1000 Forms Of Fear escrita por Charbitch


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Eu perguntei à minha mãe: "Devo mesmo postar essa história? Ninguém vai ler!". Daí ela me disse: "Mas por quê? Você escreve tão bem!". E eu acabei desabafando: falei que ninguém ia querer saber da minha história do Breu, porque as menininhas amam mesmo é o Jack Frost só porque ele é bonito. Ela me olhou e disse: "Seja diferente, minha filha. Porque essas que só gostam do Jack Frost e não entendem o Breu são feitas de papel, enquanto você é feita de sonhos. Poste a sua história. E se ela for boa, pode ter certeza de que alguém tão especial quanto você vai ler". E cá estou eu, ainda descrente de que alguém vá realmente ler isso aqui. Mas é sempre bom dar uma chance às pessoas, antes que seja tarde demais.



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Conhece-me? Sou eu, o famoso Bicho Papão, também conhecido como Breu. Muito provavelmente você já ouviu falar de mim. Lembra-se de quando você era apenas uma criança que morria de medo de tudo e todos e sempre pensava que havia algo debaixo da sua cama ou dentro do seu guarda roupa? Bom, num ponto você estava certo: havia sim algo – ou alguém – debaixo da sua cama ou dentro do seu guarda roupa. E essa pessoa era eu. Até hoje eu faço isso: botar medo nas criancinhas desavisadas e transformar os mais inocentes sonhos nos mais insanos pesadelos... Porém... Tal como o Jack Frost, o garoto da neve, eu fui alguém antes de ser o cara que sou agora. Acredite se quiser, mas eu já tive uma vida normal, como a sua e a de todos os seus amigos e parentes. E eu também já fui um bebê, uma criança, um adolescente... Sim, com todos aqueles medos, incertezas, amigos, brincadeiras, brigas, sonhos e amores. Ah, amores... É estranho imaginar que alguém como eu já foi capaz de se apaixonar por uma bela garota, mas passe a imaginar agora. Porque é essa a história que eu vou contar. E é mais triste e sombria do que aparenta ser. Preparado?

Hoje em dia, o meu nome é Breu. Mas eu já tive outro nome. Um nome comum. Era Andy. Em minha opinião, um nome muito mais bonito do que o que eu tenho agora. Nasci numa família de poucas condições financeiras, mas mesmo que eu não tivesse o brinquedo que eu queria no natal ou sempre uma comida gostosa no prato, a minha criatividade e o meu espírito competitivo nunca deixavam o meu astral cair. Eu era o garoto mais animado da escola, sempre inventando brincadeiras novas e chefiando o meu time na aula de educação física. Todos sempre diziam que eu jogava bem e que pra mim não existia tempo ruim. Mesmo que as minhas notas em matemática não fossem lá muito boas, eu sempre me esforçava para ser o melhor em tudo. O otimismo era a minha marca registrada e ninguém ficava entediado na minha presença. Eu era conhecido como “o Faísca” na escola, pois nunca ficava quieto. Pessoalmente eu gostava daquele apelido. Pois toda faísca pode iniciar um incêndio.

Renê era o meu melhor amigo e o meu grande companheiro de brincadeiras. Nós estudávamos na mesma classe e fazíamos parte do mesmo time na aula de educação física. Ele era um artilheiro e tanto! Um dia, ele me disse que nós éramos uma dupla de choque, pois ninguém podia conosco. Concordei com ele. Quando nós estávamos lado a lado, parecia que tudo ficava mais divertido. Éramos de fato invencíveis. Nós nos completávamos de certa forma, porque ele era bom em matemática e eu em português. Era interessante como ele me ajudava a entender que uma fração era só um pedaço de alguma coisa e não um bicho de sete cabeças, enquanto eu sempre dizia a ele que na frase “choveu hoje” não tinha sujeito, por mais esquisito que aquilo parecesse.

E assim foi. A nossa amizade durou desde o maternal até que vimos que já éramos adolescentes e éramos amigos há mais de dez anos. Era muito tempo. Contudo, parecia que não estávamos mais na mesma sintonia. Ele tinha criado objetivos muito diferentes dos meus e todos aqueles nossos sonhos de criança tinham ficado para trás. Eu vivia dizendo a ele:

— Ei, o que você acha de jogarmos bola hoje?

