Meliandra II escrita por Jieun


Capítulo 1
Um frágil sonho


Notas iniciais do capítulo

Escrevi "alice" desse jeito de propósito sim.



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Um sorriso estava nos lábios de Evel Seckendorff enquanto cantarolava, atando mais um laço no cabelo de Sophia IV. A quarta boneca Sophia era uma de suas favoritas. Normalmente, inteligências artificiais não cometem o mesmo erro duas vezes, mas essa, diferente de suas irmãs, era uma androide que sempre desfazia o penteado acidentalmente, dando sempre o prazer de refazê-lo.

– Prontinho, senhorita. Tome o cuidado de não estraga-lo novamente. – Advertiu.

– Sim, mestra! Obrigada! – Ela disse, um tanto empolgada, e foi em direção à saída. Para um humano artificial, sempre havia trabalho a fazer.

Evel era uma mulher jovem, mas de muitos talentos. Computação, engenharia de diversos tipos, criatividade. Mas o maior de todos era o de ser insana. Todo androide que projetava recebia um cuidadoso processo estético e chips de personalidade detalhados, que os tornavam encantadores demais para máquinas. Isso lhe rendera um emprego na casa do Lorde Fosken, o primo do rei da Alemanha. Era uma pessoa terrível, mas pagava bem por belos trabalhos e deixava que ocupasse todo o sótão com uma oficina e suas próprias auxiliares inumanas.

Porém, Evel trabalhava havia quase um ano numa boneca sem falhas dessa vez, uma que poderia chamar facilmente de alice. Considerava este o termo apropriado para a garota perfeita. Perfeita de seu ponto de vista, ao menos. Evel forjou o chip de personalidade de sua alice com muito cuidado e atenção, dando-lhe os mais adoráveis defeitos, bem como qualidades espantosas. O corpo também estava pronto, sendo belo em simplicidade. Cada detalhe minuciosamente planejado, uma imitação da anatomia humana de dentro pra fora. Era um trabalho de carga pessoal, não pretendia vender um protótipo tão precioso, e sim usá-lo como base para criar outros.

A cientista admirava o lençol que cobria esse corpo, e se levantou do banquinho onde outrora esteve penteando os cabelos de Sophia IV. Deixou a escova numa extensa e bela penteadeira, analisando o próprio reflexo. Tinha olhos cansados, os cabelos longos e castanhos estavam uma bagunça e a palidez proporcionada pela falta de sol era a mesma de sempre. A imagem de uma mulher que ama o próprio trabalho mais do que as pessoas. Não era algo belo, mas era a verdade, e se orgulhava do amor que colocava em cada criação. Pegou o avental no cabide, as luvas e todo o material. Faltava-lhe apenas o rosto da pequena alice. A parte mais fácil, mas também a mais importante.

– The London bridge is falling down, falling down, falling down.. – Cantarolava, e parou em frente à mesa de projeção. Com as ferramentas em punho, começou a moldar o rosto da nova garota.

– The London bridge is falling dawn, my fair lady...

Uma cirurgia minuciosa.

Aquela era uma música extremamente antiga e era extremamente raro conhecer alguém que a soubesse, mas qualquer um podia notar o interesse de Evel pela cultura desconstruída do passado. Ela estava presente nos longos vestidos das bonecas adormecidas que enfeitavam a oficina, naqueles laços bonitos. Nos babados cuidadosamente traçados.

Gostava daquela música, pois mostrava que não importava o quanto o material usado para construir a Ponte de Londres melhorasse, nunca era forte o bastante. Na música, ao menos, ela sempre caía. Sempre a mesma tragédia. Assim eram os humanos artificiais, os androides e as pessoas.

Seria aquela alice capaz de ser eterna? Na intenção de fazê-la a rosa eterna, preparara para ela o vestido negro, decorado com rosas azuis, mas quando o rosto ficou pronto, sentiu uma pontada de angústia. Ela parecia familiar. Não. Ninguém tinha aquele rosto. Ela era autêntica.

Com esse pensamento, Evel foi em direção a um compartimento bastante específico e pegou o cabelo preto. Tomou muito cuidado enquanto o aplicava no alto da cabeça. Uma garota gosta de ter o cabelo bonito, e não parecendo um ninho de rato. Quanto terminou, sentiu outro calafrio, mas buscou a caixa com os olhos na penteadeira. Abriu-a com uma cautela desnecessária e pôs os olhos, verdes, em seus devidos lugares. As pálpebras se fechavam automaticamente, então não pôde ter um vislumbre deles no rosto.

– Bem, é hora da verdade. – Sussurrou, sorrindo para si mesma em nervosismo.

