Fora do desejo escrita por Lostanny


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/618287/chapter/1

Ano 2122. Era incrível como a paz era encaixada naquele cenário urbano com altas construções e pouco florestamento. O sol ia embora. No entanto seu brilho era suficiente para tingir o céu daquela praça e arredores de um tom laranja forte. Criaturinhas pequenas com asas circulavam por entre as nuvens em diversão. Volte e meia lançavam mensagem de incentivo aos amigos em terra.

Eram vinte crianças vestidas de branco. Em suas mãos tinham um instrumento musical que tocavam. Uma melodia preenchia o ambiente que consolaria a mais desgraçada e pessimista das criaturas.

Não uma moça em particular. Ela atravessava a praça em passos firmes enquanto a água jorrava de uma fonte próxima. Ignorava tanto os anjos quanto os cidadãos que chegavam de seus trabalhos e acabavam por se amontoar por ali. Hipnotizados pela melodia da perdição.

Natalia não se daria ao trabalho de prestar atenção em tal coisa. Pouco importava se era positivo ou negativo; o mundo sucumbir a uma invasão alienígena; o que realmente a irritava no momento era algo mais essencial.

Ouvia movimentos atrás de si. Reconheceria o modo de andar de sua irmã mais velha a quilômetros. Sem contar o barulho daqueles seios ao se movimentar, ainda mais agitados pela preocupação que deveria ter. Natalia tinha levado o parceiro de dança da irmã a enfermaria por tentar “se aproximar mais do que deveria” da moça.

Ninguém além dela poderia tocar em Yekaterina. Era simples e lógico para Natalia. Não conseguia entender como a outra não podia ver do mesmo modo. Porque não poderia dançar e beijá-la assim como aquele homem?

Mesmo gênero que Yekaterina. Também sua família. Nenhum dos dois motivos eram suficientes para convencê-la. Aparências eram aparências.

Natalia apenas buscava satisfazer a necessidade de seu amor.

- Desculpe por mais cedo. - Yekaterina disse ao enfim alcançá-la - Nem disse nada para te ajudar.

A mulher arquejava devido a corrida feita. O tom de voz não era tranquilo. Pequenas lágrimas se formavam no canto daqueles olhos claros. Tinha um rosto bonito mesmo que alterado pela angústia. Quis se permitir tocá-la, lembrou de seu irmão. A porta da frente tinha tranca automática. As câmeras estavam desligadas desde cedo pelo auxílio de Erika. Logo, não havia problema aquele momento.

Permitiu-se em abraçar a mulher a sua frente. Afundou o rosto sobre a camisa social sem nada dizer. Yekaterina pareceu tensa pelo ato. Aos poucos pareceu relaxar, Natalia não a largaria até que a convencesse de que estava tudo bem. Tinha mais predileção pela ação do que pelas palavras. A impressão que tinha era de que se falasse em demasia o sentido delas iria evaporar. Permitiu-se uma exceção:

- Sabe que são poucas coisas que me importam.

“E você é uma delas” Essa última parte não foi dita, mas tratou de falar-lhe pelo olhar; pela mão que se apossou de uma das curtas mechas. A outra ainda sobre a cintura.

-.... Deveria ter raiva. - Yekaterina disse como recurso restante - Foi por causa dessa fraca irmã mais velha que Ivan...

Natalia a calou com os próprios lábios. A mão que antes segurava a mecha de cabelo, auxiliava segurando o rosto contrário. Natalia não prolongou o beijo. Tratou de observar as reações da irmã. Tinha os olhos arregalados de espanto, assim como em suas experiências passadas.

Até ali tinha um saldo de três tapas no rosto, 5 empurrões e 10 fugas. Só que aquela era a primeira vez que ela mencionava “Ivan”. Será que finalmente queria se resolver? Como? Não sabia o que esperar. Natalia também tinha algo preso em sua garganta, embora não soubesse que aquele fosse o tempo apropriado para isso. Só que se não fosse aquele momento, provavelmente nunca iria a superfície:

- O irmão pediu para que eu cuidasse de você. Se quer mesmo se redimir, case comigo irmã.

A culpa de deixar Ivan ser convertido para o lado “deles”. Yekaterina tinha se soltado e segurava a maçaneta da porta para uma possível fuga. Não iria tão longe em forçá-la. Não queira ter de encarar outro rosto semelhante ao seu à beira do desespero.

Aquela pessoa tinha o rosto avermelhado pelo ato anterior. Seus lábios estavam bem fechados. Parecia procurar palavras sem achá-las. Quando tornou a abri-los Yekaterina apenas se desculpou baixinho. Não fugiu. Meramente se deixou sentar no chão frio e esconder o rosto entre os joelhos.

- Não posso fazer isso. - Yekaterina disse em tom abafado.

Natalia a abraçou outra vez; se abaixando para poder executar a ação.

- O que sinto não vai mudar.

“Até que eu morra”

- Você mudou, Natasha. Se fosse antes.... - Yekaterina disse em um tom mais animado - Provavelmente eu não teria nenhuma chance de fugir.

