Save You escrita por Mrs Neko


Capítulo 3
Capítulo 3 - O Som da Morte


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo contém três quotes de presente! Uma delas é a última aparição de Zelda nesta fic - o movimento sinfônico do game The Wind Waker, ouça em https://youtu.be/J7yZ-jAj7Zk para entrar no climão, ao longo da leitura o motivo ficará bem claro.



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Seamus Concannon, 53 anos. Imigrante irlandês, trabalhador da construção civil, morto por parada cardíaca, causada por superdosagem de babitúrbicos.



Um homem alto e corpulento, com as mãos grossas e calosas de trabalhador deformadas pelos primeiros sinais da artrite e a pele coberta de sardas, cujos cabelos grisalhos, diferiam completamente do tom forte de ruivo da fotografia do passaporte vencido. Um imigrante ilegal, que morava temporariamente num quarto de apartamento semipronto na construção onde trabalhava. Ele não gastara as 60 libras em seu bolso num domingo no pub, e nem voltaria para a sua labuta precária naquela segunda-feira.



Pois estava estendido no piso de concreto do lugar onde morava de favor há 7 meses, rodeado por um caos de sacos de cimento, tábuas e materiais de construção, revistas de esportes, folhetos turísticos, bilhetes lotéricos, uma imagem de uma santa, um cabideiro empoeirado com roupas puídas, uma espiriteira e duas cadeiras dobráveis dispostas junto de uma mesa bamba com duas xícaras de chá pela metade, um frasco de comprimidos, com metade do conteúdo derramado, uma frase, talvez em gaélico, escrita num círculo vermelho de letras ilegíveis na parede oposta à porta, que tinha o rodapé embebido no que parecia sangue, e um jurássico rádio a pilha, que fora desligado quando Gregory chegou à cena do crime com sua equipe.


A sensação de perder algum detalhe que escapava por baixo do nariz perturbava sua mente sobrecarregada com excesso de trabalho e cafeína. Então, ele simplesmente alcançou o celular no bolso, e quebrou o procedimento por enviar uma mensagem, com uma certa foto que deveria ser tirada por um perito, e existir apenas como evidência nos autos daquele caso, e aguardou, por poucos minutos, a chegada do jovem que lhe servia, também a despeito do procedimento, como consultor.



O inspetor sentou-se ao umbral onde deveria haver uma porta, indiferente à cena de morte, tão parecida com as que vira inúmeras vezes com os enormes e argutos olhos castanhos, nublados de cansaço. À beira dos 50 anos, o oficial Greg Lestrade ainda conservava uma beleza madura, profunda e inesperada como o sabor de um bom vinho curtido pelo tempo. Os vários tons de grisalho dos cabelos espessos variavam entre o cinza-chumbo e o prateado. O amplo rosto moreno de traços másculos parecia talhado pelo formão de um mestre escultor. E sob a capa protetora semicirúrgica de plástico azul, o terno preto se ajustava perfeitamente ao corpo alto, forte e ágil, de músculos fartos e bem feitos.



Um corpo que aparecia subitamente do nada, como um indefinido volume de estorvo, para o rapaz que não o percebera ao atravessar o umbral sem sucesso e cair por cima do quase adormecido Gregory.



Lestrade, seu inútil!!! Então você me chama para resolver seus casos enquanto dorme em serviço???



Se não estivesse ocupado em distrair-se e enfurecer-se com o insulto, Greg teria se divertido com a visão do recente e amalucado quase amigo, estatelado entre as quinquilharias que obstruíam o caminho no concreto, com uma expressão de aborrecimento infantil no rosto felino, que culminava nas faíscas raivosas em que se estreitavam os olhos esverdeados. O moço não parecia ver um pente há vários dias e usava roupas bastante acabadas, jeans justos desbotados num tom indefinido de cinza, talvez tivessem sido pretos num passado distante, tênis All Star já muito alargados e um tanto quanto amolecidos por muitas caminhadas, e uma camiseta lisa e larga de mangas compridas, que pretendia ser azul escura. O conjunto terminava por acentuar a magreza frágil, as olheiras, a palidez e os tremores ocasionais, alusões à desintoxicação recente; disfarces totalmente ineficazes para a língua afiada que inspirava instintos assassinos nas mentes estressadas de muitíssimos oficiais londrinos da New Scotland Yard.



