Gaiola escrita por Lua


Capítulo 1
Capítulo único




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Ela acorda, como todas as manhãs, cansada. Uma noite de sono há tempos não é mais sinônimo de renovar as energias. O homem que está deitado ao seu lado na cama nem se move, os cabelos dele já estão meio grisalhos, sua barba está por fazer. Ele não é mais o mesmo homem deslumbrante que fora, ela também não é a mesma mulher. Sua pele está um pouco manchada, seu cabelo está gasto pelas várias camadas de tinta, seu corpo perdeu as curvas de que tanto se orgulhava, suas mãos ficaram ásperas, seus olhos não brilham mais. Mas ela não tem tempo para notar essas coisas, tem trabalho a fazer; é mulher ocupada.

Antes de sair de casa para mais uma jornada diária, ela precisa tirar os dois filhos adolescentes da cama, preparar o mais novo para a escola, fazer o café, colocar o pão, a manteiga, a xícara, exatamente como todas as manhãs, e então acordar seu marido. Ela prepara a marmita dele e dela, coloca o alimento com cuidado e zelo, como sempre fez, mas aquilo não é mais especial como quando era recém casada. Ela mal se lembra da sensação de satisfação que tinha nessas simples tarefas, pois vieram tantas coisas para fazê-la se esquecer. Vieram os filhos, o corpo deformado, o peso, as noites mal dormidas, a adequação à nova rotina apertada, sem intervalo para abraços, para conversas. Os anos chegaram e foram embora antes que notasse.

No trabalho as coisas seguem como todos os dias, conversas tolas e vazias com os colegas de uma profissão que não escolheu, reclamações sobre o chefe, sobre o tempo, sobre as notícias, sobre a vida. Ainda bem que ela perdeu a habilidade de sentir intensamente, ao contrário, não suportaria o gosto amargo do que faz. Seus sonhos se limitam a desejos mesquinhos que a televisão coloca em sua cabeça, nada de delírios, muito menos utopias. Houve um tempo em que esses sonhos eram do tamanho da grandeza a que aspirava, mas então descobriu que o mundo não era uma história sobre ela, que não há um roteiro, e que o final feliz não vem com o príncipe.

Deveria ter ido atrás de uma caneta e escrito, ela mesma, o tal roteiro, deveria ter rasgado a barra do vestido, ter arregaçado as mangas, ter sido seu próprio super herói. Ela deveria ter feito tantas coisas... Deveria ter ousado acreditar um pouco mais, esperado um pouco mais, falado um pouco mais, mas se acomodou, e quem pode culpá-la? Foi o que a ensinaram, e ela não se atreveu a discordar. Hoje tem uma vida boa: uma casa, marido, filhos, emprego, amigas. Se aperta no final do ano, mas sempre dá conta de pagar tudo em dia. Apesar de tudo, ela pensa que é feliz, e ás vezes realmente é. Do jeito dela, ela sabe amar. Deus que a livre de descobrir sua mediocridade!

A vida segue tranquila e pacata, sem loucuras, sem mudanças, sem paixões, mas segue, e no final das contas é o que importa. A gente sempre acha que não, mas chega um momento em que trocamos a inconstância do atrevimento pela segurança da estabilidade, então construímos nosso futuro sob essas condições, sem nos permitir o pulo, o voo, a liberdade, até esquecermos que somos pássaros. Perdemos a capacidade de nos entregar às emoções, nos tornamos pessoas sérias e ocupadas, corremos porque o tempo é curto, mas porque o tempo é curto que deveríamos desacelerar.

Ela chega em casa, coloca ordem nas coisas, lava as vasilhas, faz a comida, manda o menino ir fazer o dever, varre e limpa, ás vezes até canta, mas suas horas passam muito depressa para notar a poesia por trás da canção. No final do dia tudo está em ordem, mas ainda não se pode respirar em paz, entretanto, isso não é algo que vá mudar, e ela não espera que mude.

E quando ela olha para sua garota, que tem exatamente os olhos e o sorriso de quando ela ainda era jovem, algo em seu coração o faz bater em um ritmo diferente. Em um canto esquecido de sua alma está pregado o recado que se perdeu, o único recado que daria à sua menina se o pudesse encontrar.

— Voa, minha menina, mesmo com medo, voa e nunca se esqueça de que gaiola não é ninho.


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