— Desculpa Andy, mas tenho que estudar hoje o dia inteiro. Preciso muito passar na prova do colégio militar. O ensino de lá é excelente e eu não posso perder essa oportunidade na minha vida.

— Mas você só pensa em estudar, estudar e estudar! Antes você não era assim... O que aconteceu com a nossa magia de criança?

— Não seja idiota, cara! Nós não somos mais crianças! Será que você não cresce? Precisa pensar no futuro, nas consequências dos seus atos. Parece até que foi dormir com cinco anos e acordou com quinze!

E me deixou falando sozinho...

Depois daquele dia, nunca mais nos falamos. Porém, o pior ainda estava por vir. Sentindo-me muito debilitado pela perda da amizade do Renê, estava me sentindo mais sozinho e carente do que nunca, como se eu nunca mais fosse conseguir um amigo como ele. O meu rendimento nas aulas até diminuiu. Eu nem gostava mais das aulas de educação física, pois aquela gritaria da garotada e o rolar da bola só me fazia lembrar de como o Renê e eu éramos inseparáveis. Mesmo que ele ainda continuasse no meu time, todo aquele companheirismo já tinha morrido há muito tempo. E junto com aquela amizade, acho que uma parte de mim também tinha morrido.

Foi em meio àquela amizade recém-terminada, que conheci um homem muito estranho. O nome dele era Patrício. Ele era o mais novo zelador da escola. Vendo-me com aquela expressão triste durante o recreio, sentou-se ao meu lado e me perguntou por que eu estava triste. E mesmo sabendo que eu não devia ficar falando da minha vida pessoal para estranhos, contei tudo nos mínimos detalhes. Ele me olhou e disse:

— Encontre-me atrás da escola, depois que todo o mundo já tiver ido embora. Terei uma surpresa que te deixará muito feliz.

Eu estava tão carente que aceitei a proposta. Fiquei imaginando a aula inteira se ele me daria um presente, aceitaria ser o meu novo melhor amigo, ou quem sabe tentasse convencer o Renê de que jogar bola era melhor do que estudar. Contudo, quando a esmola é demais, o santo desconfia. E eu não desconfiei. No fim, eu acho que o Renê tinha razão: eu fui mesmo dormir com cinco anos e acordei com quinze. Não acredito que caí num truque tão sujo. A carência muito provavelmente nublou tudo o que haviam me ensinado sobre não acompanhar quem não devia.

Como combinado, esperei por ele atrás da escola, depois que todo o mundo já tinha ido embora. Fiquei sentado no chão durante uma boa meia hora. Ele estava muito atrasado. Quando eu já estava indo embora, ele apareceu.

— Olá, Patrício! – falei, sorrindo – Que bom que você veio!

— Bom, está preparado para a minha surpresa? – disse, parecendo mais acolhedor do que nunca.

— Sim, eu estou! – e sorri mais ainda, quando ele se sentou ao meu lado e começou a fazer algo realmente muito estranho – Você... Você está me fazendo carinho?

— Exatamente. É isso o que os amigos fazem, não? – E deslizou as suas mãos pelas minhas pernas – Você gosta?

— Eu... Eu não sei...

E todos sabem o que aconteceu depois. Não quero entrar muito em detalhes a respeito disso, senão vou acabar derramando desnecessariamente algumas lágrimas. Eu era muito inocente. Nem tive consciência de que estava sendo abusado. E eu tinha quinze anos. Eu devia saber muito bem que o que ele estava querendo comigo era nada mais e nada menos do que sexo. Mas eu não tinha muitas informações a respeito disso para entender o que se passava comigo. O tema sexo era um tabu lá na minha casa. Sempre quando eu perguntava à minha mãe de onde vinha os bebês, ela ameaçava me bater se eu perguntasse de novo. E assim foi. Não culpo os meus pais por isso. Eles só queriam me proteger, contudo não tinham consciência de que me protegeram tanto que eu não aprendi nada sobre a maldade do mundo. E tive que aprender da forma mais dolorosa de todas. Não precisava ser assim. Mas foi. A vida é injusta. E eu sei que não sou o primeiro e único. Infelizmente não sou.

