada porque me atrasei cuidando de um amigo. Minha aula de literatura já começou há dez minutos. Detesto o fundo da sala, mas hoje não vai ter jeito. Além do zunzum, o fundão complica minha vida por eu ser baixinha.

– Oi, galera!

– Oi, Naiara! Chegando cedo para o intervalo? Nem precisa procurar cadeira, já resolvemos que o último a chegar vai dar aula no lugar do Adiposo. Sobrou para você.

– Eu, heim! É ruim! Já chega que tem gente aqui achando que eu faria qualquer coisa para aparecer. Imagina! Se me virem na cadeira do professor Alexandre!

– Aê aparecilda! Não tem jeito. Pode sentar ou ficar de pé, mas vai ter que encarar.

– É isto mesmo! E pode apagar este sorriso de filhinha de papai, pois hoje não tem salvação.

– Aê! Seu lugar no colo do professor já está ocupado! Só tem a cadeira do Adiposo disponível e ela é toda sua!

– É, patricinha! Hoje você vai ter que falar com pobre! Pode descer do salto e abrir o verbo.

– Por mim esta nojenta ficava calada para o resto da vida! Olhem isto! A sala toda no pé dela e continua sorrindo! – disse o Léo lá no fundo, com os pés em cima da última cadeira vaga.

– Ei, pessoal! Calma! Com esta zona toda, como ela vai falar?

Silêncio.

– Muito obrigada, Kátia. Sei que você não é a única com bom senso na turma. Valeu a força. Depois desta manifestação de apreço pela minha pessoa, devo informar a todos que não tenho nada a falar sobre a matéria do professor Alexandre...

– Aê, puxa saco! O nome dele é Adiposo! E como teve um ataque de banha, você vai falar no lugar dele. Ensina para nós como é que se faz para tirar “notão” no PAS, nós também queremos entrar na UnB.

– É! Fala aê! Tem mensalão para entrar na UnB?

– Não acredito que vocês estejam fazendo isto comigo! É improvável que eu ensine qualquer coisa a uma turma que tem tantos professores bons!

– Pode crer, “coisinha”!

– As notas que tirei são as mesmas que qualquer um de vocês poderia alcançar. A diferença é que eu me dedico enquanto a maioria aqui fica jogando pedra nos outros.

– Falou... nojenta! Filhinha de papai...

– No semestre anterior, eu ficaria muito constrangida com esta recepção, porém, nestas férias, tive o prazer de assistir a um exemplo magnífico de conduta...

– Quem pode, faz um tour pela Europa! Foi a Paris, patricinha?

– Pelo que me consta, isto aqui não é um colégio público, portanto, estamos ocupando o mesmo status social.

– Tem mais alguém por aqui que usa “Daslu” todos os dias?

– Esta agressão toda é devido às roupas que uso? Ou às notas que tirei no vestibular seriado? Tem mais alguma motivação? Se tiver, façam uma lista para que eu possa me defender de todas!

– Anota aí. Você é uma chata, pé no saco, metida a besta, não fala com ninguém e só nos dá sossego na aula de basquete porque é menor que uma tampinha de garrafa.

– Um micro chip. – completou outro.

– Mais alguma coisa? – inquiri.

Silêncio. Continuei.

– O que posso dizer é que neste mês de julho de 2005, presenciei um ser humano com idade menor que a de vocês, sair de outro estado deste Brasil e vir a Brasília, onde o foguetório do “mensalão” ainda ecoa, e, mesmo tendo o pai no centro do tiroteio, mostrou a serenidade que se espera de um adulto para enfrentar problemas. Mesmo sabendo que os olhos que a seguiam por toda parte eram acusadores – devido ao envolvimento do pai nos eventos que abalam nosso país – manteve a calma e a segurança e, durante três dias, enfrentou os concorrentes, finalizando por postar-se no mais alto degrau do podium, conquistando um título nacional. E não pensem que foi fácil, pois Brasília é o berço de inúmeros campeões brasileiros e sul-americanos na modalidade. Fico aqui de pé e digo-lhes: não vou me sentir constrangida por vocês; não vou me sentir culpada por não tirar as notas medíocres que vocês tiraram; não vou me sentir envergonhada por usar as roupas que a sociedade exige que eu use, porque, durante dez anos da minha vida, isto é, se eu tiver os quinze anos que todos aqui dizem ter, eu usei a vestimenta que estava ao meu alcance. Minha ignorância...