Buscou o vestido escuro num armário e o pendurou no braço, indo em direção ao corpo da boneca. Removeu o lençol, revelando um corpo de pele imaculada, seios médios, quadris formosos. Ela era curvilínea, mas não exagerada. Com a mão livre, Evel acariciou de leve a barriga lisa desnuda, sentindo a suavidade da pele sintética. Deslizou a mão até o seio esquerdo, admirando aquela beleza ilusória. Dirigiu então a mão para o braço direito e o ergueu, assim como o esquerdo.

Vestiu o vestido, abaixou os braços da boneca. Atou laços, ajustou adornos, bateu leves amassados da saia. Foi então em direção à mesa onde estava a cabeça da androide e colocou-a em seu devido lugar, ouvindo o som dos encaixes se encaixando. A linha no pescoço era tão fina que mal podia ser percebida por olhos humanos. Seu trabalho estava quase feito.

Na verdade, Evel tinha medo de se mover. De respirar mais forte. Aquela devia ser sua obra prima como fabricante, mas porque a deixava tão triste?

– Mestra, eu trouxe o chá de morango que a senhora pediu, então por favor aproveite. O vendedor me contou que este anda bastante difícil de encon... – Sophia II foi calada pela opção de desliga-la no smartphone de Evel, e caiu no chão em uma posição fetal.

Podia ser meio maldade, mas não estava com vontade de ser interrompida. O botão “alice” estava a atormentando. Tocou-o. “On”.

O celular caiu da mão de Evel.

Os olhos da fabricante de boneca estavam fixos na sua nova criação.

– Eu sou a versão Beta da linha alice. Terei o prazer de servi-la, ilustre Evel Seckendorff.

– Você... – As pernas de Evel tremiam. Ela precisou se esforçar para não cair no chão.

– Está tudo bem, mestra? – A garota de cabelos longos e escuros caminhou em sua direção logo que se livrou do suporte que a mantinha em pé até então. Ela andava naturalmente, era como se fosse de verdade.

Era como se ela fosse mesmo a pessoa que Evel, naquele momento, pensava que era. A androide a segurou pelas axilas a fim de ajudá-la a se manter de pé, algo de que realmente precisava.

Lembranças de onze anos antes assombravam a mente de Evel. Aos quinze anos, estudava num colégio interno, e tinha uma amiga muito próxima. O nome dela era Meliandra, e tinha um lindo rosto e o coração mais puro que poderia existir naquela Era decadente da humanidade... bem, não tão decadente assim, pois todas as formas de amor eram finalmente socialmente aceitas, e Evel sentia muito mais do que amizade pela garota.

Queria fazê-la feliz, queria cuidar dela para que nunca corresse perigo, e escovar os cabelos dela todas as manhãs, pois estariam muito bagunçados depois de uma noite juntas. Obviamente, Meliandra não percebia que aqueles olhares de Evel demonstravam muito mais do que afeto. E quebraria seu coração

E então, sem mais nem menos, Meliandra seria esquecida. Bloqueada por uma parede de insanidade e trabalho árduo. Todos os dias.

Mas lá estava ela, Meliandra, a encarando novamente com aqueles lindos olhos verdes que nem mesmo eram de verdade dessa vez. Aquela era, sem dúvidas, a alice de Evel. Por um momento, se permitiu ser alimentada por essa ilusão, e aproximou seu rosto daquele que esculpira poucos minutos antes. Beijou-o. Distribuiu beijos por ele todo.

– Mestra?

– Shhh. – Pousou um dedo sobre os lábios frios da androide.

Já se apoiava nas próprias pernas com firmeza, e aproximou o rosto do de Meliandra novamente. Deslizou aquele mesmo dedo para o queixo alheio e selou finalmente os lábios tão sonhados. Mas eles eram frios. Eles a correspondiam, ainda que timidamente, mas eram frios. Meliandra devia ser fria?

Lágrimas borraram a visão de Evel, que não queria chorar. Ela deveria ter segurado as lágrimas, não deveria ter deixado aquela ilusão se desfazer. Para isso, deveria ter segurado o choro e alimentado a alegria do momento. Deveria ser feliz para sempre com a mentira que construíra com tanto afinco sem perceber. Mas não conseguia. As lágrimas escorreram por seu rosto, até que foram notadas por Meliandra.

– Está chorando? – Ela disse, se separando e afastando-se um passo. – Eu a machuquei? Por favor, me perdoe! – Meliandra se curvou.

– Sim, você me machucou. – Respondeu, secando as lágrimas, mas elas não paravam de cair e suas mãos já estavam ficando molhadas demais para isso. Não disse mais nada.

Apenas virou as costas para Meliandra correu em direção ao próprio quarto, convenientemente localizado na oficina.

– Mestra, por favor, espere!

Evel hesitou ao ouvi-la chamar. Até mesmo a voz falsa era perfeitamente confundível com a de uma humana. Parecia conter emoções de verdade. Mas continuou, pois não era a mesma voz da Meliandra de onze anos antes e definitivamente não era de verdade.