Passei dois anos sofrendo abuso. Naquele período eu me sentia muito mal, como se no fundo houvesse uma voz no meu coração dizendo: “Isso é errado”, mas também houvesse outra que dizia: “Continue fazendo e não conte a ninguém, senão você vai perder o seu único amigo”. Felizmente dei um jeito de passar no vestibular e me mudei de cidade. Nunca mais vi o Patrício, ainda bem. Mas eu continuava sem amigos. O Renê tinha conseguido entrar no seu tão sonhado colégio militar e, enquanto eu era abusado, ele se divertia com a sua nova turma em outra cidade, nunca mais falando comigo. Ele também passou no vestibular. Eu passei em Letras. Ele passou em Engenharia Mecânica. Definitivamente não tínhamos nada em comum. Os números sempre foram a sua paixão, enquanto eu preferia mais as palavras. Infelizmente eu nunca mais veria o Renê. Era uma triste realidade, pois eu sentia falta dele, embora com certeza ele não sentisse nem um pouco a minha.

~*~

Na faculdade, ninguém mais me chamava de Faísca. Na verdade, eu era conhecido como “o fechadão”. Eu me sentava na terceira carteira, abria um livro de romance policial durante os intervalos e não falava com ninguém. Era triste admitir, mas eu estava com medo dos meus próprios colegas. E se algum deles fosse como o Patrício? Infelizmente, devido ao meu jeito tímido, um cara começou a implicar comigo. O nome dele era Leonardo. E era uma completa pedra no sapato.

— E aí, fechadão? Qual o seu nome? – eu me mantinha quieto – Qual é a sua? Você é mudo ou retardado?

Todos os dias ele aprontava comigo. E eu que achava que o povo da faculdade seria mais maduro do que o do ensino médio. Em minha opinião, parecia a mesma coisa. Ou até pior. O tal do Leonardo nunca me dava sossego. Ele adorava caçoar de mim, esconder os meus livros e colar cartazes nas minhas costas do tipo “Me chute”. Se eu me considerava infantil, ele era bem mais. Contudo, todos sabiam que ele só fazia aquilo para chamar a atenção das garotas. Como a sua aparência franzina não ajudava, vivia abusando dos mais fracos para que algum indivíduo do sexo feminino o notasse. E o mais engraçado era que várias garotas caíam na dele e realmente achavam divertido vê-lo me maltratando.

Um dia eu estava sentado na terceira carteira, lendo Dan Brown durante o intervalo, como de costume. Era incrível como as histórias dele me prendiam e me faziam esquecer todas as chatices e inconveniências do mundo real. As aventuras de Robert Langdon eram realmente algo que valia a pena ser lido.

— Rá, eu sabia que a Sophie era uma das descendentes de Jesus Cristo! – sussurrei, com medo de que alguém percebesse que eu estava falando sozinho.

— Hum, deixe-me adivinhar... Você está lendo “O Código da Vinci”! – fiquei com medo de que fosse o mala do Leonardo. Mas a voz era suave e feminina demais para que fosse aquele idiota. Era uma das estudantes da minha classe.

— Sim... É isso mesmo o que eu estou lendo – falei, esboçando um sorriso para ela. Era a primeira pessoa com quem eu realmente conversava desde que comecei aquele curso. E ela era linda. Os seus cabelos eram castanhos claros e ondulados, os seus olhos eram cor de jabuticaba e a sua pele era rosada. O seu perfume de avelã era bem reconfortante. Tinha cheiro de infância – Como é que você sabe?

— Ah... Todo o mundo já leu esse livro! É que nem “A Culpa É Das Estrelas”. Nove entre cada dez leitores da nossa idade já leram isso. Mas me fala... – ela se sentou ao meu lado – O que além de Dan Brown você gosta de ler?

— Eu gosto... Bom... De poesia...

— Sério? Eu também gosto! E qual a sua poesia favorita?

— É o Soneto XVIII, de William Shakespeare.

— Não me diga! – disse ela, surpresa – Essa também é a minha poesia favorita! – ela me olhou, sorrindo de orelha a orelha – Vamos recitar juntos?