– Nem sua idade você sabe, ô pouca sombra!?

– Certo dia, - continuei – uma doutora, depois de muitos exames, disse que eu tinha dez anos, e que pela minha idade óssea não me daria nem mais e nem menos. Um juiz deu ouvidos a ela e transformou minha vida em vinte e quatro horas de leitura por dia. Em dezembro de 2001, ganhei meu primeiro par de tênis, de sapato e de sandália; ganhei também meu segundo vestido, o primeiro eu havia ganhado no meu sexto aniversário. Menstruei na minha primeira calcinha. Os meus brinquedos são meus livros e o meu passatempo são as histórias que ouço das pessoas que me adotaram: um avô, um pai, uma mãe e dois irmãos. Alguém aqui tem idéia do que é ter um professor com cinco anos de idade? Creio que não! Pois eu lhes digo: um menino de cinco anos me adotou como irmã e foi um grande professor. Ensinou-me todas estas coisas que vocês nasceram sabendo, coisas como ligar a TV, o rádio, o computador e o microondas. Ensinou-me a hora de tomar banho e a escovar os dentes; a diferença entre um filme e uma novela, o desenho animado, o futebol e o vôlei. E tem a minha gratidão por ter me ensinado, antes que fosse necessário, como é que se dá descarga em um vaso sanitário. Não trinquei meus dentes em um sorvete porque ele me ensinou como tomar...

– E aonde você foi colecionar toda esta ignorância, ô rasto de pulga?!

– O Brasil, que vocês deveriam conhecer melhor que eu, tem muitos esconderijos e eu estava em um deles. Minha família biológica tinha um spa em um pé de serra no estado do Tocantins, próximo a Arraias. A clientela era selecionada por figurões de Brasília e levada para lá de helicóptero. As pessoas não falavam comigo e nem eu com elas. Aceitar nossa hospedagem significava viver à nossa moda e o único ponto de civilização que tínhamos era água nas torneiras.

– E o que esses malucos faziam naquele lugar?

– Não estavam correndo atrás dos próprios sonhos, e sim submetidos aos sonhos alheios. Ficavam a mercê do spa. Meu pai ditava as regras. Quando minhas mãos conseguiram levantar uma cuia de água, ele me colocou para cuidar dos clientes. Comecei a inventar minhas próprias regras. Se me pediam champanhe em uma taça de cristal – eu nem sabia o que era – ganhavam água em uma cuia. Pediam caviar em talheres de prata, ganhavam farinha em uma cuia. Um dia, um grandalhão se aborreceu, encheu a boca de água e cuspiu na minha cara. Dei-lhe um chute nos testículos e, toda vez que ele me pedia água, recebia urina na cuia.

– E como uma tampinha como você ia alcançar o saco de um grandalhão?

– Quando se está de quatro, todos somos baixinhos.

– O que ele fazia de quatro?

– As ordens do meu pai eram para que todos passassem o dia de quatro.

– E por que ele cuspiu em você?

– Meu pai havia..., hã..., “conversado” com ele - a conversa do meu pai irritava até as mulheres - ficou extremamente irado e era a única forma que tinha para me alcançar. Eu era muito pequena e não consegui enxergar que estava investida de autoridade suficiente para mudar o rumo das coisas. Não atinava para o fato de que o proceder do meu pai era inumano. Teria me saído melhor se tivesse trocado o chute e a urina, por uma cuia de água limpa e um pouco de atenção.

– Como uma coisa miúda como você pode dizer “eu era muito pequena”? Tem jeito de ser menor do que você já é?

– Se eu conseguir sair desta sinuca sem chutar as canelas de ninguém, é sinal de que estou crescendo – respondi, olhando a turma, sentindo que as perguntas já não eram tão agressivas.

– E seu pai, não fazia nada? Cuidar dos hóspedes não era função dele?

– Só se preocupava em manter os próprios testículos em atividade. Era só o pênis dele acordar e era colocado para dormir novamente. Contava com a imobilidade dos hóspedes para isso.

– Hotelzinho maneiro este seu, heim!

– Por estas e outras, acabou por falir. O helicóptero levou todos embora deixando eu e meus avós por lá. Passados alguns anos, não sei dizer quantos, - aqui em Brasília, podemos consultar um calendário ou contar o tempo por estações chuvosas ou secas, mas lá chovia e fazia calor todos os dias, tentei contar pelas frutas, mas perdi o marco inicial, - recebemos dois novos clientes. Meu avô tinha morrido e mesmo minha avó protestando, os dois foram deixados sob nossa guarda.

