Pensão da tia Odete. escrita por Costa


Capítulo 23
Capítulo 23




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Eu sabia que seria pior se eu me intrometesse, por isso, preferi ficar calado. Mas me doía ter que ouvir a criatura discutir com a besta por minha causa. Eles discutiram por horas, eu podia ouvir do meu quarto. Também não dormi direito. Acordava toda hora. Estava sem sossego. Esse estava sendo um dos piores dias da minha vida.

Sei que quando o dia amanheceu, o Jorge veio me chamar. Precisavam ajuda para os últimos preparativos da festa. Na verdade, precisavam de mais um par de pulmões para encherem os balões, o compressor tinha queimado. Desci e percebi a presença da Lívia. Ela estava radiante, com um semblante melhor, mas não me atrevi a me aproximar dela, não queria lhe causar mais problemas. Limitei-me apenas a encher os balões. Ela, como parece ser meio sem noção e deve querer me ver morto, veio falar comigo.

–Bom dia, Batman!

–Bom dia, Criatura!

–Tá melhor?

–Minha costela tá doida, mas nada que uma semana de molho não cure. Cadê a sua besta?

–Ele foi na rodoviária buscar minha mãe e meu irmão.

–Então vai demorar um pouco. Tenho mais umas horas de vida.

–Não seja bobo. Me desculpe por ontem, desculpe o Carlos.

–Sem problemas. Você já me meteu em rolos piores. Vou sobreviver.

–Desculpe também pela sua mesa. Prometo comprar outra.

–Aquela mesa já estava velha e é da pensão. Depois eu vejo com o Djair se tem jeito pra trocar o pé.

–Deixa eu ir que eu tenho muita coisa ainda pra fazer. Você vai no casamento, não vai?

–Vou. Estarei lá.

Ela acenou e saiu andando. Parecia estar feliz. Também, por que não estaria? Ela ia se casar em pouca horas.

Depois de mais de 200 balões e meu fôlego, eu ainda tive que enfeitar a entrada e o interior da pensão com aquelas bexigas. Estava mais enfeitado que festa de criança. A dona Odete já estava ficando louca na cozinha. A velhinha estava fazendo de tudo e ainda tinha o famoso bolo que não estava pronto. Pelo que descobri, o casamento deles seria só no civil. Acho que a Igreja que a Lívia queria casar na cidade dela estava em obras e ela preferiu esperar. Só aceitava casar naquela, na igreja em que os pais dela casaram. A Flávia estava enlouquecendo o Djair. Ela dava ordens pra ele de 5 em 5 minutos sobre a arrumação do lugar. Camilo e Jorge se dedicaram a dar um tratamento estético para a Lívia. Estavam enfurnados com ela no quarto. Ricky Martin se divertia estourando as bolinhas que caiam no chão. Seu Rodolfo não fazia nada, apenas beliscava os quitutes da mulher dele e ficava pra cá e pra lá disfarçando. Apesar da correria, o clima estava bom. Todos estavam se ajudando como uma grande família. Agora eu comecei a entender porque o Djair falava que éramos uma família. Tudo bem, éramos diferentes, loucos, mas nada que uma família verdadeira, de sangue não seja.

–Família Odete. Parece que eu estou virando mais um sobrinho, não é Ricky? –Falei pro cachorrinho que mordia o meu sapato.

Devo estar ficando louco mesmo. Além de falar sozinho, agora dei pra conversar com o cachorro. Devo ter acertado a cabeça na parede, nessas surras que tenho tomado ultimamente, e enlouqueci de vez. Agora eu tenho certeza: a loucura dessa pensão é contagiosa. Ainda fiquei um pouco distraído ali, brincando com o cachorro, quando vi a besta peluda chegar acompanhado de uma senhorinha simpática e um jovem barbudo. Devem ser os parentes da criatura já que subiram pro quarto.

Como não queria mais apanhar e nem estragar a festa de ninguém, acabei de arrumar o que tinha pra arrumar, tomei meu banho, coloquei um paletó, mesmo com o calor infernal que fazia, e sumi pra rua. Só iria aparecer no cartório na hora no casamento. Enrolei nos botecos ali perto e, faltando pouco tempo, me dirigi onde realizariam a cerimonia. Por sorte, consegui chegar na hora. Como noiva que é noiva sempre tem que atrasar, eu consegui chegar antes dela. A besta já estava lá. Depois dele, eu era o mais arrumado. Me senti até mal por isso. Vi o Jonas, mas não consegui chegar onde ele estava. Tive que ficar parado perto do barbudinho, mas ele começou a me olhar de cima a baixo. Será que era gay?

–Batman amargado?

Já vi que a criatura fez minha caveira pra ele. Desse jeito eu vou ter que voltar com o nefasta.

–Batman, amargado, Rogé, Rogério. Já me chamaram de tanta coisa que nem sei meu nome direito.

–Sou o Rafael. Irmão da criatura nefasta. –Disse, rindo.

–Ela te contou?

–Contou tudo. Muito obrigado por ter salvo a vida dela. Feito digno de um herói.

Ele me abraçou. Eu achava a Lívia louca, mas acho que o irmão dela a supera. Tenho até medo de conhecer a mãe.

–Não foi nada. Faria por qualquer um que precisasse.

–Valeu mesmo, camarada. A Lívia é muito importante para mim e para minha mãe. Sem ela não sei o que teríamos feito esses anos todos. Ela é que tem praticamente nos bancado e, nesses últimos meses, graças ao trabalho lá no seu bar. Ela tira umas boas gorjetas.