— É... Está bem... Eu falo a primeira estrofe, você fala a segunda e assim por diante... Pode ser assim? – eu estava um pouco nervoso. Aquela tinha sido a conversa mais longa que eu já tive com uma garota em toda a minha vida.

— Como você quiser! Começa aí!

— Se te comparo a um dia de verão... – as minhas mãos suavam, acho que eu também nunca tinha recitado um poema em voz alta – És por certo mais belo e mais ameno... O vento espalha as folhas pelo chão... E o tempo do verão é bem pequeno...

— Às vezes brilha o Sol em demasia – a voz dela era linda, parecia que ela estava cantando e não apenas recitando – Às vezes desmaia com frieza! O que é belo declina num só dia, na terna mutação da natureza!

— Mas em ti o verão será eterno... – e sorri, olhando-a nos olhos até que eu não conseguisse mais e fosse obrigado a desviar o olhar – E a beleza que tens não perderás... Nem chegarás da morte ao triste inverno...

— Nestas linhas com o tempo crescerás – Ela me olhou, aproximando-se de mim – E enquanto nesta terra houver um ser – Fez uma pequena pausa e segurou a minha mão – Meus versos vivos te farão viver...

Àquele ponto eu já estava tão vermelho que mal conseguia respirar. Ela me tocou. Depois do abuso que sofri, fiquei meio desconfiado do toque alheio. Hesitei por um segundo, mas soltei a mão dela. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, o intervalo tinha acabado e todos entraram na sala para mais uma aula.

— Qual o seu nome? – perguntou ela – O meu é Anne...

— Eu sou o... Andy... – e não demos mais nenhuma palavra durante a aula.

Quando todas as aulas finalmente terminaram, fui falar com Anne. Eu precisava falar de novo com ela. Uma garota que sabia de cor o Soneto XVIII de William Shakespeare era com certeza a garota perfeita!

— Anne, vamos... É... Passear? – falei do modo mais desajeitado possível.

— Claro, afinal temos o Campus todo para dar uma volta! Vamos! – e me puxou pelo braço. O Leonardo estava passando por perto e ficou morrendo de raiva por uma garota estar com “o fechadão”.

— Ei, gostosinha! Por que você tá andando com esse lesado? – e me deu uma rasteira, fazendo-me tropeçar e cair de cara no chão – O que você acha de sair comigo? Sou muito melhor do que ele! Vamos no meu carro, o que você acha?

— Cala a boca, Léo! – e deu um chute na canela dele – E da próxima vez que se meter com o Andy, vai levar outro chute!

Parece que o Leonardo tinha mesmo se intimidado. Pois é, ela sabia se defender melhor do que eu. Fiquei surpreso como aquela garota era divina. Fomos passear pelo Campus e conheci um pouco mais sobre ela. Parece que eu tinha conseguido uma amiga. E não era uma traidora como o Renê e muito menos uma covarde como o Patrício. Contudo, o mais estranho era que eu não a enxergava da mesma forma que eu enxergava o Renê. Pra mim, ela não era uma companheira, uma mana legal ou uma fiel escudeira. Era como se eu estivesse sentindo pela primeira vez na vida aquele... Aquele treco estranho que chamam de amor.

Deitamo-nos na grama do Campus. Eram mais ou menos seis horas da noite e já podíamos ver as estrelas. Ela me falava sobre as suas constelações preferidas e eu ficava apenas ouvindo, pois de astronomia eu não entendia praticamente nada.

— Será que as estrelas estão nos vigiando lá de cima? – perguntou ela.

— Na verdade eu acho que elas, de longe, não sabem o que fazem – respondi.

Ela riu. Era um risada muito estranha, parecia até que ela estava se engasgando. Eu não resisti e acabei rindo também.

— Você é engraçado – disse ela.

— Acho que as estrelas são ainda mais engraçadas do que eu!

— Por quê?

— Porque vivem zoando com a cara de todo o mundo. Elas fazem os românticos imaginarem que o brilho delas é um sinal de que o amor deles vai se concretizar, fazem os astrônomos pensarem que há coisas incríveis acontecendo no interior delas, fazem os religiosos as admirarem e as encararem como uma obra de Deus, fazem os sonhadores acreditaram que elas vão realizar os sonhos deles, entre tantas outras coisas. As estrelas zombam demais da humanidade por darmos tanta importância a elas, quando na verdade são apenas bolas de fogo brilhantes que mal se interessam pela nossa existência.