Não, Sherlock, te chamei porque, Deus me ajude, tem alguma coisa que não se encaixa nessa maldita cena do crime, e por mais que meu raciocínio não chegue nem perto do seu, tenho certeza que você não vai descobrir nada me ofendendo, como sempre. Como pode, alguém tão inteligente quanto você, afastar todo mundo só de abrir a boca?!



Imagino que analisar as pegadas da vítima e do assassino, que havia nas escadas, seja mais importante que tentar agradar um monte de gente entediante que não vai ajudar em nada na solução deste caso– o garoto bufou zangado e virou o rosto.



O policial conteve um sorriso e estendeu a mão enorme para ajudar o jovem a se erguer. Perguntou-se mentalmente como ele não havia se machucado na queda, e tentou, sem o mínimo sucesso, se desvencilhar da ternura paternal despertada pela fragilidade que aquele menino ocultava sob a extrema inteligência, que rivalizava com a absurda arrogância. Antes, porém, que o rapazinho pudesse começar a expor todas as informações que pudesse retirar da observação da cena do crime, ecos confusos de uma gritaria no exterior do prédio interromperam o diálogo dos dois detetives.



Deve ser o chato do homem da empreiteira, outra vez! Mas será possível que ele não entende que nós só vamos sair depois de terminar a perícia?! É melhor eu descer antes que minha equipe mate esse mala... Volto já.



E logo Gregory deixou o companheiro sozinho, unindo as palavras à ação.



Depois de engatinhar sem rumo na bagunça do quase-apartamento por alguns segundos, o jovem Holmes achou a lupa que derrubou ao chegar, e pôs-se a escanear o cubículo do infeliz sr. Concannon com olhos de águia. Localizou novamente as pegadas que guiavam seu primeiro raciocínio, calculou as características corporais dos dois homens que estiveram na residência improvisada durante o fim-de-semana, analisou cada detalhe dos restos frugais do chá, enquanto sua mente vagava em círculos, na tentativa de reconstituir as ações do morador e do visitante, provavelmente o assassino.



Uma desconfortável sensação de impotência e contrariedade tensionava seu corpo e rompia a linha fina da sua concentração, com uma intensidade que o impedia de montar aquela cena em seu palácio mental. Certamente a mesma sensação de que Lestrade se queixava, ao recebê-lo e pedir auxílio. Realmente havia um sutil e quase microcóspico detalhe que não se encaixava.



A desorientação e empatia onde seu raciocínio, usualmente hiperativo, estava parado, fez daquele o momento em que Sherlock mais se desprezou naquele dia.



Então, para passear com desenvoltura por seu Palácio Mental, tentar ir para mais longe do que a paisagem falsa deixada pelo suspeito, ele resolveu dar à mente as mesmas asas de rebeldia que o corpo tinha desfrutado mais cedo, e dirigiu a atenção para o único objeto da casa improvisada que não tinha relação com o crime.


Não era um violino, era uma rabeca escocesa, um típico e simplório instrumento artesanal. A madeira estava bem opaca, mas o toque ainda transmitia o calor oleoso das mãos, braços e ombros do dono, a poeira esbranquiçada de muito breu que caía do arco às cordas e ao corpo pequeno e do instrumento, todos os sinais que sua experiência, como detetive e músico, via dos muitos anos de uso daquele objeto.



Se a Teoria acertava em dizer que a Música é baseada em polígonos, havia uma caleidoscópica bagunça de fractais entre os milhares de papéis pautados que se misturavam aos prontuários, fotos, arquivos e anotações de casos e experimentos que ele tinha em casa, e outra ainda pior em sua mente. Mas já fazia muito tempo desde a última vez que um instrumento estava à sua disposição, para acalmá-lo e ajudá-lo a pensar.



E o gesto de levá-lo ao pescoço, com o arco pronto para percorrer o caminho sonoro que aparecia através de seus olhos fechados, foi deliciosamente tranquilo e natural.