Era Yekaterina que agora tinha o rosto de Natalia em mãos. Só que diferentemente de si, a irmã mais velha se contentou em apenas dar um selinho em sua testa.

Antes que Natalia dissesse alguma coisa um som de harpa passou a ser ouvido pela casa. Era o som padrão de quando uma mensagem oficial era passada. Yekaterina tinha expressão de que provavelmente ia chorar de medo a qualquer momento. Devia ser da festa de mais cedo.

Já deviam ter sua sentença.

- O que tiver de ser resolvido será. - Natalia disse ajudando a irmã a se levantar.

Não havia muito a ser feito. Isso não perturbou o banho quente ou o sono daquela noite. A atitude de Yekaterina se tornou mais amistosa do que se poderia esperar. Tinha até mesmo se auto convidado a dormir com Natalia na mesma cama. Se fosse ela teria feito “algo errado” mais cedo. O travesseiro que Yekaterina trouxe tinha ficado encharcado. Natalia se apoiou na outra e dormiu como em muito tempo não dormia. Não que tivesse pesadelos, apenas não via sentido para fazer algo assim quando podia observar os rostos de quem amava.

Talvez fosse a primeira vez que tinha se sentido tão completa.

A manhã veio mais depressa do que imaginou. Um grupo elevado de pessoas formavam um círculo ao seu redor. O círculo mais distante era formado por crianças. As mesmas do dia anterior e outras mais. Algumas tinha asas de borboleta, outras auréolas semelhantes à de anjos. Por isso a adoção de tal palavra para designar tais criaturas. Eram longe do que se imaginaria que fosse.

Era dado o horário. O dia em que também seria uma parte daquela massa uniforme. Podia ouvir os sons das harpas e violinos e pianos. Uma melodia profunda que poderia fazer se perder a pessoa mais controlada. Natalia sentia o esforço em querer penetrar sua alma e desconectá-la de seu corpo de vez. Poderia ter sido mais efetivo se tivessem convencido Yekaterina a cantar.

Estava descalça, e tal como todas ali estava vestida de branco. Sua irmã não estava presente. Provavelmente não queria testemunhar mais um irmão sofrer daquele fim.

A música parou. Alguém pareceu abrir caminho entre as pessoas - que a essa altura já estavam tão vazias quanto zumbis. Tinha cabelos tão claros quanto os seus. E um cachecol que aquecia seu pescoço mesmo que não estivesse tão frio.

- Irmão...!

Dessa vez se sentiu vacilar. Ele estava muito menor do que se lembrava que era. E realmente estava menor. Tinha assumido a forma como era quando tinha meramente 10 anos. O arroxeado de seus olhos estava bem mais escuro, quase negro, e possuía um sorriso distorcido.

- Natasha. - Ivan tinha um tom animado.

Satisfeito até. O jovem segurava uma coroa de flores. Natalia manteve uma expressão desconfortável. Mais pela presença do irmão do que o próprio item que segurava. E isso não seria nada demais se tal item não tirasse todas as suas memórias, geralmente em troca do “bem-estar” para a família que ficava.

Tinha algo errado.

- Como...?

- Você não precisa se preocupar com mais nada irmã. - Ivan falou como se não a ouvisse - Vamos todos ficar juntos mais uma vez huhu!

As pessoas ao redor começaram a rir umas com as outras como se realmente apreciasse o convívio com os demais. Só que qualquer coisa que pudesse ser lembrado de um ser humano era retirado quando se passava pela transformação, assim como quando a melodia dos anjos tinha efeito. As risadas eram robóticas. As expressões eram endurecidas como se obrigassem a isso. A mente se tinha ido, mas o corpo se lembrava.

Não tinha problemas em se entregar desde que Yekaterina permanecesse em segurança. Só que tinha a sensação que era apenas questão de tempo até que algo realmente ruim acontecesse. De que sua passividade quanto a questão daquele mundo teria que ter fim.

Foi naquele momento que finalmente se percebeu cercada.

- Natasha!

Era Yekaterina. Ela segurava uma picareta, a que Ivan costumava usar em seu trabalho na mineração. Provavelmente ela contava que as pessoas diante do perigo se afastassem. “A mente se foi, mas o corpo se lembra”. Só que isso se revelou ineficaz. Yekaterina travou ao ver o irmão.

Natalia correu. Mais do que nunca ela não viu problemas em bater nas pessoas que impediam sua passagem. Segurou a mão de Yekaterina e continuou a correr sem perder a velocidade. A paz reinava naquela nação única no ano de 2122. Sendo positivo ou não a terra estava dominada e mais do que nunca os seres humanos estavam unidos. As armas não tinham lugar naquele reino da música e sorrisos vazios. Por isso não importava o quanto ameaçassem ou corressem. Que conseguissem sair daquela cidade específica... Era uma resistência sem propósito. Uma hora seriam achadas. E todos viveriam “felizes para sempre”.

Então mais do nunca deveriam aproveitar o tempo para que pudessem ser felizes. De verdade.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!