— É, você tem razão, gostei desse seu jeito de pensar! Mas eu prefiro acreditar que as estrelas nos reservam algo bonito... – e ficou mais perto de mim, pondo uma das suas mãos no meu ombro e a outra no meu rosto. Eu já estava bem mais do que incomodado com aquela situação. Cada toque que eu recebia dela só me fazia lembrar dos abusos que sofri. Contudo, tudo piorou quando ela começou a fazer carinho em meu rosto. As carícias foram o meu primeiro contato com o Patrício.

— O que você está fazendo? – perguntei, já um pouco assustado. Recuei alguns centímetros.

— Carinho... É isso o que as pessoas fazem quando se gostam... – eu sabia que ela estava fazendo aquilo porque me achava legal e talvez estivesse sentindo algo mais do que amizade por mim. Porém, dentro da minha mente traumatizada, era como se eu estivesse revivendo todas as minhas dores do abuso. O toque dela trazia à tona lembranças que eu gostaria de esquecer. E era isso o que mais me assustava nela. Eu estava tão confuso que às vezes parecia que eu não estava enxergando o rosto de Anne e sim o do homem que se aproveitou da minha inocência – O que acha?

Empurrei-a de uma maneira um tanto violenta e me levantei.

— Pare de se aproveitar de mim, Patrício, você não vai abusar de mim de novo! – gritei, deixando-a totalmente confusa. Ela se levantou também e ficou abismada com as minhas palavras totalmente sem sentido algum.

— Andy... O que houve? Você não gosta de mim? E quem é Patrício? O que você está dizendo? – ela estava quase chorando.

Eu olhei para ela.

Eu havia ferido os sentimentos dela.

Já era tarde demais. Eu precisava explicar a história toda, senão ela acharia que eu era um completo lunático e nunca mais falaria comigo.

Não, ela não podia deixar de falar comigo. Já não bastava o Renê ter me abandonado e o mesmo aconteceria com a Anne?

Naquele momento eu descobri o meu maior medo:

Ser esquecido.

— Anne, talvez isso seja um pouco difícil de entender, mas preciso te explicar uma coisa muito importante – e comecei a contar sobre o abuso e tudo mais. Acabei chorando. Ela me abraçou. O meu primeiro abraço de uma garota. Senti o seu toque feminino e pela primeira vez não senti medo. Descobri que eu confiava nela. E percebi que aquele seria o último voto de confiança que eu daria a uma pessoa em toda a minha vida, pois se Anne me traísse ou me decepcionasse de alguma forma, eu nunca mais teria fé na humanidade. Eu nunca mais teria fé em ninguém. E me fecharia completamente para o mundo.

— Você não está sozinho... Estamos juntos nessa... Sempre... – e me abraçou ainda mais forte, como se eu fosse fugir a qualquer momento. Apesar de me sentir um pouco incomodado com todo aquele contato, o seu abraço me libertava de certa forma daquela terrível dor de ter sido abusado, substituindo-a por algo muito melhor...

Amor.

Amor de verdade.

Chorei mais ainda.

~*~

No dia seguinte, eu já estava me sentindo um pouco melhor por ter desabafado a minha dor com alguém. Anne sabia dar conselhos e não zombou de mim enquanto eu chorava. Talvez ela tivesse mais a ver com Psicologia do que com Letras...

Todavia, quando o meu inferno parecia estar passando, Anne me mostrou que ainda havia muito mais para sofrer. Encontrei-a no Campus, pouco antes de a aula começar. Ela estava muito cabisbaixa. E eu, obviamente, quis saber qual o motivo. Ela me olhou, como se o simples ato de ver o meu rosto pudesse apaziguar a sua dor. Porém, era uma dor muito grande para sumir tão rápido. Pelo jeito era algo terrível, já que ela nem quis me responder. Perguntei de novo o que estava acontecendo, desta vez segurando a mão dela. Ela me disse que não conseguiria ir à aula sem chorar, então me convidou a faltar naquele dia para que pudéssemos conversar melhor.