Depois de livrar-se do representante da empreiteira, um sujeito baixinho, gorducho e belicoso de cabelos ralos, e do escândalo horrível com que ele atraía todos os olhares do bairro e o ódio de sua equipe, Greg retomou o caminho das escadas. Havia várias perguntas que ele precisava fazer a Sherlock. Sobressaltou-se em ouvir uma melodia clara, alegre e tranquila enchendo o corredor estreito e empoeirado de cimento, num prédio onde ainda não havia apartamentos, tampouco vizinhos distraídos que ouvissem música clássica em indiferença à morte de alguém que morava praticamente ao lado de sua porta.



Sua mente ponderava sobre as várias excentricidades daquele caso, enquanto ele abria a porta e arregalava os olhos diante de outra esquisitice.



Sherlock tocava, num violino encontrado sabe-se lá como, no meio da bagunça daquele cômodo miserável, a melodia vívida que escorria para as escadas, enquanto dançava em movimentos inconscientes e suaves.



Gregory Lestrade servia a Força Policial há mais de 20 anos, e acreditava já ter visto de tudo. Mas não sabia como reagir àquela cena surreal até para um filme dos mestres do horror e suspense. Já estava acostumado a ver aquele garoto desequilibrar sua paciência, humilhar sua equipe e bagunçar todas as cena de crimes onde aparecesse. Mas não conseguia esboçar nenhuma reação à visão do excêntrico rapazinho que tocava música e dançava em volta de um cadáver.



Ao mesmo tempo que parecia uma altiva e refinada música clássica, lembrava uma dança folclórica, ou o plano de fundo de alguma narração fantástica de histórias de aventuras e jornadas pelo mar. Um momento inusitado, singelo e quase mágico, que por pouco não inspirou Greg a sair dançando também, porque foi interrompido por uma voz estridente e desagradável:



Inspetor, pelo amor de Deus! Além dsse moleque psicopata não nos ajudar em nada, ele ainda fica fazendo barulho, e contaminando ainda mais a cena do crime! Pra que o senhor precisaria de uma aberração dessas?!– Anderson irrompia furiosamente pela porta, guinchando na tentativa inútil de, indiretamente, avisar Sherlock que o tempo de análise da cena chegava ao fim.



E quem garante que não foi ele que teve a" gentileza" de colocar o cadáver aí, para depois se exibir com essa cena de esquisitice?– emendou Donovan, que chegava, tão descabelada e estressada quanto o companheiro - Todo mundo sabe que, quanto mais estranho o crime, mais essa aberração se afunda!



Antes que Lestrade pudesse repreender os peritos pela indisciplina, o próprio Sherlock, aborrecidíssimo por ter interrompido o momento com suas maiores diversões - música e mistérios - respondeu as acusações.



Argh, como vocês se aguentam?! Pelo amor de Deus, não saiam falando alto por aí, senão vão zerar o Q.I. da rua toda! É só olhar a porcaria das pegadas, e as xícaras de chá na mesa. Desde a tarde de domingo, até o momento que vocês entraram, só houve duas pessoas aqui: a vítima e um outro homem, o assassino...– o detetive consultor caminhava em voltas aceleradas pela saleta, agitando o arco da rabeca, com uma elegância estranha e agressiva, como se tivesse à mão o sabre dos Três Mosqueteiros - Eles subiram as escadas, o visitante com alguma dificuldade, dá para ver pelas marcas na parede, onde ele se apoiou, e também pelos lugares onde arranhou os sapatos na subida, ...ouviram os resultados da última rodada do campeonato, ou da loteria esportiva, conversaram, e a vítima recebeu dinheiro e chá, com algumas cápsulas dissolvidas, do visitante. Apesar de ainda ser necessária uma análise das amostras, para o prontuário do caso, eu diria que está claro que seria melhor para o senhor estendido no chão se ele aceitasse somente o primeiro...



A exótica voz de barítono interrompeu a narração do crime por alguns instantes, entregue a um risinho baixo, travesso e irônico.



Que tal você parar com essas piadinhas nojentas, e melhor ainda, parar de apontar o óbvio, como adora reclamar que nós, pobres mortais incapazes de pensar, vivemos fazendo?– retrucou Anderson, com as mãos crispadas no gesto imaginário de apertar e torcer o pescoço de Sherlock.