–Ela é que banca vocês?

–Praticamente. Desde que o meu pai morreu, minha mãe passou um dobrado pra nos criar. A Lívia deixou de cursar faculdade pra nos ajudar, mas fez questão que eu tivesse um estudo. Ela que sempre me ajuda e manda um dinheirinho pra eu conseguir me alimentar lá no alojamento. Tenho bolsa, mas gasto com comida.

–Não sabia disso.

–Achei que soubesse. Você e minha irmã parecem ser bons amigos.

–Agora somos, mas antes...

–Te entendo. Ela é bem implicante e irritante, não é?

–E louca, não esqueça louca.

–Louca é o principal. Não posso me esquecer.

–E você, estuda o quê?

–Marketing. Me formo esse ano.

–Parabéns. Deve ser o orgulho pra sua mãe.

–Sou, mas o orgulho mesmo é a Lívia. Aquela lá que segurou as pontas para eu me formar. Devo muito a ela.

Escutamos um burburinho e nos calamos. Era a criatura chegando. Todos se calaram. Ela entrou e estava deslumbrante com um vestido branco. Não era um vestido próprio para uma noiva, mas ficou muito bem nela. Também estava com um penteado novo. Como nunca vi a beleza dela antes?

–Fecha a boca. –O barbudinho sussurrou.

–Oi?

–Já tá dando bandeira. Se o Carlos perceber, você morre.

–Tá tão na cara assim?

–Tá.

Tentei disfarçar um pouco. Se até um estranho percebeu, os outros também iriam perceber. O casamento foi rápido. Por um momento cheguei a desejar que ela dissesse “não”, mas isso só acontece em filmes românticos. Eles se casaram. Saímos de lá e fomos direto pra pensão onde uma grande festa estava pronta. Eles estavam felizes, ficavam pra cá e pra lá falando com todos, possivelmente, se despedindo. Preferi ficar no meu canto e tomar umas cervejas, já que era a única coisa com álcool. Eu estava precisando me anestesiar.

–Sorria, Rogério. Isso não é um enterro, é um casamento. –Jonas, meu “bom” amigo, apareceu.

–O que quer, Jonas?

–Nada, vim te dar um oi. Tá aí sozinho e o tomando uma bebida que não gosta muito. Vai me contar o que tá havendo? Você tá mais estranho que o seu normal.

–Eu não acho que a Lívia fez bem em se casar com aquela besta. Tenho medo de que ele possa fazer algo com ela.

–Com você eu não duvido, mas não creio que ele seja desses que batem em mulher. O que realmente me preocupa é essa sua preocupação repentina com ela. Virou protetor da Lívia?

–Não, mas passei a admirar um exemplo de ser humano. Sabia que ela deixou de fazer faculdade pra poder ajudar o irmão na dele?

–Sabia. Sei também que ela que pagou a aposentadoria para a mãe, ajudou o irmão nos estudos e, quando sobra uma graninha a mais, ela também ajuda uma ong de cães de rua.

–Tá vendo? Essa mulher é uma santa. Aquela besta não a merece.

–Sei que não, mas abaixa a voz, não precisa gritar.

–Não sei o que me passa, Jonas. Eu não estou normal.

–Eu sei. Você já está ficando bêbado. Toma, troca comigo. O meu é um suquinho, não vai te fazer mal.

O Jonas tirou minha garrafa e me deu o copo dele. Acho que ele tem razão. É melhor eu parar de beber antes que faça merda. Sempre fui fraco pro álcool.

Eu continuei enrolando ali não sei por quanto tempo mais. Já havia anoitecido e eu vi os recém-casados se despedindo do pessoal. Agora era certo o adeus. Preferi não me despedir. Odiava partidas e não creio que a besta deixe eu me aproximar dela.

–Achou que eu não fosse te procurar pra dar um tchau? -Pelo visto, ela não pensa o mesmo que eu.

–Lívia, seu marido vai brigar com você. Ele não gosta de mim.

–Que brigue. Não poderia ir sem me despedir da pessoa que me salvou a vida.

–Salvei nada.

–Salvou sim. Obrigada por tudo, Rogério. Mesmo com nossas brigas, eu me divertia.

–Eu que agradeço por tudo. Me desculpe se alguma vez cheguei a te ofender ou a fazer algo que não gostou.

–Nunca me ofendeu. Eu que te peço desculpas por tudo. Sei que fui muito implicante. Acho que a nossa rixa começou aquele dia que eu te acertei com aquela água suja.

–Foi. Meu primeiro dia na pensão e tive uma recepção daquelas.

–Foi bom te conhecer, Batman. Agora tenho mesmo que ir.

–Também foi bom te conhecer, Criatura.

Eu estendi a mão, mas, como eu fiz ontem, ela me puxou e me abraçou. Esse abraço me doeu.

–Sempre que precisar de mim, sabe onde me encontrar. Não hesite em pedir ajuda, mesmo que seja só pra empurrar aquela lata velha que chama de carro.

–Pode deixar, mas não será preciso. O pitanga é um bom carro, não vai me deixar na mão.

–Como aquela vez da praia, não é?

–Detalhes...Ei, Batman?

–O que, Criatura?

–A Flávia mentiu. Você beija bem.

Ela saiu rindo e me deixou com essa bomba. Preferia não saber disso. Agora vou ficar me torturando. Valeu mesmo, Lívia. Continua sendo uma criatura nefasta.

Continua.


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