— Mas a aula de hoje é importante e... – vi uma lágrima brotar no seu olho esquerdo – Tudo bem, eu vou faltar! Agora vamos para um lugar mais tranquilo. Se você me consolou ontem, sinto que devo uma coisa ou duas para você – e a levei para fora do Campus – Vamos conversar no Parque da Esperança. Lá tem flores lindas, você vai se sentir melhor...

— Acho que nunca vou encontrar alguém tão especial quanto você, Andy... Obrigada... – e foi comigo até o tal parque. Aquele era o meu lugar preferido da cidade. Havia flores de todos os tipos e cores, como rosas, margaridas, girassóis e violetas. Qualquer um que se deparasse com aquela paisagem pensaria que estava no paraíso. E eu esperava que Anne também se sentisse assim e parasse de me olhar com aquela cara de choro que simplesmente me cortava o coração.

— Agora me conte o que aconteceu – pedi, vendo que ela já não aguentava mais segurar as lágrimas – Não tenha medo, eu... Eu gosto de você...

— A minha mãe morreu! – ela desabou em lágrimas.

Fiquei paralisado durante alguns segundos, sem saber o que dizer. Era pior do que eu pensava. No máximo eu achava que era a morte de algum bichinho de estimação, ou a despedida de alguma amiga que fosse se mudar de cidade. Mas era algo muito mais delicado: a morte da mãe. Aquela com certeza era uma das piores dores que alguém poderia sentir.

— Mas como? De que ela morreu?

— Ela foi viajar... E o carro bateu... Ninguém sabe exatamente o que aconteceu e eu estou tão em pedaços que nem sei como reagir! – e caiu nos meus braços, chorando copiosamente. Tentei mensurar em minha cabeça o quão doloroso era a perda de uma mãe. Parecia ainda pior do que sofrer um abuso. Segurei-a, sentindo novamente o seu toque. Abraçá-la era algo maravilhoso. Contudo, eu nunca esperava que ela pudesse recorrer justo aos meus braços num momento tão crítico quanto aquele. Fiz carinho em seus cabelos e disse que estava tudo bem, mesmo que não estivesse nada bem. Afinal, o que eu poderia fazer? Eu poderia lhe recitar a mais bela poesia ou lhe dar a mais bela flor daquele parque, nada traria a mãe dela de volta.

Mas levantei o rosto dela. As suas lágrimas não paravam de escorrer. Pensei e fiz a coisa mais estúpida que eu poderia fazer num momento como aquele:

Eu a beijei.

E ela aceitou o meu beijo.

Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida.

Tornamo-nos namorados.

E o tempo passou tão rápido quanto era possível imaginar...

~*~

Estávamos no nosso último período na faculdade. E eu amava Anne cada vez mais. Sempre trocávamos flores, poesias e estúpidas juras de amor. Ela oferecia o seu ombro quando eu precisava chorar e eu fazia o mesmo por ela. Era uma perfeita relação de cumplicidade, onde respeitávamos um ao outro e nos amávamos na medida certa. Às vezes eu até imaginava em minha cama à noite se nós nos casaríamos algum dia. Eu pensava que nós teríamos um lindo filho. Não, uma filha. Digo, uma filha e um filho. E eles implicariam um com o outro todos os dias, porém no fundo se amariam incondicionalmente e sempre estariam a postos para rabiscar as paredes da nossa casa com gizes de cera. Anne também dizia que queria um cachorro. Eu sempre sugeria um grande e vigoroso Pastor Alemão, mas ela vivia falando que morria de medo de cachorro grande e que gostaria mais de um Poodle.

— Mas Poodle é cachorro de menina! – resmunguei.

— Então vai ser um Yorkshire!

— Pior ainda!

E ríamos com as nossas esperançosas discussões sobre o futuro. Estávamos fazendo muitos planos, alguns até mirabolantes demais e totalmente fora do nosso alcance. Éramos duas mentes muito sonhadoras, portanto às vezes era necessário que alguém de fora nos puxasse de volta para a realidade, antes que desprendêssemos os pés do chão e voássemos até uma galáxia distante, sem promessa de volta.

— Se tivermos uma filha, vai se chamar Milena! – ela sempre comentava.