– Por que sua avó não os queria por lá?

– O helicóptero levou os hóspedes, mas esqueceu a comida. Levantou vôo e os deixou para morrerem de fome. Minha avó, que estava acamada, me chamou e disse: “mate-os de uma vez, irão sofrer menos”. Passei o dia na minha caverna pensando no que fazer.

– Pensando? Como uma menina pode pensar em matar dois homens?!

– Seria fácil, se o caso fosse matar. O que girava na minha cabeça não era a morte deles, era a da minha avó, que estava muito doente e ia me deixar sozinha. Aqueles dois eram a companhia que me restava. Minha avó ficou alucinada quando eu disse a ela que tinha dividido minha comida com eles, e mais ainda, quando soube que um deles tinha receitado umas ervas venenosas para curar a febre dela. Mandou que eu voltasse lá e fizesse os dois engolirem as tais ervas. Fiquei assistindo o cara comer o veneno e dizer “quem for experto come comigo”; achei que ele estava querendo se livrar de coisa pior. Minha avó morreu sete dias depois, mas não foi por causa da febre. Febre ela não teve mais.

– E o que você fez com os dois?

– Nada! Não fiz nada. Procurei uma forma de me aproximar, não podia simplesmente chegar e dizer “oi, tirem-me daqui”. Fiquei observando como eles eram e o que faziam. O pano da cortina caiu e um deles começou a gritar, pensei que estava louco e saí correndo. Aí me lembrei que eles não podiam sair da suíte. Levei minha comida para eles. Fiquei indignada! Estavam o dia todo sem comer e preferiram água. Trocaram minha comida por água. Deixei-os de lado e fui cuidar da minha avó. A febre tinha acabado, mas ela não comia, fiz todas as comidas que estavam ao meu alcance. Não teve jeito. Voltei minha atenção para os dois hóspedes. Não deixei de levar a água e a comida deles, mas não tinha estado lá mais que cinco minutos por dia. Passei a ficar o dia todo, ouvi as histórias que tinham para contar e descobri que este mundo de vocês existia. Em troca cozinhava, lavava e fazia a faxina para eles. Infringi as regras deixadas pelo meu pai genético, buscando melhorar a situação deles. Fiz isso por uns sete dias, até que eles criaram coragem para quebrar os vínculos que os mantinham por lá e sentiram-se em condições de voltar para casa.

– Você com dez anos!? Fez tudo isso por eles a troco de nada?

Eles fizeram mais por mim. Sempre me deram o que de melhor havia neles. Enterraram minha avó e carregaram-me nas costas quando minhas pernas fraquejaram de medo de enfrentar este mundo. Abraçaram-me quando meus pesadelos me deixavam aterrorizada. Tinham sempre um chá à mão para amenizar minha dor quando eu trombava com um dos inúmeros muros que encontrei na cidade. Contaram minha história ao mundo de uma forma tão bonita que, às vezes, acho que não falavam de mim. Não subverteram minhas idéias, mas não usaram uma só das minhas palavras, pois meu vocabulário era algo muito parecido com o que vocês usam nas quadras quando estão perdendo: pênis, vagina, vulva, sêmen, ânus, reto, fezes, urina, estupro e outras; substituíram com elegância os termos que eu usava.

– Nossa! Gente! A santinha da tampinha sabe falar palavrões.

– Sei sim, Léo. Era o linguajar do meu pai e da minha mãe. A primeira palavra que pronunciei foi “puta”. Vocês usam este palavrório para aliviar a pressão do momento, mas comigo era o natural, era só o que eu conseguia falar. Talvez vocês possam imaginar o efeito de um vocabulário deste dentro de uma igreja. Na certa vocês não usam. Eu usava. Na igreja, nos ouvidos do meu professor de cinco anos, nos da mãe dele, na minha primeira escola. Por falar em primeira escola, para vocês terem uma idéia, posso relatar minha primeira hora de aula, pois acho que ela retrata bem o restante do meu ano letivo. Eu já estava bem civilizada, tinha um mês de “intensivão”, vinte e quatro horas com minha família, só faltava minha mãe adotiva porque ela morava aqui em Brasília e eu estava em Goiânia. Meu pai, o que eu chamo de tio até hoje, era contra, mas uma assistente social exigiu que eu fosse matriculada em uma escola regular. Meu irmão mais velho, que era um dos que tinha me tirado do spa, levou-me até a porta da sala, apontou as cadeiras e disse que eu tinha o direito de me sentar em qualquer uma que estivesse desocupada. “Desocupada – explicou – é aquela que não tiver ninguém sentado”. Pensei, mas não falei com ele: “neste caso é só eu tirar esta piranha que está aí e sentar bem aqui perto da porta, uns dois tapas e ela desocupa”. “Cocei” para fazer isso, mas acabei indo parar lá no fundo. A sala foi enchendo e uma menina sentou-se ao meu lado. Fiquei impressionada, estava lado a lado com uma coisa que eu nunca poderia imaginar que existisse, tinha uns olhos tão verdes que pareciam um semáforo aberto. Incomodou-se por eu ficar admirando os olhos dela, olhou-me de cara feia e perguntou:

– Qual é? Nunca viu?

– Não! Todas as putas da sua casa são bonitas como você?

É claro que meu palavreado e meu sotaque fizeram sucesso na mesma hora. A algazarra trouxe a professora e a diretora para nossa sala. A professora ficou possessa quando me encontrou sentada na barriga da “pupila” dela e os joelhos esmagando os braços brancos e finos contra o piso, a turma toda gritando, metade querendo que ela saísse de debaixo de mim e a outra querendo que eu desse umas “porradas” nela. Não tinha motivos para bater, fiquei só olhando o esforço que ela fazia para se livrar de mim. Tive mais uma aula de civilidade, na sala da diretora. Antes que meu irmão me trocasse de escola, tive que mostrar para muitos meninos, começando pelo irmão mais velho, também de olhos verdes, que pernas e braços que sobem em palmeiras e árvores, também podem subir em costelas. Fui chamada de selvagem só porque troquei a cor de um olho dele, e a camisa do uniforme, que era branca, ficou vermelha. Minha vida virou um inferno. Descobriram que a chacota e o escárnio eram mais fortes que meus braços. Engoli as humilhações e segui em frente.

Ainda não cheguei onde quero, mas vou chegar. Minha atual família é formada por pessoas que tinham e têm só coisas boas a ensinar, mostraram-me que cada um doa o que tem dentro de si e, com boa vontade, pode-se até melhorar o que se tem para transmitir ao próximo.

Alguns olhos correram até à porta, às minhas costas, mas como eu estava concentrada no “bad boy” da turma, não dei importância.

– Os “caras” deviam ser muito ricos para sustentar suas “Daslu” – tornou Léo.

– Um funcionário público e um “flanelinha”. Mas são ricos de amor por quem os cerca. O sorriso que te incomodou há pouco, nasceu do exemplo deles.

– Sustentam seus luxos só com amor?

– Não, eu morava em cima de um tesouro e morria à míngua, assim como você, que põe seu pai para comprar os melhores livros e nem sequer os abre.

– O que você sabe da minha vida? Não se dá ao trabalho de conversar com ninguém!

– Não sei nada e não estou te criticando. Estou tentando cuidar da minha. O dia em que eu acreditar que sei tanto quanto vocês vou sentar no meio fio e ajudar qualquer um a amarrar o tênis, mas por hora, mal sei fazer um nó, tenho que correr para tentar alcançá-los. Cada um aqui tem dez anos mais que eu nesta vida. Sei que posso melhorar o que tenho a dar aos outros, só que não vou me contentar em dar o melhor de mim, isso eu fiz quando cozinhei inhame para que ninguém morresse de fome. Hoje quero que o melhor de mim esteja à altura de fazer feliz quem estiver ao meu lado. Tenho certeza que vou conseguir. Meu irmão mais velho conseguiu ouvindo as histórias do pai. O mais novo conseguiu seguindo o exemplo da mãe. E como eu tenho todos eles e vocês como professores...

O giz deu sinal de que estava sendo arrastado no quadro negro e me virei. Antes que o professor terminasse de escrever, sentei-me na cadeira que o Léo teve a gentileza de desocupar.

– Sejam todos bem-vindos a um novo semestre – disse o mestre ao parar de escrever. - Com o intuito de fixar os conceitos aqui ventilados, quero, para a próxima aula, segundo a generosidade dos seus corações, um texto sobre a senhora Ana Jacinta de São José. Agradeçam a Deus o meu atraso. E por hoje é só.


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Notas finais do capítulo

Na sequência: Ecos do Útero.



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