Como você é incapaz até de amarrar os sapatos sozinho, imagino que precise de mim para descrever o assassino enquanto finge que trabalha, huh... Bem, mede um pouco mais de 1,60m de altura,é bastante sedentário. Tem problemas sérios de circulação, e manca da perna esquerda, embora não use bengala. É fumante... repare que um dos pires foi usado como cinzeiro... tem problemas com o peso, e do jeito que é hipertenso, não seria de estranhar se ele estivesse à beira de um ataque cardíaco ou um AVC... como esteve ontem à tarde, já que deixou tanto sangue no chão e na parede, sem sujar o cadáver . Você pode deduzir a altura, o estado de saúde e mais um pouco sobre ele, se olhar a inscrição na parede, - Holmes interrompeu a fala para apontar o lugar observado com o arco da rabeca - já que quem escreve, geralmente o faz à altura dos olhos... - o consultor investigativo voltou-se de frente para a porta e estreitou os felinos olhos atentos.– Ele é destro, e conterrâneo, ou muito próximo, da vítima. E também, muito próximo de Lestrade, tão próximo que está tentando, em vão, acertar a cabeça dele com um tijolo agora mesmo.



E durante a curta fração de segundo necessária para que os três policiais presentes voltassem suas atenções para a cena descrita pelo inesperado violinista, o representante da empreiteira livrou-se do tijolo num gesto rápido que uniu, à fala do detetive-músico, a própria ação. O bloco, em vez de atingir o alvo, acertou a rabeca em cheio.


No entanto, quatro horas, três oficiais agredidos, um suspeito resistente à prisão e um Sherlock Holmes muito aborrecido depois, Gregory tinha o prazer de entregar ao Detetive-Chefe Inspetor o relatório do caso. Se não estivesse com o queixo inchado, riria com prazer das futuras manchetes escandalosas e sensacionalistas dos tabloides, sobre o dramático assassinato do único ganhador da Loteria Esportiva, Seamus Concannon, por Mortimer Concannon, seu primo e único parente vivo.


Lestrade riria ainda mais se não tivesse acabado de receber outro caso, exatamente quando, após entregar o relatório, se preparava para sair. Fechou a porta do escritório com um suspiro cansado e sobressaltou-se ao ver quem o aguardava, sentado de qualquer jeito no chão do corredor.



Você ia levar o violino pra casa, não ia?



Era uma rabeca, seu idiota– Sherlock respondeu mal-humorado.



Parece que todo mundo resolveu largar presuntos em construções... Que droga!– o inspetor ignorou o insulto, embora estivesse curioso sobre a relação entre violinos e a infância do relativamente indesejado parceiro - Temos um chamado em Southwark, à beira do rio... Prometa que não vai levar nenhuma lembrancinha da cena do crime, e eu até posso pensar em te levar.



Pensei que o único requisito para meu acesso à Yard fosse permanecer limpo.



Com uma alusão ao trato que ambos fizeram ao se conhecerem, e apesar das palavras irônicas, Sherlock acatou a ordem do detetive sargento com uma infantilidade silenciosa: um sorriso amável cheio de covinhas.


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Notas finais do capítulo

Acho que este capítulo ficou um bocado longo!! Desculpe!!! #¬¬#

E estes são os últimos quotes! Os insultos elegantíssimos (ou quase) da série, cortesia de Sherlock Desbocado Holmes. E este trechinho com o único detetive consultor do mundo saracoteando em volta de um cadáver é uma criação genial de sir Arthur Conan Doyle, numa cena de invejável humor negro presente no livro "O Cão dos Baskervilles" (que inclusive pensei que fosse aparecer na quase-adaptação desse livro na telessérie, mas caí do cavalo). Desculpe se isso deixou a cena um pouco chocante, mas leio os livros de Sherlock Holmes desde os 12 anos e não pude resistir.

E as partículas de dedução, curtas e confusas, foram retirados de outro livro de suspense - já que não consegui inventar, sozinha, um caso pros meninos resolverem. :( Mas quem acertar qual é esse "livro de suspense", ganha um chocolate Milka! Quem comentar ganha dois!!



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