— Mas se for um menino, o nome vai ser Artur! – era o que eu sempre dizia.

E os dias se passaram, quando na semana final do último período eu comecei a sentir algo estranho em Anne. Ela não parecia sentir mais todo aquele mais pleno amor por mim. Eu sempre perguntava a ela qual era o problema e ela sempre me dizia que não era nada. Estranhamente ela não fazia a mesma cara quando eu lhe entregava uma flor ou lhe recitava uma poesia. Era tão bizarro que me assustava.

— Anne, o que está havendo? Por favor, me diga!

E ela nunca me dizia.

Até que chegou o dia em que eu descobri por mim mesmo.

Ela tinha outro.

E era justamente o Leonardo.

Aconteceu.

O meu maior medo se concretizou.

Eu fui esquecido.

— Anne... – peguei-a no flagra, beijando outra boca – Por quê? Eu... Eu pensei que você me amava!

— Andy, não é o que você está pensando! – berrou Anne, desesperada.

— Não quero saber!

E saí correndo, sentindo-me o pior dos seres. Atravessei a rua, sem nem olhar para os lados. Ela foi atrás de mim, abandonando o seu amante, que estava um tanto paralisado com aquela confusão. E ela atravessou a mesma rua que eu, também sem olhar para os lados.

Porém, eu cheguei seguro ao outro lado.

Ela não.

Um carro passou e destruiu tudo o que ela era.

~*~

Talvez eu tivesse outro medo além de ser abusado ou de ser esquecido. Um medo tão doloroso quanto os outros dois:

Perder quem eu amava.

— Anne! – e voltei, pegando o seu corpo todo ensanguentado do meio da rua e levando-o até a calçada. O desgraçado do dono do carro que a atropelou nem mesmo se dignou a parar o veículo para socorrer a garota. Simplesmente foi embora como se não fosse com ele – Não se preocupe, Anne, eu vou chamar uma ambulância! – e liguei para o número do hospital, ficando ao lado da minha namorada, mesmo sabendo que ela havia me traído. Ouvi as suas tão frágeis palavras:

— Desculpa, Andy... Não foi culpa minha, escuta!

— Cala a boca! – falei, com raiva – Quem está aqui com você agora? É ele? Me fala, sua idiota, vai, me fala! – e comecei a chorar, enquanto abraçava o seu corpo coberto de sangue – Eu te amo, eu sempre te amei, Anne, eu te amo!

— Infelizmente não há mais tempo para amar... Acabou...

— Não, não acabou, você vai ficar bem...

— Andy, olha pra mim! – olhei-a.

— O que foi?

— Me perdoa, eu juro que eu não fiz nada... Eu te amo, eu te amo...

— Eu te perdoo, Anne... Eu também te amo... Eu te amo, você sabe que eu te amo! – e a beijei com toda a minha força. Ela fez o mesmo, reservando todos os seus últimos suspiros para me amar. Logo após o beijo, ela foi respirando cada vez mais devagar, fechou os olhos, acariciou o meu rosto, ofereceu-me o seu último “eu te amo” e morreu bem nos meus braços, com a seguinte frase nos seus lábios:

— Não temos tanto tempo quanto imaginamos.

Eu guardaria aquela frase pelo resto da minha vida.

E pelo resto da minha morte.

~*~

A ambulância chegou minutos depois, junto com um bando de curiosos.

Mas já era tarde demais.

O maldito Leonardo também apareceu e me disse:

— Eu sinto muito...

— Cala essa boca! – e dei um soco na cara dele – Não acredito que ela estava me traindo com alguém como você! Veja só, ela está morta, MORTA! E você nem mesmo está chorando, seu insensível!

— Cara, ela nunca te traiu!

— O quê? – eu já estava mais perdido do que nunca.