Bateu a porta do quarto como uma adolescente problemática faria, e se jogou no chão, encostada nela. Chorava em desespero, pois os detalhes da noite chuvosa em que perdera Meliandra se tornavam cada vez nítidos, voltando rapidamente à sua memória, pois o subconsciente jamais a esquecera.

Jamais esquecera o modo como saíra correndo ao vê-la beijar um certo rapaz, e como não fazia ideia de aquela seria a ultima vez que a veria em toda sua vida. Teria agido diferente, se soubesse.

Ouvia a voz da nova Meliandra através da porta e só conseguia chorar mais alto como resposta.

– Você me odeia? – Ela perguntava repetidamente.

Passaram-se horas dessa forma, até que o cansaço venceu Evel, que já não conseguia mais chorar, e se levantou, ainda que trêmula e se sentindo fraca, e saiu do quarto.

– Me perdoe por te machucar, mestra. Você me odeia? – Meliandra perguntou novamente.

Ela insistia, pois era o modo mais prático de perguntar o que queria saber, e androides eram práticos. Mas essa praticidade lembrava muito a de Meliandra.

– Qual o meu nome, mestra?

– Meliandra II – Murmurou Evel, desanimada, observando o prato de vidro do micro-ondas rodar.

– Existe uma primeira? – A androide indagou, olhando de volta.

– Existiu, mas ela deu defeito.

– Qual defeito? Eu vou me aprimorar para não cometer nenhuma falha similar, então me conte, por favor, mestra.

Meliandra era tão fofinha. O chip de personalidade realmente funcionava.

– Ela adoeceu e morreu. Ela era humana, entende? Humanos são mais frágeis do que pontes, computadores ou robôs.

– Eu sinto muito.

– Eu sei que não. – Murmurou, tirando o prato de sopa do micro-ondas e pousando-o na mesa. Sentou-se na cadeira e sorveu uma colherada.

Lançou um olhar de canto para a garota ao seu lado, e murmurou um xingamento antes de largar a colher. Devia estar com fome, mas não estava.

– Venha, eu vou te fazer um penteado. – Se levantou, segurou a mão de Meliandra e a puxou em direção ao centro da oficina, onde havia um banquinho.

Meliandra se sentou obedientemente e Evel buscou a escova na penteadeira. Era uma nova que nunca fora usada antes. Também pegou uma maleta cheia de lacinhos, fitas e coisas do tipo. Se aproximou da boneca e penteou os fios negros de cabelo artificial. Decidiu que ela era tão bonita que não precisava de um penteado muito elaborado, então só trançou duas mechas frontais e as prendeu atrás da cabeça.

Aquela era uma atividade relaxante, e Evel se percebeu suspirando tranquilamente, apesar dos olhos ardidos de choro e do rosto levemente inchado. Abraçou Meliandra por trás, sentindo o cheiro de rosas do vestido, e começou a tremer como se estivesse chorando, embora não estivesse. Sentiu os dedos da outra se enterrarem em seus cabelos, acariciando-os.

– O seu cabelo também é uma bagunça, mestra.

– Eu sei...

– Me deixe arrumá-lo, por favor.

Antes que percebesse o que estava fazendo, Evel deixou de abraçar a boneca e se virou para o lado contrário, deixando que ela penteasse seu cabelo. A tremedeira foi parando aos poucos, e uma espécie estranha de calmaria começou a se apoderar de si, como se estivesse anestesiada.

Aquela oficina não era nada além de um castelo de ilusões, era o que pensava. As únicas bonecas que eram realmente suas eram as Sophias, o resto era feito para o Lorde Fosken.

– Pronto! Você deve estar linda! – Disse a androide, se levantando e ajudando Evel a se levantar.

Meliandra segurou-a pela mão e levou-a até o espelho grande, e Evel pôde ver algo que sempre quis refletido ali.

Ela e Meliandra, juntas. De mãos dadas. Estava usando um penteado ridículo, com um chapéu igualmente ridículo.

– Eu te amo. – Disse, ainda fitando o espelho.

– Desculpe, senhora?

– Eu sempre te amei – Repetiu, olhando para ela, e então puxou uma afiadíssima tesoura de costura que tinha no bolso do avental. – Mesmo quando você não percebeu, e mesmo agora que é tudo mentira.

Abriu a tesoura. Apontou-a para o próprio pescoço.

Não houve tempo para impedi-la. As lâminas se fecharam e a dor foi tremenda. Sangue escorria de seus lábios, jorrava da garganta e tingia o branco da pele de Meliandra II, mas um sorriso marcava os seus últimos segundos, pois assim nunca acordaria do sonho.


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Notas finais do capítulo

Desculpa.



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