— Eu me senti humilhado naquele dia em que ela preferiu sair com um fracassado como você a sair comigo! Então resolvi ouvir a conversa de vocês dois no Campus para ver o que você tinha que eu não tinha. E sem querer eu descobri o seu segredo! Descobri que você já foi abusado! E durante vários meses eu fiquei pensando em como usar aquilo contra você e de quebra conseguir a Anne para mim. Eu comecei a dar em cima dela. Mas ela não me queria de jeito nenhum, pois sempre dizia que você era o amor da vida dela. Eu então a ameacei durante um bom tempo. Você não estava achando o comportamento da Anne estranho? Ela estava preocupada, porque eu disse a ela que tinha ouvido a conversa de vocês dois sobre o abuso. E falei que se ela não ficasse comigo e te largasse imediatamente, eu contaria a todo o mundo sobre o abuso que você sofreu e te ridicularizaria na frente de toda a faculdade. Ela, então, prometeu que ia terminar com você. E antes que ela fosse te dar a notícia do término, eu a beijei. Foi naquele momento que você chegou.

— Seu filho da puta, eu não acredito que você fez isso com ela! Leonardo, eu sempre soube que você era um canalha, mas não a esse ponto! E eu pensando mal da Anne, achando que ela tinha me traído! A culpa é toda sua! – e peguei um estilete na minha mochila, cravando-o bem no peito do Leonardo e matando-o logo em seguida – Morra, filho da puta, morra!

E, como era de praxe naquele tipo de situação, fui para a cadeia.

Foi lá que eu cometi suicídio.

Quando morri, o meu espírito saiu de dentro do meu corpo, encontrando nada mais e nada menos do que a escuridão. Eu ouvia vozes nas trevas. Elas me diziam que se eu me unisse a elas, teria poderes sobrenaturais, assombraria o sono de quem eu quisesse e me tornaria o imperador da escuridão, o rei das trevas, o cavaleiro do medo. Eu jamais seria abusado, pois o meu ser teria mais força do que todos que tentassem se aproveitar de mim. Eu jamais seria esquecido, pois todos se lembrariam de mim nos seus piores pesadelos. E acima de tudo: eu jamais perderia alguém que eu amasse, justamente porque, tomado pela escuridão, ninguém teria coragem de me amar. Convencido de que o pacto com as trevas era o certo a fazer, a minha alma corrompida pela revolta se abriu para que todas aquelas trevas entrassem, tomando a minha mente e me tornando quem eu sou hoje:

O Bicho Papão.

Ou Breu.

E até hoje vago pelo mundo na minha árdua tarefa de espalhar o medo. Caso eu deixe de servir as trevas, serei consumido por elas, portanto não posso parar. Se um dia eu desejar ser bom, não terei a chance, pois a minha alma já foi vendida. E qualquer outra decisão me destruiria por completo.

Fico imaginando por onde vaga a alma de Anne.

Gostaria de dizer mais uma vez a ela o quanto ela significava pra mim.

Mas ela desapareceu no mundo...

E eu também desapareci...

Nas trevas...

Nas minhas trevas...


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Notas finais do capítulo

Para você que me lê:
Falo agora como uma figura estranha e disforme que saiu de dentro do ventre de uma mulher e só por isso acha que é gente. Sei que esse é aquele espacinho feito especialmente para mendigar comentários e recomendações, mas não é isso o que pretendo fazer aqui. Eu gostaria realmente de conversar um pouco com você, pessoa sem preguiça que leu tudinho e chegou até aqui (ou apenas rolou a página até o final e não leu porcaria nenhuma). Se você de fato leu tudo, obrigada. Se você está com lágrimas nos olhos, eu gostaria de te abraçar tão forte até te desconjuntar, porque o choro foi justamente o que eu tive enquanto escrevia essa história. Parece estúpido um escritor chorar enquanto escreve, mas eu tenho o costume de fazer isso. Sempre tento colocar a minha alma no que escrevo, mesmo que ninguém se importe com isso. E se você identificou todas as minhas notas de amor nesta história, eu lhe devo a minha vida. Sou apenas mais uma garota que, assim como o Breu, foi dormir como criança e acordou como adolescente. Tomo remédios controlados e vou a uma psiquiatra, pois tenho uma depressão violenta. Já pensei em me matar várias vezes. E eu acho que, de certa forma, a escrita tem me salvado desse abismo do qual estou cada vez mais tentada a pular. Obrigada por ler, muito obrigada mesmo. Se você estiver mal, saiba que você será feliz, pois desejo-te todas as coisas mais lindas desse mundo. Não quero que você sofra como o Breu. Quero que você encontre a sua Anne. E jamais a perca de vista.